Usina de Letras
Usina de Letras
147 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62225 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22536)

Discursos (3238)

Ensaios - (10364)

Erótico (13569)

Frases (50620)

Humor (20031)

Infantil (5431)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140803)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6190)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Artigos-->Suéle -- 19/10/2002 - 11:33 (Daniel Fontenele) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
SUÉLE

















Era uma menininha pequena. Cinco ou seis anos talvez. Dessas da rua, que a gente não nota, transparentes...



Estava ali, àquela hora, sozinha na rua, do lado da lanchonete americana, em frente ao bar, “imersazinha” na sua transparência...



Naquela noite eu também me sentia um pouco invisível. Estava absorvido com qualquer besteira de fundo existencial... angustiado com a falta de razão de qualquer coisa que nem me lembro, mas que com certeza só é acessível aos que têm condição de comprar nitidez...Também estava ali, sozinho na rua, àquela hora, pertinho dela...



Não sei bem porque a notei.



Era igualzinha às outras: bem moreninha, que alguns chamariam “neguinha” apesar dos fortes traços indígenas, cabelinho bem preto, shortinho e camiseta até que limpinhos, chinelinhas menores que os pés.



Brincava com uma lata de cerveja vazia que tentava acertar com pedrinhas.



A lata na rua, ela no meio fio. Na calçada havia os garçons que com certeza a enxotariam, provavelmente para que não embrulhasse o estômago dos clientes, ou coisas assim...



Jogava uma pedrinha... e outra... e outra... mais uma...



A lata lá, “em pézinha”...



Passaram duas moças e pausa no jogo. Corre em sua direção.



Trocado?



Ainda não foi dessa vez...



Ah, mas tem a próxima...



Tá.



Voltou. Pedrinha... pedrinha...blonc, Acertou!



Fiquei surpreso quando percebi que estava torcendo por ela. A sensação foi muito parecida com a de um gol, sei lá...



Aí ganhou confiança.



Pedrinha... acertou. Pedrinha de novo, novo acerto.



Eu já não olhava outra coisa.



Afastou a lata e recolheu mais pedras. Concentração... pedrinha... longe.



Um carro passa rápido e quase alcança a lata. Ouvi seu gritinho de susto.



Tentou de novo... pedrinha...longe ainda (mais pra direita, menina, mais pra direita...)



Muitas tentativas e nada. Achou que talvez tivesse exagerado e trouxe a lata pra mais perto.



Covardia. Acertava todas...



Não se cansava. Pedrinha...blonc... pedrinha...blonc.



Pronto, hora do desafio. A lata mais longe que da vez anterior. Foi buscar umas pedras maiores no meio da rua (olha os carros, doidinha).



Me ajeitei na cadeira e pedi apressado outro chope pro garçom, que a essa altura, para mim, já estava completamente transparente.



Fez um montinho com as pedras, sentou no meio fio e ficou avaliando a situação.



Levantou e se dirigiu à lata (pronto, vai trazer mais pra perto).



Pôs mais longe (eita, agora eu duvido).



Jogou a primeira...Foi péssimo, quase acerta o carro do outro lado da rua. O menino que “pastorava” grunhiu alguma coisa (ah, deixa ela, pô).



Arremessou uma grande. Quase acerta (puuuuta que pariu!). Acendi um cigarro sem tirar os olhos do jogo.



Foram várias. A maioria passava muito à esquerda (já te disse, menina, mais pro outro lado).



As pedras estavam acabando.



Fiquei com medo que ela desistisse e resolvi intervir.



Psiu, ei.



Virou-se assustada, talvez eu fosse o dono daquele carro... largou a pedra da mão e foi se afastando devagar.



Ei menina.



Veio em minha direção.



Dá uma moeda ?



Olha, tu tem que jogar com mais força e mais pra direita.



Tem os carro...



(É... tinha os carros mesmo...)



Joga umas pequenininhas...



Dá uma moeda?



Te dou um real se tu acertar.



Um real toda vez?



É. ..(não tinha pensado nisso)



Pode ser das grande? (a danadinha era esperta)



Não senhora, que tem os carros. Joga das pequenas mesmo...



Tá.



Correu pra lá, aquela gladiadorazinha...



Pedrinha...pedrinha... pedrinha e pedrinha....



Às vezes, quando quase acertava, olhava pra mim e sorria (uuuuurra, tio, quáis...)



Um real por acerto...



E eu podia lhe dar tanta coisa...

Mas na hora não pensava em mais nada. Só naquele jogo...(pra direita, menina...não... com mais força...blonc...isso! tá vendo?)

Ela ria e ia levantar a lata novamente. De vez em quando, apanhava uma pedra bem grande e olhava pra mim com sorrisinho malandro... Sabia qual seria minha reação (nãaaao senhora, olha o carro).

Jogamos muitas pedras, só eu e ela no mundo, absolutamente visíveis um ao outro. Eu na mesa e ela no meio-fio...pedrinha...pedrinha...pedrinha...(pra direita...isso!)...blonc.

Não me custaria quase nada realçar suas cores, fazê-la sempre visível, chutar de vez a pôrra daquela lata, dizer que ela sempre poderia usar a maior pedra que encontrasse sem se preocupar com nada...

Mas só pensava no jogo...naquele.



Tomei mais alguns chopes, fumei uns tantos cigarros e ela lá, feliz com nossa brincadeira, sorrindo pra mim, sonhando com seus prêmios (uuurrrra, agora foi quáis...).



Um real por acerto...



Nem sei quantas vezes ela acertou.... Me via ali, agora bem nítido, torcendo por ela e por mim... errasse à vontade, éramos um só.



Quando fui embora lhe dei dez reais. Perguntei seu nome: Suéle.



Deve estar lá ainda, sozinha, linda, invisível...



Pedrinha... pedrinha...pedrinha...



E eu que podia ter feito tanto, fico aqui, procurando palavras pra falar dela de forma elegante, poética... a poesia lá naquele meio-fio e eu aqui tentando mudar-lhe os contornos pra colorir a mim mesmo... e nem preciso disso, que já sou bem visível... mas não me contento em ser preto-e-branco, quero me vejam em cores vivas, bonitas, harmoniosas, essas coisas...



Ela diáfana, eu (trans)lúcido? Que bobagem, isso lá é poesia...são só palavras.



Depois tem o medo de ser piegas, brega... Tem que ter estilo...



Porque tem umas emoções aí que não são naturais, não... a gente aprende a senti-las nos livros, na televisão, sei lá...



A vida é assim complicada, viu menina?



Por que você sorria pra mim?



Pedrinha... pedrinha... pedrinha...



Mas eu lembro dela e tenho vontade de chorar... muita.



Ainda somos um só ... (me perdoa se eu errar Suéle?)



Podia lhe dar tanta coisa...



Não ia me custar quase nada...



Ah, mas tem os donos dos carros. Também tem os outros...



Pedrinha...pedrinha...pedrinha...



Um real por acerto....sou um MONSTRO!



(uuuurrra tio, quáis...)



Vou chorar...Blonc, Suéle.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui