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Contos-->II - Gonçalo -- 21/05/2006 - 23:11 (José J Serpa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




II- Gonçalo

Instalei-me na quinta dum amigo,
companheiro de exílio que, como eu,
deixara, um dia, tudo o que era seu,
para ir juntar migalhas de mendigo

na emigração. Não pôde vir comigo,
que a labuta da vida lho tolheu.
Foi o Gonçalo quem me recebeu,
Velho caseiro ilhéu ao modo antigo:

—E o Menino Luís ficou por lá,
só Deus sabe por onde, ao deus-dará...
enfim... a vida. Eu não entendo nada

de nada já... Mandou carta a dizer
que tu vinhas aí, a refazer
a saúde que trazes abalada....





Velho Gonçalo!... o mais fiel caseiro
que houve nestas ilhas e o mais fino...
A quinta era o seu reino e o seu destino:
a verde laranjeira, o limoeiro,

a toranjeira, o universo inteiro
do sumarento mundo do citrino
crescia, obedecendo ao divino
poder daquelas mãos de feiticeiro...

Crescia, modelando-se em umbelas,
que se enchiam de frutas amarelas...
enormes cogumelos que os meus sonhos

prístinos de criança encantavam
e, nos dias chuvosos, imitavam
guarda-chuvas gigantes e bisonhos.









Velho Gonçalo, que recordações!
Que ralhos contra as nossas correrias...
e os ninhos, meu velhote, que tu ias
mostrar-nos pelos bardos... e as lições

que tu nos davas, quando rapagões
queríamos saber de mergulhias,
de garfos e de estacas... de enxertias.
Saudades, meu Gonçalo, nem supões

quanto as saudades tuas e as lembranças
da quinta de quando éramos crianças...
quanto elas preencheram as conversas

tristes do nosso exílio e desespero...
Mas deixa, meu Gonçalo que eu não quero
ralar-te com memórias tão perversas




—Ficas no quarto grande. Até convém...
O quarto grande, o quarto do Luís,
já que ele não pôde ou não quis
acompanhar-te. Há anos que não vem.

Os velhotes morreram, e eu também
já vou ficando... como o outro que diz,
não tenho forças, sinto-me infeliz...
É que afinal não tenho cá ninguém
.

Afloravam nos olhos do Gonçalo,
lágrimas más... queria consolá-lo
mas ele esquivou-se: —Deixe, deixe...

são lamúrias de velho, parvoíces...
duas vezes criança... são tolices.
Não há razões para que ninguém se queixe.








—É o quarto maior que cá se arranja-

disse o caseiro feito intendente
do velho casarão remanescente
dos tempos opulentos da laranja.

Quando a vertente sul, em toda a franja
marítima da ilha, lentamente
se transformara em laranjal verdente...
cada palmo de terra, cada granja.

Durou pouco a benesse, e das fortunas
que se fizeram a carregar escunas
e brigues e chalupas... só ficaram

um ou outro chalé arruinado,
incoerentes ecos dum passado,
que há muito se extinguiram, se calaram.




O quarto do Luís... Oh, decepção
dos espaços que morrem! Oh, vazio
das paredes sem eco — tudo frio.
Oh! O frio da vossa solidão!

Como eu tentei reanimar-te então,
ó quarto do Luís, atar o fio
de mil reminiscências que partiu
o tempo ao diluir-se. Oh, dispersão!

E eu que brincara ali vezes sem fim
andei, em vão, a procurar por mim...
só vislumbrei algum farrapo absorto,

agonizando ao longe, num passado
incoerente, absurdo, desfasado...
Tudo sem vida... tudo, tudo morto!








A estante com os livros lá estava,
linhas de pesca, os laços da moreia,
as barbatanas... patas de sereia,
que era o que a Ricardina lhes chamava...

a Ricardina... sim... bem me lembrava,
o que era feito dela? —Uma canseira,
casou e foi viver para a Madeira —

informou a Florinda que arrumava

o quarto abandonado, e que vinha
‘dia sim dia não — alternativos...
lavar, limpar, fazer a comidinha

para este velho!’
Arranjo que já vinha
do tempo em que os velhotes eram vivos,
‘pediu-mo a Senhora, coitadinha’...




