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Contos-->IV - O Homem -- 22/05/2006 - 10:00 (José J Serpa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos








O HOMEM

A Primavera vinha-se instalando
em todo o seu frescor, toda a pujança.
No mar, tudo vagares, paz, bonança...
Em terra, hortênsias que vinham bordando

cada valado a ponto-cruz... sonhando
com promessas de azul em verde-esperança.
Na brisa andavam beijos de criança
e borboletas a brincar... bailando.

Findava Abril e, como por encanto,
desde aquele encontro no recanto
do parque, e desde que Milena, então

me prometera visitar a quinta,
toda a esperança que eu julgara extinta,
voltara a inundar-me o coração:



—Eu vou — dissera então — quando puder...
não sei bem como, que ela não desiste,
nunca me larga... mas eu vou!
— e insiste —
um dia destes, creia, eu vou lá ter!

E um dia veio sem ninguém saber.
Tentei beijá-la, mas ela resiste.
—Não. Olha, tu ainda não ouviste
a história toda. Quero-ta dizer!

Quando nos encontrámos no jardim,
Nada te disse – nada – sobre mim.
Falei só dela, só daquela... tonta.

Preciso que me ouças se quiseres,
José, ser meu amigo. E se puderes,
te peço que me ajudes nesta afronta
.








Sentámo-nos os dois sobre o balcão.
Milena tinha urgência em que a ouvisse,
e com razão, que tudo o que me disse
ali, tocou-me fundo o coração.

—Não tenho pai, também não tenho irmão.
Se algum amigo tive, foi tolice
da minha isolada meninice,
não tenho agora quem me deite a mão.

Eu já pensei em recorrer a alguém,
ao padre que a conhece muito bem,
para ver se a convence, se lhe pede.

Sozinha eu não consigo. Já chorei,
já implorei, ralhei, ameacei
matar-me... tudo em vão – ela não cede.




Não fala noutra coisa. É impossível
termos uma conversa que no fim
não acabe empeçando no ruim
do homem, neste casamento incrível!

E como se pôs má, ruim, terrível!
E isto é recente, ela não era assim...
Desde criança, fez tudo por mim
com aquele amor de mãe inexcedível

que só têm as mães. Quando eu perdi
a minha, era ainda bebé, não lhe senti
a falta. Só depois de ter crescido

é que a chorei... e não foi de a perder,
mas sim de a não lembrar, de não poder
sentir-lhe a falta e a dor de a ter perdido...








—Olhe, Milena, eu acho que você,
antes de mais, precisa de o ver,
ver e falar com ele. Nem sequer
o conhece, é um enigma, não vê

Você tem de saber bem o porquê,
os motivos que tem essa mulher.
E também o papel que possa ter
Esse homem em todo este banzé.

É que tudo isto é muito incoerente...
Como é que a sua tia, de repente,
depois de a ter criado em tanto mimo,

insiste agora assim nessa maldade,
querendo-a casar contra a sua vontade...
e com um homem que ainda é seu primo?




—O homem não me é nada. Esta tia
não é tia de sangue. O marido
era irmão do meu pai e foi ferido
na guerra da Guiné. No mesmo dia

em que meu pai morreu, também morria.
Esta desgraça deve-as ter unido
estreitamente e deve ter partido
o elo natural que as prendia

às ilhas. Emigraram. Josefina
que tinha já família na Argentina
partiu logo. E sem saber que faça ,

comigo para nascer, a minha mãe,
primeiro hesita, mas lá vai também
juntar-se à companheira de desgraça .










Milena interrompeu-se. Atrás de nós,
à entrada do terraço, um burburinho,
impondo-se ao bulício marinho,
assustou-a: —Nós não estamos sós...

Era a matrona a irromper feroz,
e a empurrar os velhos do caminho,
ar tresloucado, a grenha em desalinho:
—Viram-te pra cá vir e eu vi após.

Que fazes tu aqui, ó criatura?
Menina sem carácter, sem vergonha!
Agora andas pra i na galadura

por casa duns e doutros, depravada?
Quem te meteu no corpo tanta ronha,
queres tornar-te um coiro, desgraçada?



E você, meu galucho gargaludo,
quem o mandou raptar esta menina?
Mas eu... eu não me chame Josefina,
se você não pagar por isto tudo!

E com juros, seu rufião cornudo!
Há-de pagar-mas todas! E o sovina
deste velho caquéctico... e a cretina
dessa mulher-a-dias... ah, cão mudo!

Vê o ladrão, mas não é dela a presa.
Ah, sonsa... encobridora! Hei-de a ver tesa
como um barrote, em cima duma essa...


E era a vir contra nós de escantilhão,
com os velhotes a tentar detê-la...
Milena a esconder-se num desvão...








A cena era medonha. A Florinda,
estacara no meio do terraço,
puxando no Gonçalo por um braço,
que, prestes a cair, tentava ainda

agarrar a intrusa mal-avinda.
Milena agachada no espaço
do desvão duma porta que, de escasso,
mais parecia expô-la à infinda

raiva daquela tresloucada tia...
Aterrada, tremendo, trespassada
de medo... e nem tugia nem mugia.

Josefina parara junto dela
e curvava-se já engalfinhada
para a agarrar, mas nisto cai sobre ela...




