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Contos-->Retirantes -- 09/11/2006 - 12:18 (Ed Carlos Bezerra da Silveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Retirantes


Joselito avistou pela primeira vez uma longa estrada empoeirada que existe bem perto da casa de tijolos vagabundos. Sua casa. Aquela sempre existiu, mas ele nunca havia percebido significado algum nela. Até que um belo dia, bem de manhã, acordou assustado, sentiu vontade de andar.
Sentou na cama, pensativo. Olhou a mulher que deitada, seminua, coberta até a cintura com uma fina manta de várias cores, roncava vagarosamente.
Sua filha, magrinha, desnutrida, mas ainda formosa, dormitava despreocupada. Uma tristeza palpitou em seu peito. Não gostou daquele sentimento e o mandou de uma vez por todas para o inferno. Mas ele não foi...
O sol não havia se levantado ainda. O céu cinzento misturou-se com nuvens de chuva. Só parecia que ia chover, o tempo também pode enganar. Deixemos as certezas para os profetas.
Os pássaros não cantaram naquela manhã esdrúxula. Joselito calçou suas misérrimas alparcatas, beijou a filha, levantou e foi buscar um gole de café. No meio do caminho praguejou, pois descobriu que não havia café. Não tinha dinheiro para comprar. Sempre comprava na venda do Manuel, mas sua conta já estava alta demais. Manuel nem lhe vendia mais fiado. Mandou Manuel para os diabos...
Sentou-se na cama da filha. Esta respirava como neném. Uma menina bonita, com pouco menos de doze anos, onze e meio. Lindos anéis de madeixas doirados descansavam preguiçosos em seus fraquinhos ombros feminis. Olhou para ela com tanto pesar. Um punhal atravessou seu coração, que por muito tempo palpitou fragilizado.
Ele levou as suas grossas e calejadas mãos ao rosto e as retirou logo depois. Meneou a cabeça e olhou para a porta que dava para os desconhecidos mundos. Beijou a mulher que resmungou um ahn qualquer. Afagou os cachos doirados da raquítica filha, que suspirou manhosa. Pegou uma sacola suja, amarelada que havia ao lado da cama de madeiras podres feita por ele, sustentada por blocos já em decomposição. Sacudiu. Tirou o pano que cobria a cuia cheia de farinha. Tomou um bocado com sua enorme mão e colocou na sacola, fez o mesmo com um pedaço pequeno de rapadura e outro de carne seca. Saiu sem mesmo dar um último olhar para a filha e a mulher que dormitavam despreocupadas.
Pôs os pés para fora e adentrou no mundo desconhecido, tomou um susto. O elemento principal do universo ainda cochilava preguiçoso e parecia que as nuvens iriam chorar realmente. Olhou-a sorriu. Ficou alegre por um momento e a alegria sumiu de repente, quando percebeu um pássaro que voava rente aos seus cansados olhos nordestinos. Solitário, negro. As pequenas asas cortavam o ar. Ficou um pequeno momento diante do desfilar langoroso daquele peralta voador e quis saber por que sempre o pássaro depois de uma boa desfilada no céu, parava em algum lugar. A imprescindível liberdade. Ele estava livre. Mas não conseguiu entender porque suas asas precisavam sempre de algum novo lugar para descansar. Por que nos privaria de seu desfilar contínuo? Será que ele é livre de verdade? O que pode ser a liberdade estando com ela? Esta gera uma prisão e a ilusão de uma pseudo-liberdade para nós, ou ela mesma é a própria prisão? Por que nos perdemos dentro dela? Ele não conseguia entender, era natural.
O pássaro reinou em cima de uma árvore, uma das poucas que existia ali, tão seca como a face de Joselito, um pobre diabo que observava com grandes olhos o voador cantarolar tristezas em cima daqueles galhos ressequidos. Joselito era um pensador que saía sem rumo para conhecer as existências do mundo e filosofar sobre elas, inclusive sobre aqueles galhos raquíticos. Não entendia nada de Foucault, Nietzsche, Sartre, Descartes. Mas a carência precisava ser cessada naquele momento. Talvez assim pudesse pensar no que faria para ajudar a si mesmo e a sua família. Ver o mundo de outro jeito, talvez. Só que deixava com saudades, lá no casebre de tijolos vagabundos onde sempre viveu, o único motivo para existir ainda. Precisava estancar as necessidades que lhe angustiavam o peito.
