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Contos-->O HOMEM -- 01/02/2001 - 10:50 (Eloá França) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Acordava todo dia cedo e esquisito. Abraçava a mulher, fazia-lhe uns carinhos, colava o corpo no dela, o pau duro, nem sempre de desejo por ela, mas muitas vezes transavam, e só depois é que levantava. Ia para o chuveiro. A água o despertava, despertava inteiro, até mesmo a angústia. Algumas lágrimas. Quase todos os dias era assim. Há quantos anos? Desde sempre.

Pensava na droga de vida que tinha. Tantas perdas, uma família meio marcada pela tragédia, sempre a morrer gente. E esta coisa de dizerem que as pessoas se acostumam, ficam fortes, que quem já passou por isto sofre menos. Como se uma perda preparasse para a outra. Tudo mentira. Ficava era cada vez pior. Cada vez mais frágil, mais triste, mais difícil de continuar a vida. Quando saía do banho havia uma implicância, um mau humor, apontando as coisas do quarto que estavam arrumadas do jeito diferente do que ele pensava ser o certo. O lençol virado, a ponta do cabideiro fazendo ponta no paletó, os sapatos que não estavam bem engraxados. Ficava enfurecido. Reclamava alto. Dizia palavrões. Tinha gestos brutos. Martirizava a mulher do martírio que lhe corroía a alma, os dias, a vida.

Vontade de falar para ela: eu te odeio, mas sem você... Não era possível viver do jeito que queria. Não tinha onde expressar a dor das perdas. Pesadelos. Medos. Pânicos. Olhava para ela, para os filhos, o risco de que acontecesse com um deles. Sentia um amor profundo.

Muitas vezes ligava para os parentes. Era medo de ter morrido mais um. Tinha calafrios, pressentimentos, e saia ligando para todo mundo, para se certificar de que estavam todos bem. Estes se tornavam os melhores momentos porque ria de si mesmo, brincava, fazia piadas mórbidas.

Tinha humor. Enviesado. Desconcertante para os que nunca viveram tragédias, mas que se arrepiam de pavor de que estas lhes aconteçam, ou os que não permitiam a dor. Estes também não entendiam quando ele falava sobre as mortes, as histórias, as circunstâncias que as cercaram, ria, enumerava uma a uma.

A mulher dele e os filhos também não lhe entendiam, mas havia uma boa dose de respeito. Os filhos que eram mantidos afastados como se fossem de outra família, que ele não deixava ser daquela por uma superstição de que, se os mantivesse afastados, eles não se contagiariam daquele aspecto trágico da família.

Depois era a hora de ir para o trabalho. Ia frágil, miúdo, perdia a robustez. Todos os seus dias eram dedicados ao trabalho desagradável de funcionário. A emoção rolando de um outro lado, percepções do mundo que, se lhe fosse dada a habilidade com qualquer arte, o conteúdo latejava denso, forte e múltiplo, ele teria sido um fantástico artista, perceptivo, sensível. Não compacto.

O sofrimento lhe amadurecera as percepções. Percebia as pessoas no momento em que elas se aproximavam. Notava-lhes os tipos, os jeitos, os humores. Todos os dias via as mesmas e repetia os mesmos trabalhos... A rotina fazendo a tristeza ascender e decair. Às vezes uma mulher de meias finas o animava e a alegria se instalava. Momentos, dias, sonhos.

Bebia no sábado de manhã. Sentia falta de cheiro de gente, de gestos simples, de rua, de sol, de ver gente falando, perdida, vagando, de ver dor, história, intimidade.

De diferente haviam as férias. Transformava-se num homem romântico. Podia-se dobrar ou não o lençol... Mesmo que no meio fosse à procura de programas mórbidos, de cemitérios.

Voltava das férias animado. Depois a rotina o embrutecia, desmanchava os sonhos, as ilusões. Cansaço. Cansaço. Não podia ver alguém lendo que se magoava daquela leitura não lhe ser possível, ele sempre cansado, estressado. E nem era vontade de morrer. Contava os dias, os meses, os anos para aposentar.

Infeliz, de uma infelicidade intrínseca. Despreparo. As rasteiras. Olhava a mulher, os filhos, a felicidade deles não terem aquela semente trágica. Eles diferentes. Eles assim. Depois sentia falta, falta do outro lado, dos iguais, dos que já perderam muito.

Os melhores dias era os em que ia visitá-los. Depois de andar Kms e Kms, voltava exuberante. Agradecia por aquela mulher e aqueles filhos não serem daquele jeito, não darem a impressão de morte iminente. Voltava a ficar calmo, a gostar profundamente deles, a não ter a menor impaciência. Voltava a ter aquela rigidez maleável, provocada e diluída pelo desespero.
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