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Cronicas-->Eu confesso (A Vida S.A. ) -- 18/06/2004 - 18:49 (Sergio Marcondes Cesar de Araujo Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Eu confesso! Arrependo-me da vida que levei! Não do que fiz com e pelos meus, esposas, os meninos, os amigos, mas do que fiz na minha verdadeira vida, a que escolhi, à qual me dediquei, com a qual me comprometi. A vida corporativa.
Eu não pedi para nascer, para ser filho da Norma e do José, para ser brasileiro ou sequer paulistano. Não tive oportunidade de batalhar pela escolha de minha família, sequer do ambiente social em que fui jogado. Já na minha vida corporativa as coisas fluíram de forma diferente. Escolhi a vida que queria, me ofereci e lutei para fazer parte das instituições que me interessavam. Entrevistas, currículos, lobbies e até orações, promessas e simpatias fizeram parte do rol de recursos que utilizei para buscar minha identidade, a verdadeira.
Fui em busca do meu poder, traçando objetivos claros, identificando metas e criando rivais de acordo com interesses que apenas me atendiam. Adotei a empresa e fiz com que ela me adotasse. Dei uma banana para leis, éticas e outras baboseiras. Preferi adotar o discurso de lei da selva para justificar e patrocinar minhas iniciativas na escalada profissional.

A corrida era clara, tratava-se de uma guerra com todos os contornos clássicos de uma. Sabia que aqueles com quem eu almoçava hoje seriam meus desafetos amanhã, que as mãos que eu apertava ainda tentariam me agredir. Mas guerra é guerra, né!? Vivia num processo de afunilamento permanente, e se eu não matasse, seria candidato a morrer. Levava comigo, ecoando em minha mente todos os dias, a todas as horas, aquele trechinho do poema de Gonçalves Dias, que falava na vida como um "...combate que os fracos abate ...". E se na vida vazia, besta e simples é assim, imagine você como é na vida corporativa!

Agora, nesse momento, olhando em perspectiva tudo o que fui, e talvez ainda seja, me arrependo. Arrependo-me claramente do que fiz, do que fui e do que sempre serei. Sempre. Mesmo depois de existir ainda serei lembrado e citado pelo legado maldito que deixei no mercado, esse misto de Deus e Universo, por onde trafeguei como um soldado que nasceu para general, e como um general que sempre o foi. Ainda sou capaz de me embevecer só com as lembranças daquela existência, dos olhares respeitosos, das adulações descaradas, dos mimos receosos, das reuniões sórdidas em madrugadas conspiradoras, do vai e vem nos aeroportos, das prostitutas caras, dos bónus redentores, das vitórias pessoais, das quedas dos rivais. Tudo isso ainda me emociona. Ainda consigo sentir o aroma do café se misturando ao ar condicionado e ao cheiro de carpete novo nas salas de reuniões dos hotéis. Ainda acordo com sobressalto, e busco ao redor algo que me remeta àqueles dias, um terno separado ao lado da cama, um telefonema urgente, uma reunião para a qual esteja atrasado. Ai, como eu sinto falta de falar em público, dos olhares atentos, da paparicação no intervalo, das risadas provocadas pelas piadas vencidas. Ai, que saudades de mim!
Mas, mesmo assim me arrependo. Sofro arrependido ao ver no que deu tudo aquilo, ao ver aonde vim parar.

Se posso citar algumas poucas memórias, fragmentos que levo avulsos nos bolsos da calça nos dias de hoje, dos quais poderia extrair o sumo do cara que fui nessa encarnação corporativa, quando meu sobrenome era seguido não por Junior, mas por SA, gostaria de fazê-lo agora.

Acho que minha primeira aparição no mundo dos vencedores deu-se numa reunião para decidir uma campanha para um produto. Eu era pouco mais que um estagiário, com minhas ambições já claras, mas só para mim. Sugeri, sem ser solicitado por ninguém, doar parte do faturamento para programa contra o càncer. E divulgar isso fortemente. Aleguei que ainda faturaríamos alto no caixa, pois poderíamos enrolar para repassar a grana, afinal, "cavalo dado não se olha os dentes". Fui promovido em semanas, e alçado à condição de estrela ascendente! Passei a ser visto como talento promissor, e confesso que me esqueci do termo que definia minha situação frente aos outros, um termo em inglês, algo como "high potencial". Estava dada a largada.
Embalado pela euforia advinda dessa promoção, sugeri demitir 20% do departamento de produtos, onde trabalhava, e sobrecarregar o médio-escalão. "Hoje em dia a vida corporativa não aceita mais horário comercial como limite", eu disse. Lembro dessa frase sair de minha boca como se fosse ontem. A vida corporativa já me era clara, e natural. Era a minha natureza. Minha moral, na empresa, continuou subindo, assim como minhas expectativas.