Vital era sua vontade de vitória, de sobrevivência, de peregrinação, de pensar.
Sempre fora muito pobre. Seu pai muito rígido, dizia-lhe que estudo era coisa para quem não tinha o que fazer. Ele tinha que ajudar na lida e ganhar míseros trocados. Quando sobrava algum dinheiro, para se divertir um bocado, seu pai lhe tomava e comprava a boa aguardente onde bebia na rua com os amigos.
Chegava bêbado em casa, furiosamente bravio, por motivos que ninguém entendia. O avô de Joselito por parte de mãe,a entregou virgem a seu atual esposo. Um homem bruto e insensível. Ele a deu em troca de alguns pacotes de feijão, outros de farinha e algumas galinhas magrelas; ela sentia toda a fúria de seu dono, homem e algoz.
Ele tirava a cinta de sua calça rota e suja, com muito sadismo e batia mais e mais na pobre mulher, que chorava, gritava, pedia por Deus. Só que Deus não a ouvia e as cintadas eram mais ferozes quanto maiores seus clamores.
Joselito se escondia debaixo da mesa e observava sua mãe sendo espancada por aquele rigoroso homem embriagado. Passava as mãos pela cabeça, chorava junto com ela e sentia todas as suas dores também. Cintada por cintada.
Satisfeito com as pancadas desnecessárias desferidas pelo pai naquela honrada e corajosa mulher, era a vez de Joselito sentir a fúria, a braveza, o ódio, o rancor.
Tinha apenas dez anos de idade, mas sabia muitas coisas sobre a vida e sobre a fome, a miséria, a injustiça e a maldade do mundo. Sabia da ausência e da brutalidade do pai, bem como das suas tempestades de injúrias e palavrões.
O pai agarrou Joselito pelos cabelos negros e finos e o retirou debaixo da mesa a puxões e pontapés. Ministrava-lhe vigorosas cintadas. Era homem e deveria apanhar com mais força. Sua mãe nada podia fazer, estava semi-desmaiada e descansava no chão úmido com seu corpo machucado, a paupérrima saia arriada, onde se podiam ver com muito pesar nos olhos suas coxas fracas e magrinhas, avermelhadas e, em algumas partes, um líquido escarlate escorrendo, os vergões da brutalidade do homem. Seus olhos permaneciam descansando, os cabelos desgrenhados, lábios tórridos e as faces lívidas. Uma das mãos pousada no chão e a outra inconscientemente, sobre a perna, retrato de um clima de desespero. Uma alça de seu vestido também desmaiara pouco abaixo de seu ombro, dando para ver uma parte do castigado seio; dormitava um sono preguiçoso, pobre alma daquela mulher vencedora.
Assim que a fúria do ignóbil homem acalmou-se, Joselito nem chorava mais. Não havia mais lágrimas a serem escorridas. A dor amortizou seu sofrimento. Uma camiseta rasgada cobria seu peito de passarinho. Uma bermuda pintada às cores da bandeira de nosso Brasil vestia suas nádegas magrinhas. Alparcatas já com um grande buraco no meio, cuidavam de seus pés nordestinos. Nunca vira um jogo de futebol. Não sabia como era a fisionomia dos jogadores que bravios ‘’defendiam’’ o nosso país. Mas sabia que eram bons. Jogava às vezes, sozinho, com uma bola feita de papéis, enrolada com plástico vulgar, onde tinha sempre que estar fazendo remendos; era sua diversão. Nunca teve amigos, todos zombavam dele, por ser tão estranho. Zombavam dele por ter um nariz pontiagudo e grande. Por ter pernas fracas e magrinhas e, riam ainda mais do menino, pois sempre quando abria a boca, era para mencionar algum tipo de comida que gostaria muito de comer.
