Ainda trêmula pela sensação de perda, Renata perambula pelo jardim do casarão antes de afundar suas mãos na antiga arca da avó.
Retira uma boneca. Abraça-a contra o peito. A face de louça a encara como dantes, com os olhos de vidro ainda perfeitos. A mesma expressão. Incrível! Parece arrebatar além do que está sendo avistado.
Não! Não adianta se iludir. Trata-se de uma velha boneca. Sem sentimentos, sem emoção...
Um retrato: trapos de panos de seda em corpo tecido de estopa e face de louça. Nada mais do que isso.
Foi-se com o vento, aquele tempo...
Vez ou outra, o contraste costumava espelhar uma figura interessante.
Contudo, embora sempre tivesse manifestado o desejo de sentir-se superior, nunca havia conseguido.
Jamais havia sido melhor do que a outra vestida com a suave estampa de roça e olhos pintados sobre velha meia, recheada de algodão. Não mesmo!
Juju, como Renata costumava chamá-la, sempre havia sido a sua preferida.
Muitos anos e inúmeras diferenças deixaram profundas marcas na pele de cada uma delas.
Uma coexistência a transformar o bom e belo no ilusório, assim como o seu próprio destino.
Num pequeno átimo, um atoleiro de imagens acaba sendo rebocado em meio a vagões, trilhos, viagens...
Inúmeras bagagens começam a surgir entre partidas e chegadas. Principalmente, as recheadas de não ditos. Tão vazias quanto as que carregavam tudo que havia sido dito, contudo, nada escrito. Nem mesmo em meio ao lamaçal.
Renata cava mais fundo o velho baú. Nenhum cartão amarelado, nem palavras desbotadas. Apenas chinelos desgastados e roupas esfarrapadas.
Olha através da vidraça, como costumava fazer quando criança. O sol traceja o desenho do último suspiro ao vestir-se com o manto de despedida. Era semelhante ao do outro tempo. Mas não era igual. Uma sutil diferença...
A noite chega de mansinho para não assustá-la.
Vem-lhe a imagem da avó afagando seus cabelos antes do sono. Ela costumava soprar sábios versos em seus ouvidos. Como se apenas as duas, pudessem em vida, compartilhar.
Um doce sorriso e uma seqüência de palavras desfilam em silêncio para aquietar-lhe o coração.
Por sorte não haviam voejado com as folhas do outono. Esperaram por ela.
Permaneceram ali, guardadas dentre lembranças desusadas para que pudessem aquecê-la por todos os invernos que estavam por vir.