Usina de Letras
Usina de Letras
91 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62237 )

Cartas ( 21334)

Contos (13264)

Cordel (10450)

Cronicas (22537)

Discursos (3239)

Ensaios - (10367)

Erótico (13570)

Frases (50635)

Humor (20031)

Infantil (5434)

Infanto Juvenil (4769)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140809)

Redação (3307)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6192)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->O DUELO -- 20/07/2004 - 10:35 (José Renato Cação Cambraia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O DUELO
(ou "Piada Mortal")

Quando Hilda Malflores, a pugilista anã, olhou pela primeira vez nos olhos azuis de Anelita, sabia que uma tragédia iria acontecer. "Ninguém com olhos tão azuis pode viver impunemente" disse durante o jantar ao seu marido e também anão Júlio Magnus. Júlio fumava um charuto barato e não deu atenção a Hilda, que tinha dessas coisas de premonição e às vezes conversava com os mortos. Deu apenas uma baforada longa seguida de um arroto monumental, que discrepava intensamente da sua condição de anão.
Anelita chegara havia apenas dois meses. Viera sozinha, com um malão de madeira antigo que era arrastado impiedosamente pelas ruas de Arco-íris, a pequena cidade onde estava há dois dias o "Gran Circo Malflores". Ela fazia um número em que se pendurava numa corda grossa pelos cabelos e ficava girando muito rápido. Anelita tinha cabelos negros e, claro, muito fortes. Hilda não sabia da onde Anelita tinha surgido, mas a acolheu como uma filha sem perguntar nada, mesmo prevendo a tragédia que se desenhava nas sombras lànguidas que Anelita projetava no chão.
Um dos motivos da preocupação de Hilda, a dona do circo e uma espécie de guru dos artistas, era o fato de Anelita ter chegado sozinha. O circo, herdado de seu falecido pai, Antonio Garcya Malflores, apresentador e anão mais forte do mundo, era uma empresa familiar e pacata, onde havia somente quatro solteiros: o palhaço Jairo, o trapezista Astor Mackenzie, a domadora de cavalos Calixta e o misterioso mágico Shapiro, que diziam ser gay.
Jairo, o palhaço, nunca mais se esqueceria do primeiro instante em que botou os olhos sobre Anelita. Se ele estivesse trabalhando, sua gravata se enrolaria, seu nariz emitiria um som de buzina, seu chapéu se levantaria para que uma fumaça saísse pelos cabelos da sua peruca vermelha. Como naquele momento Jairo estava sentado sob a tenda que formava uma pequena varanda na frente do seu trailer, de bermudas, sem camisa e lendo O Processo, de Franz Kafka, limitou-se a abrir a boca, murmurar "bããhnfzz" e babar sobre o Kafka.
Calixta, a sexagenária domadora de cavalos, foi incumbida por Hilda de receber Anelita, pois era a única mulher que morava sozinha num trailer. Na verdade, ninguém aguentava morar com a velhota, pois seu trailer mais parecia um estábulo. Anelita pareceu não ligar pra isso, logo desenvolveu uma relação muito afetiva com a domadora, se acostumando rapidamente a andar sobre a palha e o estrume que forravam seu trailer.
Quando Astor Mackenzie, o intrépido trapezista e estrela do circo avistou aquela beldade de cabelos negros parada na borda do picadeiro durante seu ensaio matutino, seus instintos masculinos logo entraram em ação e ele começou a se exibir. Deu um grito para Clestor, seu irmão, soltar o trapézio da outra plataforma onde estava. Saltou no ar com graça e leveza, e seu corpo pareceu esperar o trapézio chegar até suas mãos. Balançou uma, duas vezes, soltou-se, deu seis piruetas no ar e agarrou os braços do irmão. Uma balançada depois, já voava de novo contra Newton e suas leis gravitacionais. Ele era bom mesmo.