Após aquela bravia surra, disse para a mãe, já acordada e ainda no chão gélido, bem baixinho em seu ouvido, que um dia iria ter uma família e jamais a maltrataria. Ela o beijou nos olhos encovados.
Cresceu trabalhando na roça, comendo pouco, tomando a pinga do pai às escondidas. Um homem robusto, mas problemático. Chorava sempre, escondido de todos.
A mãe faleceu, fraquinha, velha, desnutrida e castigada, isso depois de alguns poucos anos, quando Joselito já se encontrava crescido. Nem deu um último beijo no filho, pois morreu dormindo. Acordaram num costumeiro dia e ela não se levantou, estava fria, pálida, dura, solitária. O pai morreu depois de três meses, desgostoso, bêbado, inchado. Fedia a urina e a cachaça. Enterrou o pai também e herdou o casebre onde tantas vezes apanhara sem entender o porquê.
Conheceu sua esposa; uma mulher guerreira, batalhadora, sofredora e graciosa. Era das bandas de Pernambuco. Seus cabelos eram doirados, lindos e luzidios; belos olhos coloridos e embriagadores ela tinha, que quando abria encantavam a todos, parecendo arco-íris quando reina no céu. Fortes e deliciosas pernas a sustentavam e o busto farto valsava magnífico e gostoso por baixo de uma fina blusa branca que cobria seus braços também muito charmosos.
Era uma retirante e trazia consigo apenas memórias doloridas, mas em seus seios, saudosas seduções. Bateu palmas na frente da casa de Joselito e pediu um copo com água. Ele ofereceu comida boa, rapadura muito doce, aguardente e, claro, seus olhares admirados e namoradores, conquistadores. Ela encantou este homem do sertão de tal forma, e se encantou por ele mais ainda, que não houve outro jeito: casaram-se e viveram um para o outro. Mas como tudo é duro em um lugar tão castigado como o sertão, não foi fácil. Ela foi perdendo a suavidade de mulher graciosa, perdendo a rigidez de seus seios que outrora tão virgens, palpitaram alegres e sorridentes. A fisionomia de seus olhos já não era mais deslumbrante. Suas pernas já não eram mais tão fortes, grossas e gostosas. Não eram mais bonitas e sensuais, como antes, quando encantaram de forma tão surpreendente aquele homem. Quando ela se despia, enlouquecia Joselito de tal maneira, que palavras não podem ser escritas a ponto de detalhar deleitosas sensações. Resolveram nunca se desligar. As noites de amor eram tão vorazes e o prazer fazia daqueles dois seres apaixonados uma unidade. Humanos novamente. Ah, tão belos foram os momentos em que se amaram tão eloqüentemente, soltando no ar deliciosos sussurros e vozes tão sumidas, incoerentes. Vozes de amor e de maravilhoso prazer.
Após o ato de selvageria maravilhosamente necessário para ambos, ela se vestia, graciosa, soltando sorrisos de alegria e fazendo de seus lábios, tão rosados e felizes, uma delícia feminil. Joselito gostava da manha que sua esposa fazia todas as vezes que se amavam. Não queria fazer como o pai e, dava a esta, toda a liberdade que desejava ter. Algo que nunca teve. Sempre lembrava da mãe quando olhava atentamente sua esposa fazer o almoço. Paupérrimo almoço, não tinham muito, mas se sentiam bem com o pouco que havia.
Sobre o deserto bravio daquele lugar, viviam tranqüilos. Ele costumava contar algumas piadas a ela, mas nem sempre eram entendidas. Não se importavam com nada, experimentavam uma felicidade que nunca tiveram em suas vidas. A felicidade é tão necessária para algumas pessoas que elas não conseguem ser realmente o que são se não a encontrarem. A felicidade as faz retornarem ao ser que se perdeu. Um eu vago.
