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Contos-->Revés -- 31/01/2006 - 21:34 (Bruno D Angelo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ora bolas! O que mais poderia me acontecer agora? Fodido e mal pago, e sem nem perspectiva de melhora. Só de pensar que há apenas 24 horas minha vida era a mais tranqüila e pacata do universo real e paralelo os meus olhos já enchem de lágrimas. Snif! Snif! Vou sentar. Vou sentar aqui na sarjeta mesmo. Desse jeito, maltrapilho, estropiado e com cansaço escrito na testa, quem sabe alguém me toma por um mendigo e me joga umas moedas, para que assim, eu possa tomar um ônibus que me leve em casa. Se é que eu ainda tenho casa!
Chuva? Não consigo acreditar. Retifico: tudo sempre pode ficar pior; respeitando obviamente os diferentes pontos de vista, embora eu desconfie...desconfie não, tenha certeza de que ninguém respeita merda nenhuma, e é melhor que seja assim. Sim, tanto melhor que seja assim. Respeito me cheira mais a medo do que a admiração, mas em suma, isto é minha opinião e não desejo forçar ninguém a concordar comigo.
Rei dos clichês, permaneço um pouco sentado, até que a chuva realmente comece a me incomodar. Os pingos batem em minhas coxas e elas já devem estar até vermelhas; minhas roupas encharcadas aderem cada vez mais ao meu corpo, o que me causa irritação e meus cabelos ensopados me fazem impelem a agir. Levanto com dificuldade e me esgueiro até um toldo vermelho. Lá fico, espremido com mais algumas centenas de transeuntes que também foram pegos de surpresa pela maldita chuva. Aproveito para dar uma espiada no jornal que um cara lê do meu lado. Ele não parece estar lá muita feliz é verdade, afinal é obrigado a dividir o espaço com um cara sujo, mal cheiroso e que ele não sabe onde passou os dias. Eu sei onde passei os meus dias e não ligo a mínima. Se ele não quer morrer em uma enchente, tem que ficar ali me agüentando. Aproveito, então, o ensejo para colocar as notícias em dia. Quero saber também se saiu alguma notícia sobre mim, afinal aquilo não costuma acontecer todos os dias. Meu rosto está estampado no jornal; há um sorriso nele. Imbecil! nem podia imaginar o que iria acontecer comigo. Nem acredito ainda no que aconteceu comigo. Quem poderia imaginar que em um simples dia, um dia comum, tudo fosse ser tirado de mim, inclusive o chão em que me sustentava. Súbito, não havia mais nada em que pudesse segurar e solto no ar, caí. E até agora estou caindo. Ainda não sei muito bem do que estou falando. Só sei que é isto que sinto. Não tenho mais para onde correr, mas correr é a única solução que me basta. A sociedade não pode aceitar pessoas como eu vivendo dentro dela. Eu sou uma doença que merece ser extirpada. Eu tenho consciência disso. Quando fazia parte da sociedade acreditava nisso também. Obviamente, agora vejo tudo de outro ângulo, mas não deixo de me sentir estúpido; agora e antes. E pensar que isso aconteceu em menos de 24 horas!
Voltando ao que acontece embaixo do toldo vermelho: o homem que lê o jornal estaca por um momento e volta sua face para a minha, me fitando com olhos de desconfiança. Desde que fui até lá para me proteger da chuva, ele não havia parado de me olhar um só segundo, mas agora era diferente, ele estava me examinando. Acho que me reconheceu, pois de quando em quando olha o jornal e olha para mim, vê a cópia e vê o ao vivo, parece querer se certificar qual dos dois lhe parece mais real. Mas de repente, como tudo acontece na vida, ela para de fazer isso. Parece ter chegado à conclusão de que nenhum dos dois realmente existe, ou quem sabe, acabou lembrando de alguma coisa idiota de sua vida medíocre e percebeu que só ele importa neste mundo infinito. De qualquer forma, é melhor sair daqui. Quero evitar mais problemas e como eu disse, apesar de já me saber sem saída, preciso continuar correndo e tentar continua vivo.
