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Cronicas-->A MOÇA DO SHOPPING -- 02/08/2004 - 20:01 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A MOÇA DO SHOPPING



- Olha, mãe, é o homem que sempre quis!

Assustei-me ao ouvir a frase, dita tão claramente que pude ouvir e sentir a respiração da moça. Estava atravessando uma rua movimentada defronte a um shopping da cidade. Elas vinham em sentido contrário, obviamente se dirigindo ao mesmo shopping de onde tinha acabado de sair.

Eram três: a mãe, uma senhora de meia idade, que usava óculos escuros de cor esverdeada, uma outra pessoa sem nada de especial e a tal moça. Não era, como o leitor possa imaginar, um exemplar de beleza escultural, uma modelo capa de revista, nem a criatura da minha vida. Simplesmente uma moça qualquer, nem gorda nem baixa, nem loira nem escurinha. Apenas jovem de uns 25 anos.

Perturbado por imaginar ser o destinatário daquela frase, imediatamente veio-me à lembrança todo o passado de minha vida. Como no cinema, vi diante de mim a primeira namorada, Maria Inês, se é que tenho o direito de chamá-la assim. Afinal nunca nos beijamos. E dela só guardei uma velha fotografia três por quarto, em preto e branco, que, afora a feição, me não lembra mais nada. Deve estar no fundo de gaveta de alguma cómoda de meu inconsciente.

Em seguida, quase atropelada pelos carros em desabalada velocidade, a despeito da faixa de pedestre pintada no asfalto, veio a Noélia, moça cearense, de inefável meiguice, de quem guardo uma remorsal saudade. É que, na constància do namoro, pilhou-me com aliança de noivado com outra. Embora tenha dito constància, na verdade nossa relação estava interrompida por uma sua longa viagem de volta ao Ceará, sem retorno definido, cuja única comunicação foi uma carta aparentemente sem nenhum comprometimento, salvo as expressões de amor eterno e essas coisas.

Entre as duas anteriores apareceu Leocádia, - que por vergonha do nome se autonomeava Solange, - que ficou como que suspensa no ar, enquanto os automóveis passavam sem molestá-la. Ah, Leocádia, sua lembrança me deixa pesaroso! Lembro-me do dia em que terminamos: você chorava com espasmos de soluços e eu sentia o rompimento na mesma intensidade que você.

E vieram as outras, tantas outras sem importància, de cujo nome não me recordo mais. Passaram como passam os dias, e os anos da idade. Nenhuma marcou presença, nem ausência.

Casei e descasei. A mesma alegria que meu deu o casamento correspondeu em tristeza a separação. As cenas de felicidade, ou coisa parecida, misturaram-se às recordações das lágrimas incontáveis dos dias tristes.

De repente, as buzinas dos carros interromperam-me as lembranças. Quase projetado à força para o outro lado da rua, ainda ouvi, em repetições aceleradas muito distorcidas, a frase da moça:

- Olha, mãe, é o homem que sempre quis!

Já escrevi alhures a dificuldade que certos homens tem de se aproximarem das mulheres. Em passado histórico tal empecilho era minimizado por casas especializadas na matéria. Hoje tudo mudou. A liberação generalizada, incentivada pela mídia, facilitou as coisas e nos consultórios dos psicanalistas e psicólogos certamente não aparecem mais doentes com esse diagnóstico.

E se ainda houver alguém padecendo desse mal, as moças se encarregam de fazer a tal aproximação. A "cantada" tornou-se universal e elas adquiriram especialização no mister. Ainda bem!

Numa época em que tal desprendimento não era corriqueiro, fui vítima de uma cena dessas, que me deixou muito encabulado. Atravessava uma praça normalmente muito movimentada, já que havia ali muitas agências bancárias. Mas, naquele dia, por volta das três horas, estava vazia. Um grupo de moças voltava do almoço, alegre e barulhento. Ao me verem, embora apressado, uma delas se adiantou, abriu as outras em leque, deixando-me no meio, dizendo: "Olha, gente, um homem desses não cai na minha vida!" E me apontava às outras.

"Na vida tudo vai, dizia Castro Alves, gravita lá para o ponto que lhe marca Deus" (*). E o nosso ponto, o meu, o seu, o de todos nós, certamente está marcado. É preciso antes encontrá-lo e depois, segui-lo como quem segue o próprio enterro, sob pena de cairmos nas artimanhas da vida.

O episódio deu-me ensejo a muitas considerações sobre o que fazemos de nossas vidas. Quase sempre não sabemos escolher e quando o fazemos - talvez sem o querer conscientemente - nossa escolha é pautada por um ideal introjetado, quem sabe na infància, mas inexistente na vida real. E toda escolha traz um risco intrínseco.

E quando me ofereciam cargos ou posições de destaque nas empresas em que trabalhei, sempre tinha muita hesitação em aceitá-los. Não poderia sair-me bem deles se não soube escolher o rumo da própria vida, nem administrá-la como convinha, com um mínimo de competência. Com uma mordida dolorida no coração, às vezes penso ser praga que a Noélia me rogou.

Ah, ia me esquecendo. O homem que a moça da rua do shopping sempre quis não era eu.


Adelay Bonolo


(*) "Fatalidade" - Castro Alves.
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