Lá no fundo, bem lá no fundo de um antigo baú de madeira entalhada, três retalhos provocam uma confabulação:
- “ Não me aperte, seus fios me espetam, você é áspero demais!” Rezinga um deles.
- “Não fique irritado. Careço ser grosseiro. Transporto quilos e quilos de batatas. Carregam-me nas costas, nos ombros ou arrastam-me pelo chão de terra ou pedras sem piedade. Se meu tecido não for resistente, não suportará tamanha pressão. De qualquer forma, vou tentar ser mais cuidadoso.” Replica o companheiro.
- “Mesmo assim, receio ser danificado. Minha trama é extremamente delicada, entremeada com fios de seda. Cubro sofás e almofadas de palácios. Encortino janelas desmesuradas. Já me vi coberto de pedras preciosas. Ajusto-me de forma impecável no corpo de senhoras que adoram brilhar em salões festivos." Refuta o primeiro.
- “E eu aqui, amarfanhado, sou trançado com parcos fiapos de algodão. As dobras prejudicam a estampa de flores silvestres. Enroupo a menina que anda e corre pelos campos, livre como um pássaro. Quando a chuva me encharca, fico quase transparente. Chego a me confundir com sua pele. Meus fios não são tão encorpados. Quando o vento sopra, sinto-o transpassar a minha frágil tela.” Apregoa o terceiro.
- “Por vezes, fico ensimesmado, comprimido entre vocês. Quase não consigo respirar, tal o medo de perder minha identidade. Somos tão diferentes. Com freqüência questiono a mim mesmo sobre a verdadeira razão de estarmos compartilhando do mesmo destino.” Conclui a estopa.
Uma súbita friagem desvela a fragilidade de todos. O baú é aberto e revolvido. As diferenças se desanuviam e os estranhos corpos se achegam.