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Contos-->" - Corcunda, manquitó de uma perna só..." -- 28/06/2006 - 18:18 (António Torre da Guia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
" - Corcunda, manquitó de uma perna só..."



Advogado RAMADA CURTO

O juiz tranquílo, conselheiro Victor Coelho, citou em tempo o advogado Ramada Curto como um eminente e insigne casuísta que teve o privilégio de conhecer nas Caldas da Raínha: - Era "um" autêntico e imparável "das Caldas" que sabia com precisão onde se metia !...

Amílcar da Silva Ramada Curto, advogado, dramaturgo, propagandista republicano, ninistro das Finanças, de 30 de Março a 30 de Junho de 1919, e do Trabalho, de 21 de Janeiro a 8 de Março de 1920, no governo de Domingos Pereira. Também deputado, eleito em 1922 pelos democráticos, passou adiante a militante do Partido Socialista. Colaborou, nos primeiros tempos do regime, com o salazarismo. Concordando com a auto-dissolução do PS, elaborou um projecto de Carta do Trabalho. Conhecido e famoso pela frequência das tertúlias político-literárias de Lisboa, ficou célebre pelos seus ditos. Num deles, proclama que "a verdadeira vocação do português é socializar os prejuízos e individualizar os lucros". Esta frase, em 2006, é interessantíssima. Constitui uma espécie de praga que, quase um século depois, ainda não passou.

Ei-lo, memorizado, na defesa da causa que, sem previamente o saber, o catapultou num ápice para o dilecto apreço de quantos o conheceram e de quem, apenas através do bis-a-bis, o considerou cidadão exemplarmente benquisto.

O tio Manel, um humilde aldeão de cinquenta anos, tinha de nascença uma perna mais curta, o que lhe provocou, ao longo da sua suada existência, um sensível acorcundamento. Era carpinteiro, profissão que de seu avô, perpassando por seu pai, herdara com orgulhosa devoção. A sua oficina, contígua à sua modesta habitação térrea, recheada de toda a espécie de utensílios e quincalharia, ocupava-lhe quase todas as horas da sua vida. Vezes havia que, vencido pelo cansaço, se deixava adormecer extenuado sobre um monte das fitas que retirava da madeira. Só quando a noite caía, de Verão ou de Inverno, é que o tio Manel fechava a pequena e macerada porta àquele seu dilecto sítio.

A miudagem da aldeia, sempre que regressava da escola, tinha o pernicioso hábito de gozar com o tio Manel. Os garotos chegavam-se à entrada da oficina, espreitavam e, chamando-lhe "corcunda, manquitó de uma perna só", atiravam-lhe com leivas, pequenas pedras e fugiam. O tio Manuel, com plácida paciência, ia suportantdo tais diabruras, limitando-se a afugentar quanto possível os incómodos brincalhões.

Um dia, em que de martelo e cinzel, na sua assídua faina, preparava uma tábua, os garotos entraram-lhe de rompante na oficina a insultá-lo: " - Corcunda, manquitó de uma perna só... Corcunda, manquitó de uma perna só...".

Sem saber como, completamente fora de si, o tio Manel lançou o martelo que tinha na mão sobre os vultos que já se esgueiravam. Sem propósito, a ferramenta ricochetou no umbral e, atingindo em cheio o Zézinho da Carriça na nuca, matou-o.

Daí a instantes, a população local, indignada e aos berros, cercava a casa do Tio Manel, preparando-se para fazer justiça por suas próprias mãos. Valeu na circunstância o regedor da freguesia, que também tinha acorrido, impor-se com veemência e evitar que uma outra desgraça sobreviesse.

Acalmada de momento a situação, o regedor, no dia seguinte, apresentou o tio Manel ao delegado judicial do concelho, determinando este a prisão preventiva do infeliz.

Entretanto, a ocorência, espalhando-se de lés a lés, chegou ao conhecimento do dr. Ramada Curto, na altura jovem advogado à procura de alicerce profissional. Este, de pronto, ofereceu-se gratuitamente para defender o Tio Manel em tão trágica causa.

O tribunal estava à cunha, com a assistência ansiosa por seguir todos os pormenores do julgamento. Havia quem entre dentes opinasse que só a morte poderia resgatar um crime daqueles.

Cumpridas as diligências preliminares, leu-se a acusação e os diversos testemunhos foram ouvidos. De seguida, em empolado discurso, o delegado do ministério público pediu 20 anos de pena maior para o tio Manel, acusando-o de ser uma pessoa sem sentimentos e de baixa moral.

Chegou então a vez do advogado de defesa intervir. O dr. Ramada Curto ergueu-se do seu assento muito lentamente e, muito lentamente também, compôs nos ombros sua toga. Folheou com demorada atenção um dossier que tinha diante de si e, entretanto, pediu ao oficial de diligências o obséquio de lhe trazer um copo de água. Então, voltou a sentar-se muito lentamente, com um irónico sorriso impresso em toda a face.

Logo que o copo de água lhe foi servido, tomou-o, ergueu-se de novo, bebeu um trago e, cofiando o bem aparado bigode negro, dirigiu-se verbalmente à sala, toda posta em inquietante silêncio:

- Senhor presidente, meretíssimos acessores, senhor delegado, senhoras e senhores...

Suspendendo a palavra e, ainda muito lento, tomou o copo para beber serenamente mais um golo de água, e mais um, e mais outro... Voltando à palavra, repetiu forte, mas muito, muito lentamente:

- Senhor presidente, meretíssimos acessores, senhor delegado, senhoras e senhores...

O juiz presidente, de queixo impante e semblante tenso, mexia-se e remexia-se em seu cadeirão em face da assistência que se tinha de respiração suspensa. Mesmo assim, Ramada Curto insistiu repetir mais uns golos de água, lento, muito lento, e uma vez mais também ia proclamar à sala:

- Senhor presidente, meretíssimos...

- Alto lá, senhor doutor - interrompeu severo e indignado o juiz - não lhe permito que brinque com o tribunal. O senhor está a tornar-se fastidiosamente insuportável. Passe, sim, de imediato à defesa do réu ou então darei por concluída a audiência...

Ramado Curto, não se fez rogado:

- Pois... Senhor presidente, está visto que a minha esmeradíssima correcção, levada longe de mais, não infringindo lei alguma, provoca o que provoca e consegue até irritar V.Exa, a ponto de evocar ameaça que é uma nítida infracção ao código jurídico.

O que dizer então da condicional situação do meu humilde constituinte, anos e anos a fio suportando o insuportável, esgotando desprevenidamente aos poucos a paciência que dantes e até à fatídica data nunca lhe faltou.

O meu constituinte não cometeu crime algum. Ocorreu tão só um nefasto acaso de que ninguém pode ser acusado. Foram as circunstâncias da vida que criaram o dolo, um estúpido acidente, como estúpidos somos todos quando nos deixamos cegar perante causas cuja inevitabilidade só nos deveria merecer solicita piedade e conformação.

António Torre da Guia

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