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Contos-->Desespero e Reflexão -- 09/11/2006 - 13:24 (Ed Carlos Bezerra da Silveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Desespero e Reflexão

Um cheiro forte de urina e fezes pairava em um pequeno quarto com paredes brancas já amarelecidas por causa do tempo. Havia uma janela com molduras antigas e uma vidraça encardida. Nesta, o desenho de uma ninfa de orelhas enormes e pontiagudas, boca singular e larga, olhos orientais e interrogadores, pés afinados com dedos grandiosos, tirando o dedão que mais parecia uma panqueca. Tinha mãos fininhas e dedos compridos e alvos. Estava seminua e tinha consigo fabulosa beleza. No céu do compacto quarto de Alberto, forrado com um gostoso papel preto e aveludado reinavam estrelas belíssimas que quando aprofundadas na obscuridade assombrosa, brilhavam verdadeiras. Havia também luas, um sol radiante, planetas e bichinhos idiotas e pulcros. Um móvel rústico, pesado e amarronzado, ao lado da cama de Alberto, descansava preguiçoso. Um pequeno guarda-roupa de cor marrom-escuro com detalhes nas partes superiores e compridas portas, gavetas largas e eficientes, puxadores vagabundos de cor doirada, completavam a estética assombrosa de seu minúsculo leito mortuário. Ao abrir o guarda-roupa encontravam-se casulos de baratas, ou seja, lá o que for, reinando superiores. Encontrava-se vez ou outras, baratas de longos bigodes, pernas fininhas e práticas, desfilarem despreocupadas nas paredes.
O sol não adentrava o quarto, não era permitido nenhum tipo de pensamento que o fizesse recordar dias gostosos onde brincava com a molequinha, lhe cantando uma música de criança, mais parecendo um adolescente com seus neurônios pulsando, do que um homem casado e com responsabilidades, mas o que importa? O coração de Alberto, assim como o coração apaixonado das meninas-moças, mergulhava na paixão e no amor, sabe? Paixão por sua família, pelos momentos bons, bons mesmo! Ah, claro, olé! Como eu poderia esquecer de escrever a principal felicidade que causou comoções tão frenéticas no coração de Alberto?
Vez ou outra Karol vinha lhe fazer companhia e verificar se Carlos Aberto precisava de alguma coisa. Era mulher tão atraente! Seus curtos cabelos negros mostravam-se gostosos. Seus olhos castanho-mel cintilavam radiantes. Suas nádegas gordinhas românticas bailavam em ritmo formoso. Estatura média para baixa, um metro e sessenta. Pequeninas mãos e minúsculos pés ela tinha, que tão belos e gentis, eram admirados por todos, inclusive mulheres. De dedinhos tão bem feitos e unhas tão bem claras e bem cuidadas... Sobrancelhas de tal negritude que reluziam ao contato profundo do sol namorador. Finos lábios que mudavam de cor no inverno e, no verão voltavam a ser achocolatados, sua cor natural. Reinavam saborosos. E quando Febo adentrava vigoroso no verão, introduzia fortes olhares doirados, com gracioso toque salafrário, fazia dos lábios dela, tão femininos, extremamente sedutores. Os dentes brancos e bem feitos, quando seus lábios se esticavam, fazendo assim um movimento que as mulheres lindas e formosas têm o dom dentro de si para fazer, orgulhosos mostravam-se, sendo assim, causando uma impressão fabulosamente esplêndida, esplêndida, esplêndida.
Quando Karol conheceu Alberto, não se apaixonou pela primeira vez. Ah, que gostoso é se apaixonar e sentir a fragrância tão deleitosa da amada, fragrância que chega muito perto de perfumes inimagináveis. Fragrância adocicada que mais parece uma deliciosa rosa. Deve ser por isso que sentimos frenéticos sentimentos e vontades tão esdrúxulas de morder cada parte deliciosa do corpo dessas diabinhas de uma figa! Ah! É assim que podemos definir realmente a pele natural da mulher. Ela já nasce cheirosa e feminil! É uma coisa incrível e que enlouquece qualquer mancebo! Digo que tão esplêndida e macia é a pele dessas maravilhas, que só veio ao mundo para nos trazer deleitosas alegrias.