Mas como a vida na roça é tão severa e imprevista, o pequeno orçamento que Joselito ganhava na lida acabou. Despediram-no sem direitos. Chutaram-no como se fora um animal. Justificaram que ele estava no caminho e que era necessário tirá-lo, excluí-lo, extirpá-lo da sociedade. Uma sociedade que ele nem sabia se existia, ou se a ela pertencia. Sentiu-se inferior, bronco, analfabeto. Ele tinha direitos, seus direitos como animal. Pois não era assim que viam Joselito? Uma classe extremamente preconceituosa e burra. Sim, burra.
As coisas iam de mal a pior. Na venda do Manuel, endividou-se. A felicidade já não adentrava com demasiada alegria em seu lar como antigamente. Começou a brigar com a mulher que tanto amava. Esta, por sua vez, emagreceu, suas faces enrugaram. Seus lábios já não eram mais rosados, tinham a cor de rosas decrépitas. Seus seios murcharam. Seus pés que até eram graciosos e, de pequeninos dedos achatados, pela vida do sertão, encontravam-se tão crespos e grossos... Mesmo assim ele a amava. Não se importava se a estética de sua mulher estava mudando devido à dureza da vida que levava, o amor poderia ultrapassar essas barreiras da vida.
Mas a praga não chega sozinha; Joselito engravidou a esposa, depois de várias noites de amor voraz. Ficou feliz, queria ser pai. Na verdade sempre quis ser pai de uma garotinha a quem daria o nome da mãe.
Sua esposa chorava dia e noite, inconformada. Como viveriam daquela forma com um bebê? Depois de dias de angústias, tentando arrumar algum jeito para aquela situação, resolveram que seriam felizes. Iriam receber a criança e amá-la.
A barriga crescia gradativamente e o amor por ela estava maior, era demasiadamente grande aquele amor.
Nove meses passaram. Sofreu bastante antes: sentiu seus pés incharem absurdamente e uma vontade peculiar de comer coisas, mas não havia dinheiro para comprá-las. Ela sentiu dores horríveis e notou que sua bolsa tinha estourado. Ele teria que fazer o parto. Água quente, lençóis limpos, um pano molhado para pousar na tez da mulher. Gritos angustiantes. Desespero. Sangue por toda a parte. Ele precisava de calma. A criança, peralta como são todas, não queria adentrar naquele mundo desconhecido. Tinha medo dele, não conhecia ninguém, apenas estava amarrada a um cordão umbilical que lhe unia a sua única conhecida e protetora. E se ela abrisse os pequeninos olhos e deparasse com um homem rústico, segurando-a com suas enormes mãos calejadas e olhando-a com grandes olhos felizes e admirados? Um pai coruja.
Sua mulher chorava de dor, de sufoco. Xingava Joselito e ele segurando a cabeça da criança que insistia em não entrar no desconhecido, dizia a ela palavras positivas, tentando acalmá-la. Ela gritava. Cuidava de sua mulher como se fosse uma criança mimada e chorosa. Era natural que a criança não quisesse conhecer este mundo. Sentia medo dele. Um mundo tão pobre de carisma, desumano, cruel. Sentia pavor das pessoas que destroçam outras por papéis de valor. Um valor que elas mesmas colocam. Pessoas que humilham outras por prazer. E que condenam outras por moralismos. A dor. A dor. A dor. Não cessava aquela angústia. Ela queria a todo custo que o bebê conhecesse o desconhecido, pois era necessário para seu bem e para o bem da humanidade. Um bem “além do bem e do mal’’. A criança deveria sempre se assustar para descobrir que dentro de tão assustador mundo, havia belezas inigualáveis que a fariam sentir-se mulher.
Sofreu muito. Só que depois seu sofrimento fora recompensado. Sua dor cessou e deu lugar à felicidade, felicidade que tocou nos lábios e olhares dos pais abobalhados. Nascia um pequeno ser. Quieta, solitária e conhecedora. Uma menina tão radiante. Não se mexia e Joselito pensou que estava morta. Lembrou que uma comadre parteira, muito amiga de seu pai, havia falado que era necessário dar um tapa no bumbum do neném assim que saísse de dentro da barriga da mãe. Foi o que fez. Só que suas mãos tão calejadas e grossas, eram pesadas demais. Um tapa ele deu. A menina soltou um grito tão agudo que todos se assustaram. Um grito de liberdade saiu de sua garganta. Agora ela fazia parte do todo e do nada.