—A Ricardina! Os pais ainda estão.
O Ti Canastra havia de gostar
de ver-te... a ti e ao Luís... Ao mar,
há muito que não vai... A embarcação,

a lancha, em que naquela ocasião,
lembras-te ?... o mar a rebentar
e o Ti Canastra sem poder varar!
Jesus, que mar... cada arrebentação!

A lancha foi entregue ao tribunal.
Dívidas. Gente pobre é mesmo assim.
Ricardina morreu no hospital,

por lá. Diz que de flato, cá por mim,
não estava lá, não vi, mas o pardal
do marido... ai, coisa mais ruim!









Boa Florinda, se lhe davam trela...
—Ó mulher, você também quando começa...
inda não se comeu... e não se esqueça
que agora somos dois! Que tagarela!...


Era o Gonçalo a ralhar com ela,
lá da cozinha. Ela foi-se à pressa
e eu fiquei ruminando na promessa
dumas sopinhas frescas da panela

em que ela punha mil e um esmeros...
e saberes antigos... que os penates
guardavam na despensa, entre os temperos

com que ela camuflava disparates,
esturros e guisados exageros
de alhos, de cebolas, de tomates...




Nas sopas da panela não, que as fazia
sempre muito bem feitas, a rigor...
obras de muito cheiro e de sabor.
A terrina de louça em que as servia

fumegava na mesa e rescendia
a hortelã pimenta... um primor
que eu sempre lhe gabava com fervor:
—As suas sopas são uma magia!

-Mais ou menos... a gente cá se ajeita...
-Florinda há-de me dar essa receita
para eu levar para lá, para o Luís.

-Pois sim. Nada mais fácil. Qualquer
tipo da carne... frango... Quem quiser,
se for tempo de caça, codorniz.








—Coze-se a carne e coze-se o toucinho,
entremeado — bom é o do fumeiro...
A linguiça também... Vai tudo inteiro
com muita hortelã e um galhinho,

pequeno — quem tiver — de rosmaninho...
não há nada que dê aquele cheiro...
Coze-se tudo bem. O pão... caseiro,
rijinho... para ensopar bem o molhinho,

no fundo da terrina às fatias.
Por cima, as carnes, e essas bem macias...
a linguiça, o toucinho e... O caldinho

em que tudo cozeu, inda bem quente,
vai por cima de tudo. Ah, um dente
de alho, ou dois, que é para dar gostinho.





E voltou-se a falar da Ricardina,
do Tonho e do Rui, e do Albano...
dos que tinham partido ano após ano,
cumprindo aquela dura e triste sina

da emigração... ou fuga clandestina
que os levava a cruzar o oceano,
no porão dum navio americano,
e daí para a cadeia... e para a ruína.

Todos os do meu tempo e criação,
e muitos que eu não tinha conhecido,
tinham partido atrás de vãs esperanças,

deixando os seus na triste condição
de povo destroçado, reduzido
a velhos, a mulheres e crianças.








—Não , isto já não é o que era dantes—
diz o Gonçalo, e a Florinda aprova
—estão todos como eu, de pés para a cova,
uma velhada às sopas de emigrantes...


Aqui, ela discorda: -Os tratantes
dos retornados são gente bem nova,
mas pede-se uma ajuda... uma ova!
Uns egoístas, uns comerciantes...


E assim, entre os queixumes do Gonçalo,
de que eu nunca pude consolá-lo,
e os ralhos rabugentos da Florinda,

vivia eu na quinta, infeliz,
a maldizer a ideia do Luís
que tinha sugerido a minha vinda...




Mal saía de casa e, se saía,
era para voltar mais deprimido
que o abandono em que tinha caído
a pobre vila, quanto mais o via,

tanto mais me custava e entristecia.
Ruas desertas que tinham perdido
o riso das crianças... e esquecido
as vozes do passado e a alegria.

Assim à minha volta foi crescendo
um vazio tão triste, uma orfandade
tão grande, tão total, tão desolada...

e foi-se, na minha alma, escurecendo
um espaço de sombra em que a saudade
se ia delindo aos poucos... apagada.



continua



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