Corro desembestado. A chuva ainda é forte. Após alguns segundos paro. Já estou encharcado e quase não consigo me movimentar de tanto peso. Resolvo andar, calmamente. Faço isso também, porque há uma questão que surge em minha mente, e que merece ser estudada com muito respeito; trata-se da minha total falta de rumo definido. Não sei se consigo me exprimir direito, mas a realidade é esta: não há para onde ir! O ideal romântico de viver nas ruas, agora aparece para mim, de forma concreta, em cores vivas, cruéis. Estou com medo. Vontade de chorar. Sou um cagão. Sou uma criança. Um cachorrinho domesticado; não sirvo para viver nas ruas. Não tenho essa capacidade. Já sei, a partir de agora a contagem é regressiva, vou ser devorado em segundos. O anonimato me esconde da polícia e me concede uma liberdade antes não conquistada, momentânea. Mas o anonimato me esconde da sociedade e não me protege mais da horda dos selvagens. Eu sou um selvagem agora. Eu sou o homem sem lei. Todavia não sou o homem sem lei. Não sei viver sem lei; pelo menos sem a minha lei. Estou paralisado.
Não quero sair daqui. Não posso sair daqui. Penso em voltar para o toldo vermelho que ficou há poucos metros. Não posso voltar também. A chuva vai passar, invariavelmente, e vou ter que sair dali. Aliás, a chuva já começa a ficar esparsa; o céu já começa a engasgar; quando se vê, o sol brilha novamente, tímido.
Não sei como vim parar aqui. Fiquei sem ar, tentei puxá-lo, subitamente abri os olhos. Estava aqui, deitado, cheio de tubos, com o corpo moído. Olhei ao redor, uma sala cheia de pessoas. A grande maioria em piores condições do que eu imaginava estar. Muitos agonizavam, outros davam gemidos baixinhos, quase inaudíveis. Lembro de todos eles.
Era noite e me dera uma vontade incontrolável de dormir. Perambulava pelas ruas e eu que nunca consegui reter nenhum caminho por mais de trinta minutos em minha cabeça, já começava a me acostumar com aquilo. Ia e vinha, decorava, memorizava. Se quisesse sobreviver nas ruas, precisava conhecer tudo direitinho. Como eu disse, estava com sono e também já estava morrendo de medo. Nunca gostei de andar a noite pelas ruas, minha mãe também não gostava que assim eu o fizesse, mas isso foi antes, em um tempo que eu nem me lembro mais, agora eu faço parte dessa escória noturna, eu dou medo, eu assusto estes transeuntes enjaulados, acuados que não têm para onde fugir. Mas este poder recebe sua contrapartida; uma reação furiosa de quem se sente dono, de quem se sente parte. Eu já fiz parte de alguma coisa. Não faço mais.
Escolhi um canto com algumas pessoas deitadas. Achei que se ficasse em grupo teria mais chance nesta selva. Antes de me ajeitar naquele concreto tão convidativo, observei atentamente os rostos de meus novos colegas de quarto; pelo menos por um dia. Sim, eram eles. Estas pessoas que me fazem companhia neste lugar amistoso e harmônico são eles: os meus amigos mendigos. Nem tão amigos, afinal não me conheceram acordados, mas aposto que em sonhos fomos devidamente apresentados. Neste momento, a maioria agoniza, lado a lado ao meu corpo enfraquecido. Não sei o que aconteceu. Imagino.
Pouco a pouco fui ficando sozinho na sala. Agora só restam a mim e a um outro senhor, negro, mas a julgar por sua idade não passa de hoje; me espanto que tenha agüentado essa semana. Sujeito forte. Até este exato momento, ninguém me reconheceu, o que é um ótimo sinal. Com mendigo ninguém se preocupa. É uma merda de um lugar-comum dizer isso, mas não posso fazer nada. Eu sou a ultima pessoa que eles desconfiam que seja eu. Estou preocupado. Todos os dias aqui foram preocupantes. Todos as horas! Tirando aquelas, obviamente, em que estava dopado, no quarto ou na mesa de operação. As enfermeiras me dizem e os médicos também que foi um milagre eu ter sobrevivido. Respondo com dificuldade e fico até emocionado assim com tanta atenção. Afinal, um mendigo não costuma ser, assim, o centro das atenções. Percebo, também, um certo transtorno em seus semblantes quando falam comigo; eles chegam quase a chorar; acho que são raras às vezes que eles podem dar atenção a uma pessoa como eu. Dizem que minha voz está assim por causa dos danos no meu cérebro, mas que esta seqüela é praticamente nada e sumirá com o tempo. Eu fico feliz. Estou feliz e acho que fiquei até mais inteligente depois do que aconteceu.
