Você considera que eu escrevo à moda antiga, à moda de Camilo, de Eça, de Junqueiro e de Florbela, ou, neste topo do tempo, escrevo algo que os mais velhos não entendem e os mais novos nunca entenderão?
Estou a ver-me passar entre uma fileira de carros estacionados e, não reparando num meco granítico que se implanta a 40 centímetros do solo, de repente e na canela direita, sinto uma dor do outro mundo, uma dor que de imediato me obriga a aninhar e a soltar uma espécie de guinchinhos para me aliviar de tamanho desespero físico.
Os amigos que me acompanham acodem e indagam o motivo daquela inesperada estupidez. Um aconselha a que utilize pedras de gelo para impedir o avanço da pisadura e do inchaço, mas, por perto, não há hipótese alguma de arranjar gelo.
Uns minutos adiante, amainada a dor, tal e qual um jogador de futebol que reentra em campo após ter levado uma canelada de um adversário, lá estou eu de novo a caminhar, manquejante e com a dolorida sensação que minha canela aumentou para o dobro.
Assim que cheguei a casa e verifiquei minuciosamente a mazela, lá estava um círculo acastanhado a pender para o negro, do tamanho de um botão de casaco de senhora, uma marca que, ao cabo de um ano e pico de haver ocorrido, se mantém com um aspecto assaz saudável, tão saudável, que até passei a gostar dela.
Agora, reparando bem, parece-me o mapa do Brasil em miniatura, tatuagem que o acaso desenhou com extrema perícia. Se lhe aplico uma potente lupa, com que habitualmente analiso os selos que colecciono, de imediato surge o Rio de Janeiro e, microscópico, o Pão de Açucar. Então, não sei como, começo a ouvir aquela melodia, cujo refrão é assim: "Brasil, meu Brasil brasileiro...".
Está vendo?... Escrevo conteúdo anódino, descrevo uma cena sem importância alguma e sem qualquer merecimento literário, lengalenga ortográfica que, como soer é dizer-se, sequer interessa ao Menino Jesus, e por consequência levo permanentemente com o incómodo sombreio do meu indefectível amigo Tadeu:
- Ó Toninho, que gracinha... No teu mapa do Brasil, sentado sobre o Pão de Açucar, vejo um sonho a morrer de velhinho e em triste solidão. Caramba, amigo, dói-te mais o sonho ou a recordação da inesperada pancada na canela?
- Ó Tadeu, Tadeu... Então não lobrigas que, quando bati com a canela no meco, ia a pensar nela?...
António Torre da Guia |