Número do Registro de Direito Autoral:131013761139815500
Lua Foice
Enquanto olhava a lua da janela do hospital, lembrava as horas incríveis que haviam vivido.Muitas horas felizes, muitos anos,muitos dias natais,dias festas de escola,dias-família e, também, chatos almoços formais. Sempre juntos.Ou quase.Anos dançantes e filhos, anos difíceis e ternos,anos... Da janela quase cortante a lua impávida furava o céu.A meia lua fininha doía em suas costelas subindo em nó à garganta e fincava sua unha fria até fazê-la chorar.Mais uma vez, chorar.Raúl nesses tubos invasores que o enchiam como raízes : nos braços, nas narinas, na traquéa...os olhos vítreos quase fechados, a face suada e fria quase cinza. O som rítmico e aterrorizante daquele aparelho cruel a segurá-lo na Terra sem pudor. E ele? Onde estava? Sempre pedira para não terminar seus dias assim; e ela: onde estava? Ela- ela mesma-que nada podia fazer?
Lembrou das últimas palavras que ele emitira, da dor arrastada que as tornara fugitivas e baixinhas,suplicantes- e tão desejáveis para ela, que nunca mais iriam acontecer.Nunca mais ouviria a voz grave a sussurrar-lhe no ouvido o carinho, a raiva, o contato.As últimas...essas tinham sido inesquecíveis ("te amo, bem"; "vou mas te amo") incompreensíveis em parte: " vou tocar meu piano agora pelos dedos de João"...João o neto de seis anos e a única criança da família que vinha vê-lo sem ter mêdo,subindo à cama e tocando sempre seu rosto com uma intimidade inabalável. João confundia os adultos que nada entendiam : era curiosidade? Era carinho? Não permitia que o tirassem enquanto não acabava de olhá-lo, como esfinge, tocando suas mãos geladas e esfregando seus dedos nos do avô...duros e cansados embaixo do cobertor.
Agora o vô não falava mais, não estava (não comparecia ao exame) ele se rendera a algo mais forte que o João- algo sombrio que as crianças nem sempre conseguem entender- mas não o João: João entendia porque entendia, porque nada perguntara e apenas sabia: descia da cama, saía do quarto e corría pelo corredor do hospital como se algo tivesse conseguido levar desse contato esfíngico inexplicável. "Mãe"; disse Analice -mãe do João- à Raquel- "sabe o que fez hoje o João? Tocou piano. Abriu o piano que eu não tóco mais, e tocou- tocou duas músicas simples; coerentes, bonitas- eu nem sei como fez, a gente nunca ensinou. Ele nunca aprendeu..." Raquel voltou-se à janela- tocou o vidro frio...mais uma vez chorou. E percebeu que Raúl fugira : voara com a brisa na presença da lua- foice impávida a testemunhar que finalmente, ele a deixara só... O aparelho cansativo fez soar o alarme, alguns médicos chegaram e correram à beira da cama...O choro da filha, o nó na garganta e aquela sensação de liberdade e dor.
No corredor, o neto- conversando calmamente com o avô. Agora sim, ele acenando, indo embora- como um pássaro leve, como pianista obcecado, enrolando seus mil dedos até virar uma nota só. Uma nota de lua e foice a roubar-lhe para sempre o coração...