A Guiomar: —Não, Josefina, não!
Tu endoidas-te? Ai, mas eu te amanho!

E, botando-lhe às grenhas o gadanho,
arrastou-a para a porta do saguão.

—Não pode ser. Assim ao empurrão!
Entrar assim em casa dum estranho?
Isto dá bronca... e eu também apanho...
Inda acabamos ambas na prisão!


E lá se foram tão subitamente
como tinham chegado. Um furacão
que por ali passasse, de repente,

e arrasasse tudo, não teria
causado em nós maior consternação,
maior pavor, mais profunda agonia.








Na rua havia gente. Ouvem-se vaias:
—Bruxa dum raio, tu inda dás cabo
dos pobres velhos, alma do diabo!
Ó Guiomar, aguenta-te, não caias,

agarra-a bem, levanta-lhe essas saias
e dá-lhe umas nalgadas nesse rabo...
Onde é que a levas, essa saca-nabo?
Como elas se arrepelam, ah, catraias!


Achámos graça, íamos rir... mas não...
chegou-nos um gemido tão sentido,
tão cheio de aflição e de ansiedade...

Era Milena ainda no desvão,
toda tremia, o corpinho encolhido:
—Ajudem-me, meu Deus, por caridade!




Àquele apelo de Milena acode
logo a boa Florinda diligente
ergue-a contra si e docemente
tenta leva-la. Mas Milena explode

num choro convulsivo... Ninguém pode
conter as próprias lágrimas. Somente
Florinda não chorava... e sorridente,
no gesto cómico de quem sacode

alguma sombra má que o encobrisse,
toma nas mãos o rosto de Milena
e olhando-a bem nos olhos: —Ouve cá,

já chega de lamúrias! Quem te disse
que eu gosto de te ver assim, pequena?
Já para a cozinha. Vou fazer-te chá...









Sentou-nos à mesa todos três,
deu a Milena dois beijos na testa...
maternalmente: —Isto assim não presta!
Assim, lavada em lágrimas, bem vês,

ainda vou pensar que tu é que és
a única culpada desta festa.
Mas diz-me lá porque é que aquela besta
da Guiomar... aqui... fez... o que fez?

E a outra, a Josefina, entrar assim...
tão desencabrestada, um ar ruim
de quem vem a matar... mas que espavento!


Milena então contou-lhe do parente
da tia Josefina... o pretendente...
daquele inconcebível casamento.




—Da família, aqui, da Josefina,
só há cá um que me venha à mente.
Dos outros, tudo o que era seu parente,
e eram muitos... todos na Argentina.

Para o que cá ficou, foi uma mina
a emigração de toda aquela gente...
casas, terras, tudo, finalmente
veio parar às mãos deste sovina.

Casou pra casa do Manel Nabais
— outro ricaço — inda enricou mais:
não há por cá ninguém com mais valor.

A própria Josefina, o que era dela,
o prédio que ela tinha na Portela
está tudo em poder deste senhor.








É o Francisco Pana, o Serrilha.
Enviuvou há muitos anos já
e nunca mais casou. É mau. Não há
onzeneiro maior em toda a ilha.

Quando a mulher morreu, pegou na filha,
pô-la nas freiras novas... foi de lá
que ela se casou. Hoje é tão má
como ele. Uma agiota. Empresta e pilha

os bens dos infelizes que a desgraça
obriga a empenhar seja o que for...
não larga mais é como uma carraça.

Ti Canastra perdeu a lancha assim,
juro de juro... e o grande estupor
levou-lhe a lancha, a casa, tudo enfim.




Agora se ele quer casar contigo,
Isso não sei... ele anda por aí
muito boato, mas esse nunca ouvi...
Mas eu tiro isso a limpo. Ele é amigo

do padre... bom, deixa isso comigo.
Mas essa Guiomar que veio aqui,
isso é má rês. Eu quando lá servi,
para ela me pagar foi um castigo...


A chaleira chiou e a Florinda
serviu o chá, mas não refeita ainda
de toda aquela enorme comoção,

Milena não quis chá, quis foi partir
—Meu Deus que horror! Eu tenho de me ir
Deus sabe o que me espera – uma prisão...








Ah, nunca mais me deixam vir à vila!
Depois deste deboche... que loucura!
E com aquela horrível criatura
sempre a seguir-me como um cão de fila...

Ah, nunca mais!... Tentei persuadi-la
a ficar: —Fique. Volta noutra altura.
Olhe, Milena, aqui está segura...
a sua tia... é só preveni-la

que você fica cá com a Florinda,
que fica uns dias... ou, melhor ainda,
diz-se-lhe que a Milena está doente,

que não pode ir, tem febre, apanhou frio...
que aqui na costa, às vezes, o sorrio
do mar consegue adoecer a gente .





Riram-se os três do meu infantil zelo
que teve enfim apenas o condão
de aliviar um pouco a situação,
lançando ao tenebroso pesadelo

uma réstia de humor... e de fazê-lo
em total inocência e compaixão...
Milena, claro, foi-se embora então,
mas só depois de ouvir-nos um apelo

para ter muito cuidado e ser prudente
lá na pensão, com toda aquela gente.
Florinda prometeu que ia lançar

as bases dum contacto bem seguro.
Alguém lá da pensão que de futuro
nos pudesse, a miúdo, informar.





Continua
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