Conheceram-se em um restaurante. Alberto era muito brincalhão e conquistador. Levantou-se de onde estava e se dirigiu na direção de Karol, tímido, com andar dançado e olhos estúpidos. Esta bebia um vinho e fumava um cigarro vaporoso. Pensava, com seus olhos vagos, quietos, em filosóficos pensamentos qualquer. Interiorizada dentro das profundezas de seu interior feminino, onde bramiam bagunceiras palmas mudas. Degrau por degrau, iam subindo seus pensamentos, lentamente, vagarosos, não tinha pressa, não tinha mesmo! Suspiros, vez ou outra, enchiam seus feminis pulmões de uma devassa esperança covarde. Enchiam de um encher gordo, obeso, fazia um grande e gostoso volume nos seus seios, que já eram grandes, não tão grandes, mas bonitos, proporcionais para seu tamanho e corpo. Degraus que não sofreram as brutalidades do tempo, pois este já não tinha mais motivo para existir. Parou, parou, tudo parou, seus olhares, os degraus não se desgastavam mais, a vida já não passava, interiorizada no nada, vazio, vazio, sabe? Degraus que frios, úmidos, por causa da frieza dos nossos passos indecentes, pisando-o sem piedade, sem justiça, amortizavam-se no tempo inválido, hipócrita, hipócrita. O tempo parou, o tempo parou de uma vez por todas para ela. A terra parou! Esta não girava mais em volta do rei doirado, nós já não envelhecemos mais e Karol absorta, sem olhar, sem nada, vazia, já sofria as conseqüências.
Os degraus que levariam Karol a um alto grau de superioridade ou inferioridade íntima, já não se desgastavam, tinha parado aquele momento, não existia também Deus, Deus estava morto, Deus morreu. Seu sentido foi morrendo com a idéia chamada esperança, chamada muleta, chamada Deus. Ela suspirava, suspirava, manhosa e cansada. O cigarro soltava vapores e os vapores dançavam como bailarinos. Perdia-se no ar compacto de um restaurante vagabundo, barato, vulgar. Vez ou outra tomava uma taça de cor cristal nas mãos e levava à boca. Descansava um bocado de Dionísio, enchia a boca, enchia mesmo, sem medo, não tinha, não tinha! Com o líquido na boca, sacolejava, sacolejava com vontade, de verdade, depois engolia, escorregando pequenos goles goela abaixo. Logo suas faces enrubesciam e um calor lhe penetrava as entranhas. Subiam queimando a sua bela barriga e mergulhava logo após em seus belos seios, enrijecendo os avantajados bicos que rosetavam gostosos.
No que pensava Karol, tão pensativa e longe, distante. Há homens cujos olhos se perdem na distância, há mulheres cujos olhos se perdem na distância. ’’Tão tristes! Tão tristes mesmo! Melancólicos assim, quase a derramar uma torrente de águas mornas e temperadas!
Seu cigarro estava quase a mordiscar seus belíssimos dedos morenos claros. Desceu os olhos, quase lacrimejantes, olhou-o com intensidade e nojo, amassou-o num cinzeiro incolor, acendeu outro, deu uma bela tragada e ficou na mesma posição idiota: a cabeça pendia para o lado esquerdo. Os olhos, interrogando o firmamento. O cigarro vaporoso pendia em sua mão desmunhecada. A bebida, descansava preguiçosa no copo. A vida, a vida, a vida é um passo atrás do outro, um passo atrás do outro, vagarosa, lenta, chata, maravilhosa, esplêndida, indecisa. As palmas ainda quedavam mudas, o que queriam elas? O que queriam? As palmas do fracasso, do cansaço, da monotonia, das esperanças covardes, que gera esperança covarde! Os ecos vibrantes e assustadores nos tomam o tempo todo! Não escutamos, não é possível! Mas eles ecoam na eternidade, na eternidade do prazer, no interior de nossos sentimentos, agimos com o coração! A razão nem sempre é necessária, aliás, não é necessário agir com a razão, você não vive, você não vive. O amor não é razão, é emoção, comoção.
Alguns pensamentos vagarosos tomavam a cabeça de Karol. Olhos desassossegados brilhavam, mas tranqüilos, estranhos, estranhos. Há coisas que não sabemos explicar, mais existem. Olhos inquietos, inquietos, inquietos, assim, valiosos, românticos, mais ainda sossegados. Estranhos.
