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Contos-->A pomba -- 24/10/2006 - 21:43 (Bruno D Angelo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Uma pomba. A pomba. Enorme e roliça. E não há nada de erótico nisso. Aliás, muito pelo contrário, a situação era bem deprimente, coitada. Vim para casa, correndo e me tranquei no quarto. Ela mal podia andar e tampouco desviar dos carros. Enquanto estive lá, observando-a, por muitas vezes escapou da destruição enquanto heroicamente atravessava a rua e desafiava os automóveis em busca das migalhas que lhe proveriam mais um dia de existência. Mas ela precisava de mais comida? Meu Deus! Aquilo já parecia uma obsessão. Uma compulsão mórbida. Mal podia encará-la na iminência de vê-la transformada em uma massa disforme de sangue e penas acinzentadas.

Não fiquei lá pra ver nada disso. Ao entrar no quarto, peguei meu caderno dentro do armário e comecei a escrever. Desesperadamente, sem saber o quê e nem por que escrevia. Eram rabiscos. Nada de aproveitável. Quando vi estava chorando. E uma pomba enorme desenhada entre os garranchos ilegíveis. Por que a imagem dela insistia em permanecer em meus pensamentos, mesmo eu querendo afastá-la? Uma tortura que eu não sabia como explicar.

Nunca havia visto aquela pomba mais gorda na minha vida. Aliás, nunca havia visto uma pomba gorda daquele jeito. Na realidade, não sou muito de reparar nestes bichos. Acho que ninguém é. Eles dividem espaço conosco pelas calçadas e pelas ruas da cidade, mas não chegam a despertar interesse. A não ser pela condição pouca asseada que se encontram. Ratos com asas, dizem. É comum o Eca!, quando alguma delas passa rasante sobre nossas cabeças após levantarem vôos assustadas pelos passos dos gigantes humanos. Mas duvido que aquele espécime conseguisse reagir a qualquer estimulo. Nem se quisesse. Acho que seria uma coisa ridícula de se ver, a pobrezinha tentando fugir cambaleante, rebolando seu traseiro gordo, pendendo de um lado para outro, na iminência de cair e por lá ficar. Como eu disse, dava dó. Certamente, seu futuro não era dos mais promissores.

Mas que importância tem uma pomba neste mundo? Acho que nenhuma. Eu mesmo já começava a rir dessa história. Não, acho que não. A quem eu queria enganar? Só se fosse a mim mesmo, mas eu sabia que não poderia rir dessa história. Não agora. Eu precisa rever aquela pomba o quanto antes. Anoiteceu repentinamente. Olhei pela janela do meu quarto e não havia mais claridade a não ser a emitida pela lua. Percebi que não adiantava levantar agora e ir procurá-la, já que pombas não existem a noite. Isso me fez pensar para onde eles vão neste horário. Talvez um biólogo saiba. Ou quem sabe um veterinário. Muito provavelmente aquelas pessoas que criam pombos sabem. Como elas chamam mesmo?Espera um pouco, vou procurar no google. Sim!Columbófilo. Então, os columbófilos sabem.

Comecei a divagar e devo ter dormido ali na cadeira mesmo, pois não me lembro de mais nada, a não ser da luz do sol entrando pela fresta da janela. Acordei e abri os olhos com dificuldade. Pronto! A primeira coisa que veio a minha cabeça? A pomba, enorme e gorda rebolando pela calçada. Meu Deus! Isto já se tornara uma obsessão. Banho, roupa, café da manhã. Saí para rua e mais um dilema se formou: Ir para o trabalho, o que me faria tomar o rumo da estação do metrô ou seguir o caminho contrário, para a rua onde avistara a pomba gorda pela primeira vez e única até agora? A sensatez falou mais alto, se é que pode se chamar de sensatez ir ao trabalho às oito da manhã.

