Contrariando todas as previsões, Kenue perde a competição. O país assiste sua derrota. A entrevista coletiva o deixa frágil, em total desalinho com o seu corpo de atleta.
Suas pernas ganharam músculos na estrada que ladeava o pomar de sua casa, numa pacata cidade do interior de Mato Grosso. Seu pai o forçava a correr. Nem bem havia chegado à adolescência. Fazia marcas no chão de terra batida e marcava seu tempo. Dia após dia... Tantas vezes quanto possível (uma insignificância), conseguia fugir da corrida. Vez ou outra, seu corpo pedia trégua e sua alma, quietude ou simplesmente, brincadeiras de menino.
No rigor do inverno ao redor da fogueira, o pai agregava a família e amigos para contar casos e causos... Algumas, extraía de sua própria vida, outras, eclodiam da fértil imaginação. Alcançou notoriedade como contador de histórias na região. Apreciava esse ritual. A moenda girava conforme o vento por ele soprado.
Após alguns anos de treinos e corridas o esportista já tivera outras noites mal-dormidas, mas em especial, aquela lhe parecia infindável. Tão longa, quanto a saudade do tempo em que podia sonhar e escrever. Sequer o lençol acobertava suas inquietações. Ficaram enrugados como um rosto na dor.
Na varanda, surgira do nada um gosto amargo que teimava em se espalhar pela boca e arranhar-lhe a garganta. Os sinais do amanhecer despontavam, assim como o delicioso aroma do café. O interior da casa deitava num silêncio distinto. O corpo do pai, sem registro da partida, jazia solitário sobre o chão de tábua varrida.
O grupo de jornalistas e fotógrafos não percebem que ele acaba de chegar de uma ‘outra’ viagem. As perguntas e ‘flashs’ se sucedem. Assim que o auto-falante anuncia a última chamada para o embarque, ele toma posse de suas pernas sem se preocupar com o tempo de largada ou de chegada.