Alberto dirigiu-se a mesa onde estava Karol, esta olhou assustada para ele, não fez nada, esperou o que Alberto iria dizer, queria saber, queria! Chegou e se apresentou a ela com ar estúpido e meio sem jeito, mas ainda com uma boa dose de romance. Disse a ela que o olhava indiferente, não fazia gesto algum e isso fazia Alberto tremer um bocado com as palavras, dizia que Karol era esplêndida. Falou que a achou muito bonita, atraente, sedutora. Talvez fosse mentira, mas ela era bonita; grossas coxas morenas claras. Lindos peitos, boca singular e pequena, olhos vagos, vagos, vagos, ainda vagos. Após ele ter dito isso, Alberto esperou uma manifestação da parte de Karol. Olá! Ela não fez nada! Olá! Ela não fez nada!!! Não falou, não mexeu os olhos, o cigarro queima, a bebida valsa no copo. Mas ela levou o cigarro à boca, tragou gostosamente e jogou um vapor nas faces de Alberto, ele ficou sem graça. Ela sorriu, um sorriso falso e bobo, forçado, amarelo. Pediu para ele sentar, ele sentou, orgulhoso, vencedor. Depois de várias palavras ele deslizou aos belos ouvidos de Karol uma poesia, ela sorriu gostosamente, de um sorriso gostoso, daqueles que precisamos nos envergar para trás para ficar mais apetitoso, emocionante, emocionante. Encantou-se por ele, mas não era amor! Saíram e se conheceram. Na época eram jovens namoradores, mas em tudo há conseqüências e resultados por causa destas mesmas conseqüências. Estavam saindo da adolescência. Ele com 18 e ela com 17. Já trabalhavam e se sustentavam, eram donos de si, faziam o que desse na cabeça para fazer. Não foi difícil um visitar a casa do outro. Eles não se amavam, o amor às vezes vem com o tempo, o tempo, sempre o tempo! Mas uma atração os ligou de uma forma tão inexplicável que eles mesmos não entendiam. Resolveram que iriam se amasiar, não era necessário o casamento! Não eram religiosos e achavam isso tudo uma grande idiotice!
Faziam o que queriam. Aos poucos, conforme foram se conhecendo e conhecendo os defeitos e qualidades que tinham, vieram as brigas; as promessas de amor, os planos para mil anos e outros mil eram sonhados tão romanticamente, não deveria ser o contrário, não deveria, a química é o segredo! “ Nós precisamos das paixões’’!
Os anos foram passando e com eles a solidão de ambos. Decidiram que resolveriam o problema da solidão com um filho. Tiveram uma menina. Linda, a diabinha, assim parecida com a mãe. As crianças seduzem, seduzem! São maravilhosas as meninas! Como aprendem tão rápido todas as coisas que vêem e como crescem se tornando mulheres tão magníficas, belas, inteligentes, práticas. Acho que nunca entenderemos a mulher, nunca, nunca! Mas o que importa? Tudo, tudo! Quando não entendemos, o desconhecido nos martela o pobre do nosso entusiasmo, entusiasmo de verdade.
Mesmo com a filha nascida, ainda continuaram a morar em casas separadas. Um belo dia, Karol já sem paciência, pois era uma mulher de pavio curto, quiçá fosse isso o que mais atraiu Alberto, chegou bravia na porta da casa dele e exigiu um fim para aquela situação. Ele ficou parado, não sabia o que fazer nem o que falar. Resolveram, brigaram um bocado, soltaram o ar denso que respirava injúrias menores e outras nem tanto, mas depois tudo acabou em voluptuosos e porque não dizer, ferozes beijos! Decidiram que morariam juntos e viveriam como uma família, assim como qualquer outra, muito feliz e harmoniosa.
Alguns anos se passaram e os primeiros raios prateados valsavam deliciosos pela cabeça de Alberto. Foi ao espelho num dia sem importância e chateou-se muito ao vê-los despreocupados e sorridentes tomarem boa parte de sua cabeça ovalada... estética, estética, estética! Tão realmente despreocupados que dormitavam um sono gostoso e invejável. Falou à mulher de seus prateados cabelos e ela lhe respondeu que ele já não era mais um adolescente. Karol antes tinha lindos e longos cabelos enegrecidos, que já não era possível encontrar, cabeleiras que vastas, desfilavam o belíssimo clássico de Mozart e como rainhas magrelas e langorosas, chicoteavam-lhe ao meio de sua elegante e fina cintura de pilão. Cortou bem curto, se irritou, vai lá saber, e quando bem curtinhos, aproveitava para dar um realce a mais em seus prazenteiros e belos olhos.
Faltava a metade da perna de Alberto, não podia se mexer, apenas os olhos encovados. A luz de seu quarto de forma alguma poderia ser acesa. Quando sua esposa entrava para lhe fazer curativos e limpá-lo, trazia nas mãos uma vela acesa, que fazia reinar uma luz bruxuleante, mórfica, pesada, penetrante.