Foi pequeno o tempo que decorreu até que os interesses de Jairo, o palhaço, e Astor, o trapezista, se conflitassem. Anelita era, além de muito bonita, muito simpática com ambos. Quando estava com Astor, aplaudia entusiasmadamente sua intrepidez. Ficava espantada com os perigos que ele dizia já ter passado, como daquela vez no Chile, quando o circo em que trabalhava se incendiou e ele conseguira salvar cento e quarenta e três crianças e dois cachorros balançando-se através do fogo infernal. Astor prometia a Anelita um mundo cheio de aventuras, viagens a lugares exóticos, vestidos de seda, arcos de ouro para seus cabelos e brincos de pérolas.
Jairo, por sua vez, simplesmente não conseguia parar de tentar ser engraçado (esse é um dos grandes problemas dos palhaços, aliás), o que ele fazia muito bem. Jairo era conhecido por nunca perder uma piada, o que já tinha lhe custado duas amizades, uma noite na cadeia e onze socos no seu nariz. De qualquer forma, Anelita ria muito quando estava com ele. E ela rindo era mais linda que o mais bonito poema do Drummond lido durante um pór do sol logo após uma chuva de verão num sábado na frente de um lago com patinhos brincando na água tépida.
Numa noite, após a apresentação, Astor entornou duas garrafas de vinho depois de ver, atónito, Anelita dar um beijo de boa noite no palhaço. Foi apenas um selinho, mas Astor sentiu uma terrível ira por perder uma linda mulher para outro homem. E pior, um homem maquiado, um... um palhaço!
À meia noite em ponto, Jairo acorda com pancadas na porta do seu trailer. Astor, com uma garrafa na mão, avança furiosamente contra o sonolento palhaço e o segura pelo pescoço com a mão livre. Astor é muito mais forte que Jairo e quase consegue levanta-lo do chão. Diz "amanhã, às seis horas, eu e você vamos duelar pela Anelita. Pistola.". Jairo responde "O que tem o Pistola?", aproveitando a deixa para fazer uma piadinha com o fato do outro palhaço do circo se chamar Pistola. Astor não riu nem respondeu e Jairo não dormiu nada aquela noite.
A madrugada estava escura, úmida e fria. Não havia ninguém no pátio às cinco horas da manhã, como Jairo póde constatar ao enfiar o nariz pela fresta da porta. Abriu lentamente a porta e desceu furtivamente a escadinha de alumínio gelado. Não sabia o que iria fazer, mas, por precaução, pegou seu revólver e o colocou na cintura, escondido pela camisa de flanela. Ao caminhar em direção contrária ao circo, sentiu um frio na espinha ao perceber um vulto atrás de umas árvores. "Você está pronto, palhaço?" ouviu a voz fria do trapezista saindo do escuro. Jairo percebeu que o trapezista ficara a noite toda ali, esperando para que ele não fugisse. Astor deu um passo para frente e Jairo viu a arma na cintura. Não havia maneira de fugir. O duelo aconteceria ali, e naquele instante.
Jairo puxa então a camisa para trás de maneira que o cabo da arma fica a vista. Os dois duelistas estão frente a frente, completamente imóveis, a dez metros de distància um do outro. O vento agita as árvores e alguns insetos fazem seus barulhos de inseto. O tempo parece parar. Os olhos frios de Astor estão fixos nos olhos úmidos de Jairo. Mãos pairando sobre as armas. Dedos movendo-se lentamente. O ar é denso, talvez porque saiba que um deles vai morrer.
De repente, BANG! - um tiro. A fumaça da pólvora sai de um cano, enquanto se ouve o barulho de um corpo caindo no chão. Atrás da fumaça que se esvai, o rosto impassível de Astor vai se tornando nítido na escuridão. O trapezista caminha até o corpo inerte do rival. Jairo segura um revólver da onde se projeta, pelo cano, uma bandeirinha vermelha escrito BANG!. Ele então murmura, com desprezo, "Palhaços... humpf!" e foge para o Chile.


Renato Cação Cambraia é cronista e apreciador de circo, mas desde pequeno tem medo dos palhaços.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui