A fábula do Gato Barbudo
Aristides Athayde (*)
Um fazendeiro plantava milho e armazenava o milho no paiol. Com o milho, o fazendeiro alimentava as galinhas, os cavalos, as vacas, ovelhas e todos os outros bichos da fazenda. Os bichos da fazenda, por sua vez, garantiam ao
fazendeiro o seu sustento.
Os ratos insistiam em roubar o milho armazenado no paiol.
Quem cuidava do paiol era um cachorro. Um cachorro preto e grande. Quem cuidava do paiol antes do cachorro cuidar do paiol era o pai do cachorro e, antes do pai do cachorro assumir a sua função, quem cuidava do paiol era o
avô do cachorro. E sempre foi assim, a família do cachorro cuidando do paiol e não deixando que os ratos comessem todo o milho.
Era um trabalho duro: os ratos não acabavam nunca e, chovesse ou fizesse sol
lá estavam para roubar uma espiga aqui, outra ali. O cachorro não tinha folga e para fazer frente à rapidez dos ratos, mantinha os músculos em forma e os reflexos ligeiros.
Em compensação, o cachorro adorava o seu trabalho.
Afinal, se não fosse por ele, os ratos já teriam há muito tempo comido todo o milho e acabado com a comida dos demais bichos. Em reconhecimento ao seu trabalho, a bicharada elegeu o cachorro o presidente da fazenda.
E claro que o mando do presidente não era perfeito, discussões surgiam, a
insatisfação aparecia. Mas, de uma coisa todos podiam ter certeza: quem trabalhasse, ganhava o seu quinhão.
Um dia, apareceu na fazenda um gato. Um gato magro e bigodudo. Tão bigodudo que, tivessem barba os gatos, esse poderia ser um gato barbudo. O cachorro, como todo cachorro que se preza, ciente da sua função e do valor do seu
trabalho, latiu para o gato, quis que o gato fosse embora. O cachorro sentia que aquele bicho de ar debochado, malicioso, sem muito gosto para o trabalho não poderia ser grande coisa. O fazendeiro não ouviu o que o cachorro quis
dizer, e o gato foi ficando, foi ficando, foi ficando...
O gato, que não trabalhava (que, aliás, nunca tinha trabalhado), tinha bastante tempo para conversar com os outros bichos da fazenda. E chegava de mansinho junto da bicharada, magrinho, fraquinho, e começava a miar. Os
outros bichos, muito bonzinhos, paravam para escutar o que o gato tinha para
dizer:
- Miau, miau, ai, ai. O que vai ser de mim. Não existe lugar nesta fazenda para um bichinho como eu, tão injustiçado, tão fraquinho! Veja, não posso trabalhar, o sistema é tão injusto! Só por que não nasci forte como o senhor Seu Cavalo, só por que não posso dar leite como Dona Vaca, não posso trabalhar! O Seu Cachorro, o dono do poder, não avalia essas contingências
históricas e me mantém mergulhado nessa penúria...
- Mas, Seu Gato, e aquele trabalho que lhe ofereceram na casa, como guardião da dispensa?
- Não aceitei, Seu Cavalo. Na verdade, prefiro continuar minha luta por condições mais dignas!
No fim, depois de tanta ladainha, os bichos começaram a acreditar o gato. A sentir pena do gato.
E o gato, que se dizia injustiçado, que se fazia passar por vítima, que era explorado pelo sistema e, principalmente, pelo cachorro que lhe negava tais milhos, conquistou a simpatia dos bichos. E fez com que os bichos
acreditassem que ele, tão sofrido, tão maltratado, iria garantir, a todos, melhores condições de vida.
Tanto miou, tanto fez, que um dia os bichos, revoltados com a situação de absoluta miserabilidade do gato e com a injustiça social reinante na fazenda, resolveram destituir o cachorro.
E de nada adiantou o cachorro insistir que cuidar do paiol não era para qualquer um. Que ela havia treinado muito para assumir essa função. Que os ratos não eram mole, e não dariam trégua assim tão fácil.
Afastaram o cachorro e, por unanimidade, colocaram no seu lugar o gato.
Os bichos sabiam que o gato dantes nunca havia trabalhado. Que não tinha sequer se preparado para assumir a função mais importante na fazenda.
Mas acreditaram que o gato, por ter sofrido mais do que ninguém com a política do cachorro, traria ordem e moralidade à administração do paiol.
No começo, tudo foi festa: no lombo de Seu Cavalo, viajava o gato para outros sítios e fazendas, falando sobre a sua conquista. Contava aos outros bichos que agora a fazenda vivia uma nova realidade. Tanta era a festa, tanta era a euforia, tanta era a esperança, que os bichos não perceberam que mais e mais gatos não paravam de chegar.
Gatos de todos os jeitos. Gatos vindos de todas as partes. Gatos, que em comum com o gato-presidente, nunca tinham trabalhado na vida.
E o gato-presidente, que curiosamente chamava todos os demais gatos de companheiros, precisava arranjar uma função para essa gataiada.
Então, um dia, quando Seu Cavalo apareceu para puxar o arado, percebeu que, no seu lugar, um bando de gatos ocupava os arreios. E Dona Vaca, que produzia o melhor leite da região, foi expulsa da estrebaria pelos companheiros do gato-presidente. E as galinhas, no galinheiro não moravam mais: nos poleiros, gatos e mais gatos fingiam estar botando ovos.
E o gato-presidente remunerava prodigamente todos os seu companheiros.
Afinal, um trabalho em prol da coletividade desempenhavam...
Como era de se esperar, o gato-presidente (que nunca havia trabalhado na vida) não conseguia cuidar do paiol. Os ratos logo perceberam a situação: atacavam, como nunca haviam feito, o milho da fazenda.
Tão complicada ficou a situação que o gato-presidente precisou conversar com o seu conselheiro. Um gato de óculos, que miava de um jeito esquisito, puxando demais os "erres":
- Miarr, presidente. A coisa tá feia. Em nome da governabilidade da fazenda, temos que nos aliar aos ratos!
- Companheiro, os fins justificam os meios! Devemos passar aos demais bichos uma imagem de ordem e tranqüilidade!
E os gatos fizeram um pacto com os ratos: os ratos fingiam que não roubavam o milho, os gatos fingiam que caçavam os ratos. Dessa forma, a bicharada acreditava que os ratos estavam sendo combatidos, e os ratos, que por baixo
do pano recebiam suas espiguinhas, mantinham os gatos no poder.
Entretanto, o milho foi acabando. E os bichos, que haviam acreditado na conversa do gato-presidente, com fome, começaram a ficar insatisfeitos. E foram todos reclamar com o gato-presidente.
Tarde demais. O paiol já estava infestado de ratos; ratos por toda parte; ratos em tudo. Ratos e gatos, gordos, barbudos, aproveitando tranqüilamente o que havia sobrado de milho no paiol, enquanto o resto da bicharada, os
bichos que sabiam trabalhar, que davam duro, ficaram sem comida.
Obs: Qualquer semelhança dos gatos da fábula com os gatos de verdade é fantasiosa. Os gatos são animais simpáticos, que, como nós, ocupam seu lugar na ordem natural das coisas. Diferentemente de muito petista que existe por
aí...
(*) Aristides Athayde é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba.
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