Era natural que Alberto pedisse a sua esposa para não acender a luz, pois não encontrava, não queria encontrar coisa alguma que podia lhe causar lembranças doloridas de felicidades que um dia viveu.
Deixou de falar após ver a sua mulher choramingar desesperada ao olhar para os braços de Alberto, inertes. Não se mexiam! Quando Karol lhe ia levar os alimentos, dados na boca, e executar demais afazeres, como limpar seu corpo, varrer o quarto e, claro, conversar um bocado com Alberto, para distraí-lo, precisava disso, um pouco só, para se distrair, para distraí-lo, era notável ver a amargura no rosto de Alberto. Uma tristeza singular, acre, compreensiva, amarga, amarga. Uma tristeza singular e compreensiva. Só que Alberto não falava, como se a culpa de sua situação fosse da mulher. Não era, ele sabia disso!
Mônica entrou logo após, com outra vela nas mãozinhas de menina de nove anos de idade. Viu o pai pela primeira vez daquela forma: inválido e imprestável. Não entendeu, deixando cair a vela no chão de um quarto mortuário que fedia a carne podre, suor, fezes e urina. Ele só a olhou de rabo de olho e nem ligou. Mas por dentro morria um homem.
Karol queria viver novamente, queria viver! Agora era sua vez de ser o chefe da família e começar a trabalhar para sustentar as necessidades do marido, que não eram nada baratas. A molequinha ia mal na escola, o que era um absurdo, não podia, não podia! Escorregou nos lábios tristonhos um sorriso forçado para Alberto, que nem a olhava. De que forma ele olharia para a mulher que tanto soube amar, de que forma? As coisas são realmente estranhas; hoje você está bom, bem, alegre, amanhã já é outro dia e o seu sorriso já não tem efeito algum, chato, frio, indiferente, congelado. A tristeza toma, toma, toma cada parte dos nossos sentidos e afunda nossos sentimentos, logo não temos mais nada!
Karol, junto com a vela, trouxe consigo a dor que pairava em seu coração de mulher.
Colocou-a em cima de móvel rústico, o mesmo móvel que havia perto da cama de Alberto, amarronzado e pesado. Disse que já não agüentava mais aquilo, estava cansada, era natural. Foi um estouro necessário, um abuso tomou sua tolerância e Karol explodiu. Partículas de seu esgotamento feriram o coração de Alberto. Falou quase aos gritos, cansada, esgotada, que situação, que situação! Ele fez um muxoxo, não gostou daquilo, mas o que poderia fazer? Alberto estava mais triste do que todos ali. Karol abriu a janela e ainda muito nervosa falou alguma palavra ofensiva. O ar entrou com toda a força que lhe foi possível. Ele sentiu, depois de muito tempo, a graciosidade branda, porém feroz ainda.
Foi à porta e trouxe cheia de água, uma bacia. Trouxe outra vazia, lençóis limpos. Era hora de lavá-lo! Estavam sozinhos no quarto. A molequinha saindo chorosa foi se esconder num cantinho atrás do sofá. Lá ficou ela, ficou lá, quietinha, mimosa, chorosa. Não ligou a televisão para assistir um programa gostoso de criança, não sentiu vontade de comer o biscoito recheado que descansava saboroso em cima da mesa, mesa simples, azul, faltavam duas cadeiras, havia comprado, já usada, de uma senhora, uma vizinha fofoqueira, enxerida. O biscoito era recheado com morango, ela gostava de morango, ela gostava. Às vezes abria o biscoito e só lambia o recheio, a língua ligeira. O biscoito seria servido a ela se esta fosse uma menina boazinha e comesse toda a comida. Daquele tamanho e a dor já adentrava impiedosa e feroz em um coraçãozinho tão frágil e inocente. Conheceu tão pouco o pai, brincou tão pouco com ele... Hoje ela o viu faltando um pedaço de sua perna inválida, nem olhou para ela, sua filha. Olhou, mas indiferente, sabe? Um olhar opaco! Não poderiam julgar Alberto. Mas Mônica ainda é uma menina, como poderíamos cobrar um julgamento de tão pequeno e frágil ser? Jamais! Não, não, não, não! Talvez quisesse que o pai morresse de uma vez. Sim, pois para ela o pai já estava morto. Vai, vai, nos livre de tudo isso!