Dois ou três anos depois, dei meu definitivo tiro na mosca. Já com poderes para decidir, defini uma mínima piora na qualidade do produto, que na escala de vendas daquele momento poderia significar um bom aumento de margem, e com uma pequena redução de preço, aumentaríamos as vendas, levando mais lucro ainda para aquele produto, que estava estagnado havia um bom tempo. Ponto pra mim! Os poucos consumidores insatisfeitos com a queda da qualidade toparam com o mesmo processo nos concorrentes, que nos copiaram, mas já era tarde. Os que não quebraram, com o discurso romàntico de manutenção de qualidade, creio que foram dois, perderam espaço para nós. Senti no bolso e na alma o peso do "market share". Eu já estava casado nessa época, meu primeiro casamento. Às vezes até me esqueço de meu primeiro casamento. Mas foi um período bacana. Foram três anos agitados, e felizes creio, mas a Bia não soube respeitar os espaços, nem valorizar as oportunidades que tínhamos. Azar, dela, talvez meu. Do pequeno Vitor com certeza, pois perdeu a chance de ter uma infància abastada, indo viver de pensão com a mãe, que viria a casar-se novamente com um professor de inglês. Isso é vida? Coitada! Mas, como diziam os mais velhos - A cabeça não pensa, o corpo padece!

Nessa época entrei numa fase divertida, passei a investir na minha imagem, e a perseguir alucinadamente adjetivos como agressivo, impiedoso, cruel, duro, racional e frio. Isso só podia ser prerrogativa de quem estava em evidência, em destaque no meio de muitos. Sorvia cada predicado desses como se fossem fontes de juventude eterna. Eu conseguia ser o que eu queria ser, planejava ser visto de tal forma, e a execução era a minha arte.
Por isso que digo que aquilo era outra vida, uma vida na qual eu era senhor de mim mesmo, criando uma imagem e vivendo a mesma. Eu era ao mesmo tempo criatura e criador, servo e senhor no mundo em que vivia.

Sempre existe um chefe, invariavelmente mais que um, e nunca me esqueço da regra número um: faça-o gostar de você, custe o que, ou quem, custar.
Engraçado isso! Mas era assim que tinha que ser. Sempre havia um chefe, e isso era bom. Talvez isso assuma contornos paradoxais, mas minha sede por poder sempre reconheceu a existência necessária de um superior. Isso torna o tráfego mais simples de ser definido, planejado. Ser o topo da cadeia alimentar é por demais perigoso. Ficar nas mãos do mercado é traiçoeiro, e isso nunca me seduziu. Eu queria a longevidade, queria me perpetuar naquele ambiente. Sonhava em ser eminência-parda, em controlar meus superiores com suas dependências covardes e preguiçosas. E assim cheguei aonde quis.
Eles me adoravam. Os muitos chefes que passaram ao longo dessa vida me amavam. Nunca tive problemas com nenhum, nem com os que sorrateiramente derrubei - esses nunca souberam o que os atingiu. Podem me chamar de puxa-sacos, não é novidade para mim esse tipo de rótulo, atribuído por perdedores que não sabem utilizar-se de estratégia para vencer. Isso é típico dos que se perdem em viver uma vida corporativa cercada de regras, leis e éticas que só valem para o mundo social, aquele dos shopping-centers, missas, futebol e televisão. Viver um mundo com as regras de outro para mim sempre equivaleu a ir ao Pólo Norte de bermudas e camiseta, só porque se é brasileiro.

