"Para amar uma borboleta precisamos também gostar de algumas lagartas" (Antoine de Saint-Exupéry)
A larva (lagarta) aguarda pacientemente o tempo certo de se apresentar à vida e ao mundo. Permanece comprimida e quietinha, num dos ovos que a fêmea, sua mãe, tinha depositado sobre aquele berço de folha.
No fundo, no fundo... sabe que embrião apressado é lagarta morta na certa.
Algo lhe diz que é uma pequena parte da natureza e que esta, logo que possível, lhe dará as explicações necessárias.
No entanto, a voracidade com que nasce chega a assustá-la. Devora toda a casca do ovo que a protege, além, é claro, de comer uma folha três vezes maior que ela em apenas alguns minutos.
Embora entontecida pelos acontecimentos percebe a natureza lhe soprar aos ouvidos:
- “E aí, gostou do que viu? Deseja sobreviver? Então, procure se manter desperta: abocanhe tudo o que puder do ambiente e vá guardando em seu próprio corpo. Essa reserva natural a deixará forte para enfrentar o que vem depois. Você pode durar de meses até um ano... Eis a razão pela qual vai ter que comer muito. Aliás, a sua vida é se arrastar por aí e comer. Comer e se arrastar... além, é claro, de se defender dos inimigos, como qualquer outro animalzinho. Preste atenção: quando sentir sinal de perigo, não hesite em usar a substância ácida e mal-cheirosa que pode queimar e afugentar os que ameaçarem devorá-la. Seu corpo produz essa substância esquisita. Não se preocupe. Você saberá quando usá-la. Foi o que aconteceu com seus antepassados, seus pais, tios, etc...”
Assim a lagarta segue seu caminho. Caminha, caminha... e pensa em como é triste o seu destino: dia após dia arrastar-se pela vida.
Nessa jornada de paciência, por inúmeras ocasiões perde sua pele. Contudo, isso não a assusta mais. Aprende no dia e na noite, nas andanças e ‘arrasta-pés’ que a cada pedaço que se perde vem um novo e por vezes, melhor e com roupagem mais forte e mais bonita (dentro do possível, é evidente, pois tem consciência de que seu aspecto não é lá nada de especial no que diz respeito à estética).
E continua a comer e se arrastar. A se arrastar e comer... para ficar cada vez mais forte.
Precisamente naquela manhã em que acorda disposta a ir um pouco além do que suas curtas pernas lhe permitem e seus olhos podem enxergar, vê-se pendurada em meio a tênues fios e a montar um casulo.
E suas pernas? Onde estão suas pernas? Não as vê, não as sente mais. Está impossibilitada de andar. Sente saudades...
Enquanto se lamuria pela súbita perda, sua pele é trocada pela última vez ao tempo em que imperceptivelmente tece seus fios. E eis que chega o dia em que se enterra ou constrói uma casinha com gravetos e fios. De uma forma ou de outra se fecha lá dentro e se demuda em uma crisálida ou casulo.
- “Estou morta, pensa ela. Sem pernas e morta, é isso.”
Mas como ainda sente o escasso ar que respira ergue seus olhos para o alto e indaga ao Criador:
- “O Senhor afirma que ama todas as criaturas da Terra. Por que então me transforma em algo ainda mais asqueroso?”
Sem resposta e sem conforto, acomoda-se em sua nova e aterrorizante casa.
-“Como ALGUÉM pode amá-la e ao mesmo tempo obrigá-la a viver nas trevas. Não havia ela passado grande parte de sua vida arrastando-se pelos galhos, folhas, gramas, terras...? O que mais ELE pode esperar de mim.”
A lagarta se fecha para o ‘repouso’ (um outro tipo de morte aparente que a mãe natureza exige de algumas espécies da sua genealogia) sem sequer desconfiar que o destino lhe reserva uma surpresa e tanto.
Sabe que está trocando seus tecidos e que coisas estranhas estão acontecendo naquela casa sem portas e sem janelas, mas é só. Por vezes, ainda se enrosca em alguns fios de seda.
E assim, no silêncio, o segredo vai tecendo, tecendo... sem qualquer sinal de lufa-lufa e agonia.
Passa um dia e sabe-se lá quantos mais...
Ao que parece, resta-lhe tão-somente esperar a verdadeira morte, porque em vida já se sente morta e enterrada dentre aqueles ternos fios.
Uma pequena claridade a acorda naquela manhã. Consegue vê-la por uma fissura que não existia até então. É manhã. Ela sabe, ela reconhece o cheiro do frescor das folhas e das flores. A abertura vai-se expandindo e com muito cuidado e dificuldade seu corpo quase que involuntariamente começa a sair daquele assombroso casulo.
-“O que mais pode surpreender-lhe além da morte”, pensa ela?
Esse é o instante mais trágico de sua história. Trágico porque a transformação gera dor, muita dor...
Ao mesmo tempo, daquela dor e daquele corpo que até então julgara ser o mais horrendo dentre todas as coisas da natureza emergem duas lindas asas multicores.
Inicialmente as asas se apresentam molhadas, envoltas em um líquido gosmento. Atônita, instintivamente ela busca o sol e estica esse corpo novo, essas asas deslumbrantes, como que para exibi-las para o mundo.
Por um instante, julga não ser capaz de realizar esse esforço. Um esforço imenso, esse de esticar as asas, mas necessário.
Finalmente, ela principia seu vôo. O esforço gradativo para abrir o casulo tinha tornado seu corpo forte o suficiente para esse milagroso momento.
E assim, ela começa a voar. Voa para um lado e para outro. Para frente e para trás, para a terra e para as nuvens...
Desvia do vento e do abalo frenético. Voeja serena em meio à brisa. Aprecia as cores, sente os aromas e sabores das flores. De uma flor à outra, veicula material genético. Pousa com delicadeza e distribui sorriso e sorte, segundo lendas do meu tempo. Descobre-se bela e rainha de qualquer floresta, bosque ou pequeno jardim. Busca seu par para poder reproduzir, como lagarta não pode fazê-lo. Descobre aí sua razão de existir assim como o seu curto tempo de vida: três dias, duas semanas e com muita sorte, um mero acaso, seis meses...
Olha para o céu e agradece ao Criador pelo inesperado e pela paciência.
Duas asas, somente duas pequenas asas para viver pouco como borboleta, mas intensamente. Duas asas a transportá-la para lugares até então avistados em seus sonhos e mesmo assim de muito, muito longe.
Fênix renasce das cinzas, como conta o mito; a lagarta, de sua própria trama, da sua espera, da sua dor e das trevas... como conta o vento.