Karol tocou nas faces de Alberto e ele lacrimejou mirando bem em seus olhos. Ela lhe disse que era hora de tomar banho e virou-se para o lado onde estava a bacia com água. Uma torrente de lágrimas rolou por sua pele. Não queria que Alberto a visse chorar. Limpou o rosto com o lado superior da mão, como criança, e seus bons e machucados olhos lacrimejaram novamente, insistentes, chorosos. Falou qualquer coisa para ele, que nem ouviu direito, com voz faltosa e trêmula que assumia um ar de submissão diante de seus melindrosos sentimentos. O lençol de Alberto estava molhado de urina, a calça plástica que lhe cobria inválidos órgãos, havia falhado e escorria boa parte de suas necessidades por suas pernas, também magras e inválidas. Fezes, fezes.
Um dia Carlos Alberto chegou bem pertinho de Karol e lhe soprou ao ouvido deliciosas poesias. Gostava de ser poeta e sempre lhe recitava seus versos; ela gostava muito, dava alegres sorrisos. Logo após, beijavam-se e se acariciavam, diziam coisas sem importância, sem significado, gostosas, dóceis, mimadas.
Ele brincava com a filha, contava-lhe as histórias dos irmãos Grimm. A molequinha ficava com os olhos acesos, espantados, quando ouvia seu narrador desfilar palavras com tanto suspense. Às vezes ela colocava o cobertorzinho, cor do mar e do céu, sobre a boquinha, deixando apenas o pequenino nariz sardento e dois olhinhos estabanados e arregalados, pobrezinha! Ele contava a história até ela dormitar, sossegada, manhosa. Fechava os minúsculos olhos vagarosamente, onde reinavam também dorminhocos, os seus espessos cílios negros. Suspirava fraquinha, pequeninos pulmões a trabalhar preguiçosos, mas atentos. Às vezes seus pezinhos insistiam em respirar do lado de fora de tão gostoso e infantil cobertor. Mexia os dedinhos com tanta graciosidade que dava vontade de mordê-los por serem tão maravilhosos. Ele a beijava nas faces de menininha, ambas rosadas, parecendo mais dois morangos e ficava algum tempo olhando para ela com orgulho! Vez ou outra Karol chegava nas pontas dos pés formosos e delicados, e colocando suas mãos gostosas no batente da porta, ocupava-se em contemplar com um lado da face dormindo nas mãos. Sempre gostou de apreciar a atenção que Alberto dava à molequinha. Se o amor não adentrou no coração daqueles dois adolescestes descobrindo a vida naquela época, foi só por que não era ainda necessário o amor; entretanto, agora já sabiam que o danado do cupido flechou-lhes o coração de tal modo.
Viviam felizes, jantavam sempre juntos, sorriam ainda mais felizes, como uma família completamente embriagada por aqueles momentos.
Trabalhava duro, pagava suas contas, não gostava de dever a ninguém! Tinha um naco orgulhoso, mas quem não é pelo menos um bocado? Quando sentia que seu orgulho o tornava um ser concreto, algo frio, morto, inexistente, sentia-se envergonhado. Logo lhe vinham pensamentos contrários e confusos, pensamentos sobre vida, a felicidade, o rancor que ele tinha de algumas coisas, o ódio que sentia de si às vezes, a incerteza, confundia orgulho com complacência e achava que estava fazendo a coisa certa, mas o que é certo? Tornou-se um homem confuso, Karol não o entendia direito, brigavam e em um daqueles dia de fúria disse a Karol: “ Não sou humano, não sou não sou? Então vou errar, vou errar e não vou me arrepender’’. Mas o erro veio das crenças e com isso martirizava-se, mesmo tendo consciência de que era humano e tinha o direito de errar. Criava com seu “erro’’ uma má consciência que o perturbava. Não existe erro, não existe! Se há vida, há conseqüências, há fatos e atos! Os atos podem ser corretos ou não! Mas se nós julgarmos os atos corretos ou incorretos, não estaremos sendo moralistas? O que é certo e o que é errado? Buscamos sempre coisas que formam enormes barreiras na nossa vida e por essa barreira criada por Alberto a si mesmo, ele se encontrava confuso, confuso, confuso, perdido! Não faça isso, nem aquilo e muito menos aquilo outro! Não, não, não. A negação, o que é a negação e até que ponto ela pode ser necessária? Quando dizemos sim, estamos negando ou afirmando algo que já está afirmado há muito tempo?! Paremos, paremos!
