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Cronicas-->TOQUE DE RECOLHER -- 23/07/2004 - 05:38 (Roberto Stavale) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
TOQUE DE RECOLHER

Outro dia perguntaram-me como foi o toque de recolher, durante a revolução de 1964.
O movimento foi tão condescendente que não decretaram toque de recolher, respondi, desconfiado.
E continuei descrevendo a época com um pé atrás, pois os jovens de hoje não fazem idéia do que foi o final melancólico da boemia sadia e romàntica nos anos 60. Muito menos o dia-a-dia durante os anos vividos da tão propagada revolução.
Hoje, depois de quarenta anos, a esquerda festiva brasileira está no poder, tomando "caipirinhas", lá pras bandas de Brasília. Mas a mídia continua a martelar folclores sobre a tal revolução militar, xingando calorosamente as mães dos coitados, inventado episódios que não aconteceram.
Toda a intelectualidade da época faz questão de se declarar torturada, física e mentalmente. E que comeram o pão que os diabos americanos amassaram junto com as nossas elites.
Na ocasião, eu pertencia à Associação Paulista de Belas Artes. Sociedade de artistas plásticos e outros que elegiam uma nova diretoria a cada dois anos. Os conselheiros eleitos democraticamente eram indicados através de outra eleição do Conselho para compor a diretoria. Fui conselheiro e diretor, de 1965 a 1969. A sede nunca foi invadida ou investigada. A APBA ainda fica na Rua Conselheiro Crispiniano, no centro da cidade, e o toque de recolher acontecia às dez da noite, quando eram fechadas as portas do prédio comercial.
De lá saíamos para a noite!
Naquele tempo, um pequeno grupo de artistas editava a revista Resenha Artística. Eu fazia parte do grupo e jamais fomos censurados nem tampouco procuramos a censura. No entanto, atacávamos sistematicamente as más condutas que aconteciam no Salão Oficial de Artes, promovido pelo governo do Estado.
Quem me fez a pergunta descabida foi um estudante de sociologia que teve a capacidade de procurar-me, devido à minha idade.
Em 1964 eu tinha vinte e três anos, e estava no auge da boemia pelas noites saudosas e nostálgicas de São Paulo.
Anoitecia e amanhecia na rua. Toque de recolher? Só quando algumas garotas lá da "boca do luxo ou do lixo" nos chamavam para vender seus corpinhos e suas almas. Lá, sim, nós nos recolhíamos em troca de rápidos prazeres. Fora isso, fui obrigado a responder ao boquiaberto rapaz que nem nos quartéis existia toque de recolher, - as sentinelas ficavam do lado de fora e não se recolhiam.
Também nos recolhíamos sem nenhum toque aos salões de bilhares para jogar sinuca. Os únicos constrangimentos da noite não se referiam ao toque de recolher, mas sim às sinucas de bico, que aconteciam uma após a outra.
Continuei divagando sobre aqueles bons tempos. No rodamoinho das memórias, como se fosse um filme em branco e preto, começaram a passar as imagens dos botecos, boates e restaurantes da época. As feijoadas às sextas-feiras, à meia-noite, no Pedrinho da São João; o Bar Brahma, na famosa esquina da Ipiranga com a São João; o Franciscano, da Libero Badaró; o Papai e Gouveia, da Praça da Sé; os deliciosos baurus do Ponto Chique, que nunca fechava as portas, lá no Largo do Paissandu. La Licorne, Oásis, Hollywood, entre outras, eram as boates que eu mais frequentava. Eram tantos divertimentos noturnos que seria necessário um livro de mais de mil páginas para descrevê-los.
Quando eu ia para casa, alta madrugada, depois de descer do bonde, andava uns cinco quarteirões bem escuros devido aos arvoredos das ruas. Nunca fui assaltado ou molestado, durante anos!
Em plena ditadura, todos os cidadãos que nada deviam à justiça tinham o direito de comprar armas e andar armados. A falta da licença, ou de porte de arma, era uma simples contravenção penal - pagava-se a fiança e se continuava a viver. Hoje, em plena democracia, desarmaram o homem de bem e armaram com armas sofisticadas os homens do mal, através de um mecanismo chamado Direitos Humanos.
Com toda a liberdade de expressão e de locomoção, que adquirimos com a volta da pseudodemocracia, temos de ficar dentro de casa, de bico calado, como se existisse um toque de recolher, para não sermos assaltados ou sequestrados.
Naqueles dias e naquelas noites, o máximo que poderia acontecer era ter a carteira furtada por hábeis punguistas. Ficavam ao lado do escolhido no bonde ou no ónibus e, quando o indivíduo puxava a carteira para pagar a condução, a mesma já estava longe e o infeliz nem tinha percebido. Era uma arte!
Lembro-me de uma tarde, subindo a Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, num bonde "camarão", quando um senhor bem vestido começou a gritar e chorar que tinham roubado um pequeno pacote com brilhantes de um de seus bolsos.
O condutor parou o bonde e o motorneiro desceu para ir chamar a polícia. Não havia, então, telefones celulares.
O bonde estava quase lotado, com muitos passageiros de pé. Ninguém falava, ninguém se mexia.
Eu estava com o meu tio Miguel, sentados quase na porta de saída.
A polícia chegou e revistou todos. Nada! Ninguém estava com o rico pacote.
O bonde seguiu seu destino. O infeliz homem foi, na viatura policial, prestar queixa na Central de Polícia.
Quando descemos, meu tio falou:
- Você viu aquele moreno grisalho, de terno cinza e gravata preta, perto da porta? Ele é um dos mais velhos batedores de carteira da cidade. Mora aqui no bairro. E, como ele estava perto da vitima, só pode ter sido ele!
Dias depois, ao reencontrar tio Miguel, ele lembrou:
- Foi aquele cara, de quem falei,que levou os brilhantes. Perguntei como ele tinha escondido as gemas. Simplesmente respondeu que as tinha engolido.
Com certeza sofreu uma indigestão e teve de se recolher por diversos dias, em algum banheiro, para recuperar os produtos do furto.
Mas, se houve excessos durante a revolução, e dos quais eu só soube pela mídia, aconteceram dos dois lados.
Para nós, simples mortais, a vida continuou sem qualquer alteração. Os cinemas, bares, boates, restaurantes, inferninhos, estádios de futebol, zonas de meretrício e outros vícios continuaram na paz do Senhor!


Roberto Stavale
Julho/2004.-
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