Criaram-na com muito amor e muita dificuldade. Nasceu e cresceu tão formosa... Um pedaço do coração de cada um dos seus pais fora dado a ela. Dotada de várias capacidades e inteligência, sempre fazendo arte com tudo que colocavam em suas ágeis mãos. Gostava muito de escrever, mas nunca fora à escola. Infelizmente, se tornou limitada diante das precariedades do lugar. Mas nunca deixou de escrever. Ela herdou os anéis doirados de sua protetora e, do pai, os olhos interrogadores, namoradores além do jeito calmo no falar, movimentando os lábios gostosamente.
Anos se passaram e ele um dia falou para si que precisava sair e dar uma vida melhor para as suas preciosidades, como as gostava de chamar, mas outro sentimento especial tomou seu coração, precisava sair e descobrir alguma coisa que não sabia ao certo o que seria, mas que tinha necessidade de buscar. Procurar e encontrar o que tanto seu coração aflito bramia em alta voz.
Parou em frente à longa estrada de terra. Não havia poeira, pois zéfiro trazia consigo as deleitosas fragrâncias matutinas.
Caminhou em passos vagarosos uns bons vinte minutos e, avistou lá bem alto, num céu cinzento e ranzinza, grandes aves negras dançavam ao redor de uma carniça não muito longe de sua pessoa.
As grandes e espantosas aves repousaram suas asas pavorosas ao redor da carniça, seus bicos ferozes devorando cada pedaço do intestino do pobre animal que morrera de sede e fome. Ele olhou aquele espetáculo esdrúxulo. Talvez morresse daquela maldita forma. Não era homem de se amedrontar facilmente, mas aquele espetáculo o assustara. Parou. Ficou no meio da estrada empoeirada. Estático. Não havia ninguém, não se importava se alguém o visse daquela forma. Mas não existia ninguém. Queria apenas descobrir porque resolveu sair de sua casa e andar vagando na solitude daquela manhã, com seus pensamentos confusos. Homem sofrido, vida dura. Não tinha dinheiro, não queria. Talvez sim, talvez não, quem sabe? Estava confuso, mas sabia que precisava andar. Tantas coisas há no mundo. Ele tão pequeno. Tão minúsculo. Aquelas bravias aves eram senão sua própria semelhança. Ah, como ele parecia tanto com aqueles bípedes negros e de bicos tão glutões. Ele queria comer da mesma carniça que elas; pelo menos elas sabiam onde colocar seus afinados bicos. E ele não sabia nem o porquê de ter saído de sua casa e muito menos porque tinha deixado mulher e filha. Lembrou dos belos anéis de madeixas doiradas da filha e da mãe. Lembrou também que aquela balançava a cabeça de um lado para o outro em sua presença, somente para ouvi-lo falar que ela parecia com uma mulher muito bonita, loira, que vira um dia desses no anúncio da televisão. Uma pequena tevê que ficava no bar do Manuel. Ah, ele sempre foi um pai coruja. Se pudesse lhe daria as mais lindas estrelas que, gostosas e afáveis, descansavam no enegrecido céu de nosso Brasil. Falava ainda mais, que sua tão adamada filha, tinha uma bela pele, como as das atrizes, as mais ricas e formosas mulheres dessa sociedade. Mas o que sabia ele da alta sociedade? Nada, nada. Mas, gracioso, de lábios morenos, um falar manhoso e calmo, discorria muito entusiasmado, palavras donairosas a sua filha com superioridade infantil.