Chegava cansado em casa, depois de um dia dos diabos. Agüentar a frustração das outras pessoas. Mau humor do chefe, chateações, as pessoas se tornavam maçantes e indigestas. Mas nem por isso deixava de ser carinhoso com a mulher, filha e com as pessoas, mesmo as indigestas!
Respirava à base de aparelhos, comia agora papa de neném. Teve que se acostumar a comer batata amassada com caldo de galinha por cima. Já não tinha mais motivo para comer, beber, amar, sabe? Claro, claro! É realmente compreensível. A vida, quando envolvida na pseudoplenitude é a coisa mais fabulosa que pode existir. Sempre nos enganamos, sempre procuramos subterfúgios para sairmos do alto grau de realidade em que nos encontramos. A realidade é simples, porque tornamos as coisas simples, objetivas! Pegue uma rosa e desfigure-a, tem-se pétalas ao chão, palavras, entende? São escolhas, tudo é escolha, o subterfúgio é uma escolha, viver é uma escolha, nascer jamais será! Não sabemos de quem viemos, não sabemos quem somos realmente! Fique muito tempo olhando-se no espelho e tem-se a coisa mais horrível do mundo!
Precisava colocar Alberto sentado, encostado na parte superior da cama onde estava, sufoco! Nada, nada, nada nele se mexia! Mas antes de tudo Karol tinha que limpá-lo! Claro, era necessário. Ele era pele e o osso, não comia direito, a papa já não tinha mais sabor de nada, costumeira, ruim, gosmenta. Tirando a camiseta de seu esposo, Karol se impressiona com o que vê: um corpo extremamente magro e assustador, sem vida, raquítico, onde sofrivelmente dava para ver as desonrosas costelas se exibindo estupidamente superiores para fora. No mesmo instante sentiu um forte odor de fezes, que tomou suas narinas. Ela resistiu. Não moveu as narinas para não magoar o marido, ignorou aquele odor horrível. Não mexeu as narinas, não mexeu de forma alguma! Transcendeu para poder fugir.
Sentado. Seus braços mortos e pendidos para baixo, sem movimento, sem perspectiva. Não estavam soltos no ar, não estavam livres, não existia a liberdade! Estavam presos, condenados, absolutamente engaiolados na jaula do destino. O homem que Karol amou, estava com os olhos tão esquisitos e estúpidos, penetrantes, encovados, com manchas enormes ao redor! Suas faces raquíticas transpiravam piedade. Ah! Que sentimento extremamente hipócrita para se desejar para uma pessoa. Mas o que Karol podia fazer se seus sentimentos estavam totalmente ignóbeis, contrários, realmente contrários aos que já foram por ela tão aclamados superiores e gostosos? A felicidade! O paradoxal e ao mesmo tempo ambíguo sentimento que marretava o coração hipotético de Karol tornou-se algo confuso, não sabia o que sentia, o que falava e para quem falar aquilo de que ela não tinha certeza. Karol sabia, um desespero tomava seu peito, seu coração, seu estado físico. Às vezes ela andava de um lado para o outro, sem saber o que fazer, o que falar. Acendia um cigarro, jogava metade fora, acendia outro e jogava-o sem tragar. A molequinha só olhava, espantada, com medo, sem entender nada. Karol queria tanto que alguém chegasse e lhe oferecesse a ombreira amiga. Não, não, não. Interiorizava toda a sua mágoa e choramingava, quando assim não conseguia desabafar, chorando ou falando nervosa com a molequinha, brigando com esta, falando duro, pisando mais ainda, enrubescia por inteira; lhe nasciam nas coxas grossas de mulher formosa, arroxeada marcas por medidas do nervosismo acumulado. Era de se entender! A vida em que Karol se encontrava atolada, uma lama amarronzada e densa que a sufocava, estava tomando boa parte de sua graciosidade que um dia foi muito invejada. Ela guardava tudo lá dentro, mas muito fundo mesmo, na profundeza tenebrosa que existia em seu interior e, talvez, um dia quando aquilo tudo acabasse, ela teria o que falar e de quem falar. Falaria do marido com muito orgulho, mas com pesar estabanado e incoerente. Acho que não saberia dizer realmente a verdade. Importa, importa alguma coisa?
O subjetivismo de Alberto já não tinha mais nenhum valor. Respirava com dificuldade. Malditos aparelhos, nem para isso servem! O que seria doravante desse homem? O que é este homem que sobrevive em situação quase vegetativa, subumana?
Antes de sentá-lo teve que limpar seus órgãos, mergulhados nas próprias fezes. A calça plástica especial era realmente imprestável, ainda mais do que ele. Como a vida muda de um dia para o outro. Sou outro amanhã, sou outro depois de amanhã e nem sei mais o que serei nos dias que possam vir!