Foi nessa época que me assumi como um serviçal do capital, reconhecendo finalmente que o lucro era o sentido de minha vida, e sem ele eu não era, nem jamais seria ninguém. Passei a quantificar meu sucesso pelo lucro, e isso me foi valiosíssimo, pois a partir de então nunca mais me perdi frente aos outros. Como o lucro era o meu norte, e em tempo integral ele me era obsessão, fiquei inquestionável. Aprendi o que poucos sabem, se o lucro é o seu credo, e o capitalista o seu empregador, você pavimentou sua estrada para o Olimpo. O mercado passou a me reconhecer, a me amar. Nesse período passei a me sentir disputado, querido, um verdadeiro ativo das empresas que me tinham sob contrato. Ainda ecoa na minha memória as comparações que eu me fazia com jogadores de futebol famosos, disputado pelos maiores clubes do mundo. Minha presença num time era sinal de vitória. Isso era a vantagem em não ser o maioral na empresa - a capacidade de mobilidade. Os chefões acabam por ter muita identidade com a empresa, e isso dificulta seu trànsito no mundo das pessoas jurídicas. Eu não! Eu me identificava com o sucesso, e o levava comigo para todo canto, para qualquer empresa, em qualquer mercado. Eu era quase a pedra filosofal de terno e gravata.

Aprendi que tudo na vida é atitude, e atitude é uma prerrogativa de quem age, portanto não me sentia nada mal em ser superior aos demais. Arrogante é como os inferiores chamam aos que eles não conseguem bater. Se você trata um funcionário como um igual, se rebaixa. Se o trata como um inferior, coloca-se acima. Atitude é decidir onde quer ficar. E eu ficava acima!
Cresci e apareci. O que os outros achavam era admiração ou inveja, e eu não tinha tempo para me incomodar com coitados admiradores ou com os frustrados invejosos.
Devorava as revistas de negócios, ou de "business" como preferia, e ainda prefiro, chamá-las, como se fossem doces ao final de um casamento. Adotava termos recorrentes nas matérias das mesmas, e criava uma intimidade fantasma com os executivos que frequentavam suas páginas. Não parava de sonhar com aquela capa com uma foto minha, de terno escuro, gravata reluzente e uma chamada perguntando sobre se alguém imagina qual pode ser meu próximo passo. Como se sucesso pudesse ter destino, como se eu fosse um dia alcançar algo. Não me achava nascido para ser o Sol, me via nascido para ser a Estrela Vega.

Eu me portava como um cachorro mimado, que via todos os outros cachorros como rivais em busca do que era meu. Todos eram potenciais inimigos, desafetos, e era assim que os tratava, antes que fizessem o mesmo. Com o tempo, a raiva passava a ser respeito, e os pobres coitados preferiam estar do meu lado que tentando me bater. Os que tentaram enfrentar minhas ambições eu subjuguei, fazendo das artimanhas mais sórdidas ferramentas de uso frequente na minha escalada rumo ao sucesso.

Não vou mais me alongar nessa breve confissão. O que eu queria era ter um pouco de indulgência, um pouco de redenção. Eu busquei esse momento para tentar obter perdão pela vida que vivi, a vida errada que busquei e nunca encontrei. Aproveito para confessar que esses cacos de memória que apresento como emblemas da vida que levei me trouxeram um certo frescor na alma, ainda mais agora em que meu corpo encontra-se podre e inerte. Mas isso não me envergonha.

Desculpe tomar-lhe tempo numa manhã tão bela de sábado, mas precisava falar com alguém, e não o faço já há dias. A solidão nesse momento é reveladora, e assim solicitei sua visita. Espero não lhe desapontar com a ausência de uma lista de pecados católicos, mas não posso identificar pecados numa religião pela qual não vivi. Não vivi as regras do seu Deus, vivi outras, e não haveria nenhum representante do mercado que viesse aqui fazer esse papel que o senhor faz.

Sabe, padre, houve uma ocasião em que um sujeito, do qual não me lembro do nome, coitado, me disse que eu era o rei da ironia, que eu usava minha dissimulação para machucar as pessoas e tirá-las do sério. Acho que ele viu bem essa característica em mim. A ironia sempre me foi natural, deliciosamente disponível.
Permito-me uma última ironia, uma auto-ironia, fazendo uso de um mal-gosto que nunca me soou vulgar:
Se arrependimento matasse.....!
E mata, padre! Mata sim!
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