Sempre de ouvidos apurados, prestava atenção em alguns doutores que chegavam ao bar do Manuel, pronunciando palavras difíceis e, quando aqueles iam embora, pedia para o Manuel anotar as palavras que ouvira. Pronunciava-as erradamente. Mas a cabeça desse homem era uma máquina pensadora; gravava tudo e falava com ar de doutor, em voz altiva e branda para a filha, que sua sobrepeliz tão feminina – palavra que ouviu um doutor falar a uma linda mulher que passava frente ao bar valsando compassada e formosamente suas graciosas nádegas era tão surpreendente que não existia em mais nenhuma. Só que o pobre nem sabia o que significava sobrepeliz. Claro que não soube pronunciar corretamente, mas o que interessa não é a intenção? Explicou a filha que se tratava de uma pele lisa, carinhosa, gostosa, mimosa. A menina pensou que se tratava de uma vaca. Logo, imaginou que as vacas todas eram mimosas, gostosas e carinhosas. E falava ainda mais da pele da filha, dizia que era branquinha e que tinha puxado à da mãe e, como a mãe, também cheirava a silvestres flores. Sua mulher, por sua vez, tão graciosa e esplêndida, sempre esteve com ele em tudo que resolvia fazer: ‘’sim, claro, é verdade, eu concordo, pra mim está ótimo, é você quem sabe ’’ - as palavras de concordância dessa mulher em tão compreensiva situação eram necessárias para ele se sentir um ser, um homem, alguém. Uma mulher tão magnífica, que não é possível entender o que ela, de olhos tão salazes, de estética tão singular e de palavras tão dóceis, fazia ali. O amor, sim, claro. É compreensível. Como se não conhecêssemos a matéria evolutiva, que destrói o homem dia-a-dia, para proporcionar-lhe uma luxúria louca e torna-lo realmente alienado.
Resolveu andar em direção ao tropel de urubus idiotas que, tão vorazes, ainda bicavam o defunto; nem notaram que aquele se aproximava vagaroso, lento, observador. Um Joselito.
Copiosa dor tomou seu peito e com uma de suas grossas mãos apalpou com pesar onde doía.
Queria ser um dentre milhões de humanóides que existem no mundo. Queria que sua dor adentrasse no peito de cada pessoa que existe neste universo tão maravilhosamente imenso. Estava e se sentia só. Assim como sua dor também veio só. Não encontrava no aconchego familiar, no amor de sua filha e mulher, o consolo que havia de parar uma angústia que assumia superior e insistia perversamente em continuar a arrancar cada parte de seus sentimentos confusos e de seu coração, que tão velho e cansado se encontrava. Ele não iria se importar se as pessoas o chamassem de bronco, nordestino, analfabeto, cabeça grande, cabeça inchada. Nem mesmo sabia se existiam, fora do seu mundo tão pequeno e, ao mesmo tempo, de uma grandeza sem igual, preconceitos que o fariam menor e inferior. Não sabia da grandeza industrial que se formava lá fora, longe da sua casinha de tijolos vagabundos e do mísero bar do Manuel.
A estrada já não lhe parecia tão estranha e, quando chegou bem próximo das negras aves, todas voaram brandindo as asas, gritando sons agudíssimos. Olhou por um momento os restos do animal e viu seus intestinos jogados para fora e beliscados. Não teve enterro, não teve um lugar, não se importaram. Nem enterraram sua carcaça que fedia muito, fedia a podre, a carne podre. Quis chorar e uma única lágrima rasgou sua face. Escorreu tão vagarosa e manhosa, dolorida, sofrida, salgada... Uma única dor, um único choro. Sentiu vontade de correr, sem direção mesmo, não importava para onde ia, não tinha lugar especifico.Uma tempestade de sentimentos confusos lhe tomou o coração. Quis correr e correu, porque achou essencial satisfazer a sua vontade. Era uma fuga desenxabida e necessária. Não queria as fugas. Correu, correu, na longa e empoeirada estrada da vida. Zéfiro estava mais furioso e beijou-lhe as faces. O rei dos astros acordou se espreguiçando e entrou com raios doirados na camada de ozônio, penetrando na calejada pele daquele atleta.