Ela pegou um pano seco e tirou o máximo que pode do líquido denso que desfilava entre as pernas de Alberto e exalava um azedume dos infernos. Jogou o pano na bacia vazia e pegou outro molhado em outro recipiente cheio de água.
A molequinha ainda chorava! Não queria saber de nada. Levantou-se chorosa a menina, limpou os olhinhos lacrimosos, tomou de uma bola dente-de-leite e começou a brincar com ela e sorrir tão alegre como se nada tivesse acontecido. Que esplêndidas são as crianças! Como tudo as choca tão terrivelmente e ao mesmo tempo, tudo é alegria, brinquedos e brincadeiras.
Karol um dia adentrou no quarto de Alberto e sentiu um forte cheiro de podre. Como ela não percebeu aquilo? Deus do céu, como ele não avisou sobre o cheiro? Ela com tantas coisas para fazer... trabalho, a molequinha, ganhar dinheiro, sustentar a casa, a escola da menina, Alberto, a molequinha, trabalho, Alberto, trabalho, trabalho, trabalho. Sua perna havia apodrecido porque ficou deitado de lado por semanas. Deus do céu, por que ele não falou para mim? Eu o limpo, eu o limpo todos os dias e não pude perceber isso, como? A culpa é minha, é somente minha, sim, somente!!! “Também... porque esse desgraçado não me disse nada?’’- reclamava Karol consigo mesma, martirizando-se e tentando achar um meio de não levar a culpa sozinha. Era natural. Ela sozinha para ver tudo, cuidar de tudo, não dava, isso não! Ele não reclamou do cheiro insuportável! Como ela não pode notar algo tão... tão... tão...? Não teve dinheiro para comprar uma cadeira de rodas, onde seria possível colocá-lo sentado; quem sabe com isso, o ar não seria tão tépido, tão morno, denso, mal cheiroso? Ele era um estorvo. Ela já estava cansada disso tudo, queria dar um basta! Chamou o médico imediatamente, deve a este até a morte. Os hospitais públicos são um fracasso. Mas como pagaria uma cirurgia? De que forma? Chamou um médico que conhecera no hospital onde Alberto fora levado pela primeira vez e, que sensibilizado pela situação da família, disse a ela que se precisasse era só chamar. Deu seu número de telefone a ela. Karol não hesitou. Ligou para ele, que acudiu imediatamente! Examinou a perna de Alberto e disse que era necessário levá-lo ao hospital, pois aquela estava podre. Disse isso para Alberto sem mesmo temperar as palavras, que lhe foram insossas, rasgando e sangrando seus ouvidos. Engraçado, ele nem fez gesto, nem ligou. Ora, se nem sentia mais sua perna, por que motivo iria se magoar e sentir falta de um membro insignificante?! Alberto estava morto por dentro. Nada o afetava. A dor sucumbia nas entranhas de sua alma e adentrava nos infernos ardentes de sua mente padecedora. Não havia sonhos, felicidades, harmonias, esperanças. Queria correr! Cantar. As poesias já não tinham significado. Em tão vagos sentimentos, a lucidez de seus agora perturbados pensamentos transportava-o para um estado transcendente no qual sua mente acostumou-se a mergulhar. Seus sentimentos estavam compenetrados no conformismo em que se encontrava e empalados pela estaca desrespeitosa do destino. Tudo é movimento e espaço. Ele não tinha movimento para que lhe pudessem fluir as idéias floridas. Mas as idéias são utopias e nem sempre nos vêm à cabeça! Se o espaço não era pior do que o movimento, estava perto de ser. Sua casa se resumia em um leito de lençóis brancos e, muitas vezes, defecados, sujos, infectos por suas próprias necessidades. Temos todos um só funcionamento, mas somos diferentes, porque decidimos que assim devemos ser.
