CRÔNICA DO PEREGRINO
OS GIRASSÓIS E O TEMPO
Você pode usar o tempo que lhe é ofertado em vida da forma que quiser, inclusive trabalhando como um escravo. Neste caso não se trata exatamente de querer.
Ele poderia ter lido pelo menos uma vez um poema, qualquer um. Ela poderia ter tido a chance de compreender que as asas sempre clamam pelo vôo.
Os girassóis no quintal simbolizavam a sua alegria, a sua possibilidade de felicidade, o seu olhar voltado para a vida como as flores voltadas para o sol no quintal colorido de amarelo.Quase não suportou a tristeza quando teve que arrancar os girassóis por causa dos ratos.
Não compreendia o excesso de ratos no quintal. No dia em que compreendeu, o choro dolorido escorreu pela pedra do tanque: os ratos eram atraídos pelas sementes dos girassóis.
Punha-se pela madrugada desenhando no papel de pão a casa dos seus sonhos.Fez o mesmo desenho centenas de vezes: varandas imaginadas com luar, corredores e cômodos, todas as noites enquanto esperava o marido que, quando chegava pendurava, como se fosse um troféu, o boné com a placa da CMTC num prego da parede. Boné que lhe dava um orgulho, uma coisa gloriosa, e ali, na parede simbolizava que ele, o chefe da família, estava em casa. A segurança do lar, o lugar onde ele também podia ser um chefe. Assim era a vida.
Trabalhava em três empregos. Além da CMTC, era entregador da Folha de S. Paulo e o do Diário de São Paulo. Os filhos crescendo, ele trabalhando cada vez mais, utilizando a sua energia e vigor para o trabalho, tornando-se pouco a pouco um escravo. Às vezes na cidade olhava para o grande magazine, para os ônibus e nunca compreendeu que em tudo que se erguia pelo menos uma gota do seu sangue podia ser reconhecida.
A idéia de que homens e mulheres foram feitos para o cinema jamais lhe passou pela cabeça, aliás, com a chegada dos anos jamais saíram juntos e os anos então se acumularam na rotina como pedras imóveis.
O filão foi-se embora, vieram os pãezinhos, e ela nunca mais desenhou o seu projeto de vida no papel. Jamais morou sequer em pensamento na casa sonhada.
Ele se aposentou na CMTC e também deixou de lado a bicicleta de entregador de jornais. Anos e anos fazendo um “bico” entregando de porta em porta as notícias e recebendo no Natal um presentinho de cada assinante.
Começou a ficar sentado na varanda, horas e horas, vendo as tardes se esparramando suavemente sobre as telhas, às vezes lendo coisas de futebol ou assassinatos, às vezes cismando.
A natureza da energia é escoar, fluir, se desfazer e depois se refazer, retornar à sua alma, à sua essência, mas assim parado, sem atividades, pensamentos desperdiçados, um homem trai a natureza da energia e passa a simbolizar uma forma de se morrer diariamente.
Ela dentro de casa, passando roupa, brilhando louças, assistindo à televisão, olhando para a cristaleira, para o silencio da mobília, para a janta, as palavras sem ancoradouro, e o amor necessitando de cuidados, implorando um momento fora de tudo.
O tempo não pede passagem, ele é a caravana que passa. Inútil ladrar. É preciso compreendê-lo para galopá-lo ou você fica na estrada.
Depois da janta desfazer a mesa, lavar a louça, e voltar o olhar descolorido para os girassóis de plástico no jarro sobre a mesa.
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AUTOR: MARCIANO VASQUES
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