Parou muito ofegante, pôs as mãos sobre os joelhos e chorou como uma criança que pede um doce e a mãe nega, dizendo bobices quaisquer. Lembrou da filha que deixava lá atrás, sem comida, sem café da manhã. Sim, a mesma menina. Lembrou da mulher que deixava também lá atrás, sem seu amor, sem seus carinhos, sem suas palavras, mansas e verdadeiras. Ele as achava verdadeiras e sua mulher também as achava. Quem poderia achar o contrário? Amavam-se. Ele sofreu com isso. Quis voltar, mais pensou no pai e desistiu. Olhou mais adiante e notou que um tropel de homens e mulheres caminhava lentamente; algumas com uma trouxa de pano na cabeça, outras com baldes ou carregando crianças nas ombreiras raquíticas, pois as clavículas insistiam em mostrarem-se orgulhosas por fora.
Eram alguns retirantes. As roupas sujas, fedidas e pobres cobriam seus corpos. Isso era para Joselito algo muito além da sua compreensão. Queria saber por que não faziam nada por aquela gente, humanos como ele e todos nós. Passaram e bons dias eram proferidos por seus magros lábios ressequidos. Cumprimentou-os. Depois que todos passaram, lá muito longe se ouvia um cantarolar de uma modinha sertaneja, saída da boca daqueles humildes e infelizes brasileiros.
Deitou-se no chão o pobre e quis ouvir os passos de todos os seus irmãos que iam já tão longe dele. Encostou o ouvido na terra bravia e não fez gesto, não falou palavra, estava quieto e tentava ouvi-la. Uma metamorfose iniciou-se. Sua face, sua terra, sua gente. Ele, deitado, escutando aquele chão tão cansado e desabitado. A solidão da terra escorregou para dentro de seus ouvidos atentos. Resolveu deitar-se completamente, ficou todo esparramado no chão e, numa nova dor, as lágrimas voltavam a valsar em suas faces; elas, que tinham cessado de rasgá-las, começaram a cutucar seus olhos tristonhos. Mas a desgraça é necessária e entrou em seu peito esgaivotado, uma dor tão voraz, jamais sentida por ele. Começou a chorar novamente e se rendeu às lágrimas. A dor voltando, uma angústia e a terra adentrando na castigada pele de suas faces. Não quis chorar por si mesmo. Não agora. Não quis chorar por sua família. Não era egoísta, sentia pelo seu povo. Chorou por eles, pelo Nordeste, por tantas maldades e maledicências feitas e cometidas pelo homem. Sentiu pena de si e daqueles que passaram com suas crenças. Pensou que já não mais poderia existir neste mundo injusto. Sua filha não cresceria uma mulher, graciosa, doce, como sempre sonhou. Não lhe daria netos tão grandiosos de beleza quanto esplêndidos de coração. Sua filha se tornaria um robô manipulado por ventríloquos capitalistas. Iriam manuseá-la, feri-la, boliná-la com suas mãos sanguinolentas e suas mentes padecedoras, sem sonhos, irreais. Uma vez que sem este corpo pensante a matéria não pode existe, logo, nada existe se um faltar. Chorou por todos. Agarrou-se à terra com a força que ainda lhe brotava vigorosa nas mãos e disse para si que era parte dela para sempre. Vários corpos em uma única existência. Quem somos nós?
A terra começou a tremer e ele se sentiu amedrontado. Não podia mais voltar atrás e agora a terra era ele e ele - a terra. O que vinha e fazia o alvoroço era uma romaria. Um burrico com uma carroça tão fraca quanto ele, trazia uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida em cima. Mais de cem pessoas cantarolavam canções de sua igreja e rezas também eram proferidas por suas famintas bocas. A carroça tão próxima dele... O burrico caminhava vagaroso, cansado, esgotado daquela peregrinação enfadonha e desnecessária, mas preciosa para um povo que não tinha pilar algum de sustento e precisava agarrar-se aos seus subterfúgios e às suas ‘’muletas’’.
Em cima do pobre animal ia um homem, meio gordo, de fortes traços faciais e grandes bigodes espessos. Toda vez que o burrico pensava em descansar, o do bigode lascava-lhe o chicote, feito de couro de boi. O pobre relinchava qualquer coisa e colocava um palmo de língua para fora, de onde escorria um líquido esbranquiçado e viscoso.