O trabalho passou rápido, não tão rápido quanto eu desejei, logo estávamos na hora do almoço e eu pude me levantar e sair, deixando o computador ligado e a frase incompleta piscando no monitor. Passei pelo corredor vagarosamente sob o olhar aparentemente despreocupado de todos. Ao me encontrar absolutamente sozinho na escada, desci os degraus, alucinado. Cheguei à recepção esbaforido e mal pude cumprimentar a secretária. Oi. Tchau. Abri o portão de ferro e uma ansiedade tomou conta do meu estômago, precisava comer o mais rápido possível. Fast food. Precisava de um sanduíche. Não queria saber se era goduroso, se entupiria as veias do meu coração. Isso não importava. Apenas o gosto agradável, viciante de seus pedaços, passeando pela minha boca e língua, descendo agradavelmente pelo meu esôfago, indo descansar nas minhas entranhas.

Aquele cheiro só podia ser de hamburguer. O lugar estava abalroado como era de se esperar. As pessoas se dispunham em paralelas filas indianas que tinham em seu ponto final caixas, ocupadas por simpáticos atendentes que possivelmente mantinham suas mentes em um ponto longínquo para aguentarem mais um dia de trabalho. Em poucos minutos já estava fazendo o meu pedido e em uma virada de pescoço recebendo-o. Peguei a bandeja e fui me sentar.

O engraçado do fast food, ou comida rápida em português, é que quanto mais você come, menos rápido você fica. O senhor pegou sua bandeja. Deveria pesar cerca de 130 quilos. Não que eu viva com uma balança e tenha o pesado, mas foi o que pude extrair de uma média ponderada que calculei mentalmente, tirando como base a sua altura. Era um pouco menor que eu e deveria medir 1m70. Em uma outra fila, um senhor com aparência semelhante ao primeiro. Os dois avistaram-se. Mais adiante uma mesa brilhava vazia, rodeada por muitas outras lotadas. Entreolharam-se e a largada foi dada. O alvo que se encontrava a cinco metros de distância dos competidores pareceu demorar uma eternidade para ser alcançado. Acabou ganhando o primeiro senhor, mas a que custo! Sua roupa ficou toda suja com a coca-cola derramada e o seu sanduíche espatifou-se no chão ensebado da lanchonete. Estava arfante e empapado em suor. Em suma, os dois se locomoveram como se estivessem em câmera lenta ou presos por uma cinta elástica atracada a uma rocha indestrutível. Me fizeram lembrar da pomba do dia anterior. A pomba!

Larguei meu lanche pela metade e saí com ele ainda titubeando na bandeja. Dobrei a esquina à esquerda e corri como um louco rumo a estação do metrô. Ao chegar no local indicado, subi às escadas e andei apressado a caminho da rua onde havia encontrado a pomba. Caminhei um pouquinho e nada! Não havia gente, cachorro e muito menos pomba. Surgido sabe-se lá de onde, uma carro cruzou a avenida em descontrole e penas voaram embaixo de seus pneus. Depois, um barulho estrondoso. Era o automóvel que havia subido na calçada e acabara-se no poste a frente. Eu só podia pensar naquelas penas. Era a pomba? A pomba roliça, tão patética e tão frágil, indefesa em um mundo onde a velocidade dá as cartas. Movi meus pés ao encontro da marca vermelha no asfalto. Plumas ainda plainavam no céu. Me senti como uma pessoa reconhecendo o parente desfigurado no IML.

Apesar de não poder distinguir nada naquele borrão, sabia perfeitamente. Não sei como, mas sabia. Aquela era a minha pomba gorda. Sim era! Talvez algo que não pertencesse a este mundo, mas desde o primeiro momento em que nos vimos, sabia que estávamos conectados por uma força poderosa, inimaginável. Comecei a chorar e soluçar como uma criança profundamente magoada. E esse som cortou aquele silêncio tumular no qual estava imerso. Percebi que não podia ficar mais ali. Recolher os restos mortais para quê, já que não havia restos? Dei meia volta e vi. Estava enganado, como sempre, estava enganado. Era ela ali. Olhando-me fixamente, com sua silhueta roliça e seu andar trôpego. Saí correndo em sua direção e tive a nítida impressão de que uma música romântica começou a tocar ao fundo. Ela parou, mas lentamente começou a se aproximar dando pequenos passinhos para frente. Não vôou. Não fez movimentos bruscos. Não sentia mais medo.




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