Surpreendentemente, o senhor negro que dividia a sala comigo durou mais dois dias. Morreu hoje de manhã. Fiquei amigo de umas enfermeiras e elas me disseram que eu fui mais uma vítima desses grupos noturnos que objetivam exterminar os moradores de rua. Elas me disseram, também, que eu sou a única testemunha restante. Isso eu já havia percebido. Mas que testemunha sou eu? Como posso dar pistas de quem são os criminosos se dormia no momento em que tudo se desenrolava? As enfermeiras mesmas tiveram que me contar o que havia se passado, pois até há pouco eu apenas desconfiava. Uma hora ou outra, a polícia iria me procurar e os imbecis teriam que ouvir a verdade; que não poderiam contar comigo. O meu medo era que eles me descobrissem, mas o disfarce de mendigo havia se mostrado de uma eficácia incontestável. Com o pequeno detalhe de que não era disfarce e sim minha realidade.
Quase cem por cento! Estou em outra sala e amanhã de novo às ruas. Sugeriram um abrigo. Disse muito obrigado, mas recusei. É muito arriscado para mim. Ontem, um investigador me fez perguntas sobre aquela noite. Ele era mais esperto do que eu pensei. Já chegou dizendo que sabia que seria muito difícil a minha ajuda; que eu, como os outros, dormia na hora do ocorrido, mas que precisava por favor de qualquer coisa para ajudar a elucidar o caso. Me perguntou se eu percebera qualquer movimentação diferente ou alguma pessoa estranha rondando o lugar; aquelas coisas que diz todo o policial. Como eu poderia saber se era a primeira vez que dormia lá; aliás, se não fazia nem dois dias que eu perambulava pelas ruas? Mas é claro que eu não disse isso. Falei apenas que havia tomado umas doses a mais e dormira como um bebê bem alimentado. Ele lamentou, me cumprimentou e disse que era melhor eu abandonar as ruas, pois, aquilo poderia acontecer de novo e ele poderia não estar lá para ajudar. Como se daquela vez estivesse. Agradeci sua preocupação e prometi largar a bebida e tomar um rumo na vida. Provavelmente ele não acreditou nessa mentira, mas o importante é que engoliu todas as outras.
Roupas limpas, semi-usadas, mas cheirosas: é assim que vou embora daqui. Ainda ando com um pouco de dificuldade, mas segundo os médicos, minha reação foi magnífica. Cumprimento cada enfermeiro e cada enfermeira com muito carinho e a recíproca é verdadeira. Eles me parecem emocionados. Saio de lá como sobrevivente. Ando alguns metros, estou bem próximo à saída quando sou chamado por alguém atrás de mim. Viro o tronco e me certifico de que a voz é mesmo a do segurança. Meu coração congela, para na seqüência dar coices como um cavalo pressionado pela esporas do montador. Aperto o passo. Mas ele me chama de novo. Não é possível que termine assim! Mas o suspense fica por aqui e nem sei se chegou a ser suspense. Ele me cumprimenta calorosamente e diz que também já foi das ruas. Oferece estadia em sua casa e eu recuso novamente. Não posso aceitar. Estaco em frente à porta de saída. Automaticamente, ela se abre. Já atravessando a rua, sou tentado a olhar para trás. Não o faço. Melhor que tenha sido assim, senão veria o cotidiano de volta ao hospital e o meu esquecimento não estampado na face de cada um ali.
Meses se passaram e ainda continuo nas ruas. Para que outro lugar eu iria. De vez em quando minha foto ainda sai estampada no jornal. É claro que só eu a reconheço, afinal essa temporada aqui me modificou bastante. Posso dizer que hoje estou muito mais apodrecido. O caso do grupo de extermínio foi esclarecido, pelo menos foi o que a imprensa divulgou. Pasme eu fiquei, quando vi que aquele investigador, que me fez as perguntas no hospital, estava envolvido no caso. Nem sei porque ainda me espanto com essas coisas.
Um toldo vermelho. Ainda guardo na mente, como um retrato em cima da estante, o primeiro dia que ganhei as ruas. Hum! Esse cheiro... esse cheiro é cheiro de chuva. Chuva? É melhor prevenir e já guardar meu lugar aqui embaixo. Se algum senhor civilizado tiver a coragem de dividir este espaço com um ser tão ignóbil quanto eu, posso mirá-lo com olhos de quem tem mais direito de estar ali: afinal cheguei primeiro; afinal a rua me pertence. E pensar que tudo isso aconteceu por causa daquele fatídico dia.

Por Bruno D Angelo
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