Joselito não podia mexer a cabeça, ele estava grudado à terra. Ergueu a mão para os que caminhavam rezando e cantando e todos eles passaram respectivamente suas mãos na cabeça daquele homem. Algumas lhe davam rapadura, outros deixavam um bocado de farinha em sua mão, que permanecia sustida. Uma mulher raquítica, de longos cabelos enegrecidos caídos no meio das costas carregava nos ombros um moleque ainda mais magro e lhe deixou uma cuia com água nada cristalina. A carroça parou em sua frente e ali ficou um bocado de tempo. As pessoas pararam também e levantaram suas castigadas mãos na direção da santa. Algumas seguiram caminho. O burrico virou sua cara comprida e relinchou, falou-lhe algo que ele não pode entender. Joselito queria sair dali, queria ver sua família novamente e dizer à mulher e à filha que as amava de verdade e que iria encontrar uma saída para aquela vida. Não podia. O burro, a santa, as pessoas, suas cantorias, todos queriam passar por cima daquele homem, era um estorvo, não podia estar ali naquele estado, jogado no chão... seu povo, seu povo. Zéfiro passou rapidamente e tocou a farinha que lhe restava na mão. Esta, por sua vez, se misturou com a terra e, logo após, com ele completamente. Iniciou a caminhada de novo e, quando a última pessoa passou, ele baixou a mão e deu seu último suspiro, seguido das palavras: o que somos nós?
A mulher acordou assustada e estranhou não encontrar Joselito. Chamou a filha, pediu para ela vestir uma blusa qualquer e colocar um sapatinho de cor azul que ganhara de aniversário do pai, quando os dias foram melhores, pois iriam à procura dele. Pegaram a estrada de terra, não tinham nada nas mãos. Nem água, nem comida, nem esperança. Passaram pela carroça que carregava a santa e seguiram caminho. Lá muito na frente, viram algo esparramado no chão. Correram, mãe e filha, desesperadas. Com tórridos passos apressados elas chegaram.
Morreu a única esperança de mãe e filha. Uma esperança que já não mais existia para ninguém. Nem para elas, nem para o mundo, nem para o desconhecido que atiçou aquele homem a sair de sua casa e sonhar. Tornou-se parte de um todo e de um nada. Sonhou com dias melhores e pagou por isso. Não foi um terceiro Prometeu, mas trouxe para si a gana de conhecer um mundo tão esdrúxulo e desconhecido. A vontade de duvidar e questionar. De amar e de poder enxergar um mundo cada vez mais ausente e incompleto. Pagou por observar o desfile do pássaro e questionar-se sobre o porquê de sempre ter que pousar suas cansadas asas. Não soube responder se o pássaro era livre de fato e se a necessidade humana é a causa para a não liberdade.
Mãe e filha pararam em frente dele, olharam lacrimosas. A menina agachou-se e, sem derramar uma gota de lágrimas dos olhos, beijou a tez do pai e, passando a mão nos lisos e ralos cabelos dele, olhou para a estrada de modo indefinido. Lá tão distante, onde o sol fazia questão de distorcer uma imagem extremamente conhecida por elas, vinha um tropel de retirantes que caminhavam cantarolando modas sertanejas. Nunca mudava, sempre as mesmas coisas: sobre os ombros das mulheres, as crianças magrelas. Nas cabeças de algumas, as trouxas de roupas vulgares. E nas mãos de outras, pequenezas quaisquer.
Joselito não soube responder se sonhava ou se estava acordado, presenciando tudo. Inclusive sua morte. Quando dormimos sonhamos com coisas que não tivemos ou nunca vamos ter e nos frustramos. Nossos olhos abertos vêem o que queremos ver, mas a mente e o corpo tornam-se uma só unidade, real e irreal. Dois corpos existentes e milhares de imaginações que nem sabemos para que servem.

Ed Carlos Bezerra.
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