Cortaram sua perna. Serraram acima do joelho. Ele não estava acordado. Ora, não iria sentir mesmo. É engraçado como as pessoas reclamam da vida! “Maldita vida! Eu poderia estar morto! Que vida dos infernos eu estou vivendo! Se eu comprasse aquele carro minha vida iria melhorar absurdamente! Absurda é a injustiça que fazem consigo mesmo! Ah! Como me vêem vários pensamentos, tão fluidos e frenéticos. Como me lembro com nitidez. Como água cristalina, ou como o brilho nos olhos da amada, daquela bela frase de um grande filósofo alemão: a vida é uma celebração! - Claro, claro, claro, eu concordo. Mesmo que a vida seja um sofrimento constante, uma dor aprazível que machuca e magoa o tempo todo nosso interior. Mesmo que não consigamos sorrir, um sorriso manhoso e gostoso, alto. - vai lá! Vai lá, vida! Vai lá bailar com a morte, sei bem que ela e você são uma só. Eu não me importo, amo-te vida! Amo-te morte – que bom é sorrir colocando para fora aqueles nossos amarelados dentes! Claro, existem aqueles que não os têm. Ora, mas o que vale é o sorriso, não é isso, não é? Deixem suas gengivas soltas, portanto. Deixem-nas respirar. Que gostoso é sentir a brisa acariciar com suas mãos tão brandas as nossas faces, que gostoso é sentir o cheiro maravilhoso da amada e dizer a ela várias palavras dóceis e idiotas, engrolando todas, mas dizendo, vivendo. Mas o que importa não é o olhar apaixonado, o viver emocionalmente todos os dias intensamente? Intenso, denso, penetrante, ressonante, violáceo. Sempre tocando a amada, desejando-a, amando-a, apaixonando-se todos os dias por ela e por tudo; não é bom sentir e ver as folhas das árvores mimosas chicotearem-se ao vento, o cantar desafinado do rouxinol esperto, o piar da coruja? Não é gostoso mergulhar nas vastas cabeleiras formosas da mulher desejada e nadar no oceano flamejante que reina em seu coração? Um amor eterno até quando durar? Que gostoso não é beijar os lábios escarlates ou amarelados de Baco e embriagar-se de vontade, de vida, cantarolando sonatinas ou recitando poesias as mais belas mulheres que desfilam todos os dias nas estradas tórridas do nosso coração que não é tão bem desenhado como falam e fazem! Pois cada dia é uma vida e uma vida é uma realização diferente. Ah! Como eu gosto de me sentir um estranho no dia seguinte, nem me conheço. O que importa não é sentir o tocar delicado da diabinha da mulher? Um ser tão maravilhosamente peculiar e singular. De trejeitos desengonçados e de falar extremamente adocicado e calmo. Um ser de curvas tão bem feitas. Pegue um rosa e tem-se o mesmo cheiro da mulher. Um ser de nádegas maravilhosamente bem torneadas, de um desfilar macilento e de níveos pomos donairosos, peculiar, sensível, apaixonante. A mulher é como a vida, a rosa, os ventos, as palavras. Algo quase perfeito e tão deleitoso que transcende os nosso sentidos, todos os sentidos, todos os motivos que temos para as coisas, tudo que acontece! A mulher é uma fúlgida luz diamante que valsa compassada nas nossas emoções, no nosso coração”. Assim era Karol, uma mulher como todas, só que diferente de si mesma e de todas, estranha, peculiar, formosa e mulher!
Ele voltou para casa depois de alguns dias no hospital, escolheram uma hora em que a molequinha estaria na escola. As poucas vezes que ela ia. Estava faltando demais, coitadinha!
Vieram com ele dois enfermeiros. Ajudaram sua esposa a colocá-lo na cama. Ele nada falava. Um olhar distante. Não importa!
Lembrou, assim que os enfermeiros o colocaram na cama, de quando orvalhava macilentas gotas salivais na boca formosa de Karol. Mordiscava os canteiros de seus lábios veludosos e apaixonados, murmurando ao mesmo tempo um sopro de palavras incoerentes e infantis. Gostava muito de parar em frente a sua mulher, com o nariz quase a beijar o dela. Karol deixava vir uma profundeza em seus olhos acesos, estáticos.Um concreto sem vida, sem sentido, que penetrava no seu íntimo infinito, observador e em seu desejo absoluto. Interiorizava, sim, esta é a palavra, interiorizar; interiorizava tudo que acontecia; felicidade, tristeza. Às vezes ela ficava olhando para Alberto, indecisa, não sabia o que ia fazer com ele, com ela, com a molequinha, era muita coisa para uma pessoa só! Os canteiros dos seus olhos, grandes e castanho-mel, brilhavam. Uma bola reluzente para cada belo olho. Muito belo! Pensava com eles, falava com eles. Falava, falava para si, para o mundo, para a vida, para tudo! Penetrantes, penetrantes até o último fio da vida, o último fio da alma.
Via nos olhos dela, logo após, uma primavera cheia de flores, de rosas, cores e cantorias de vagabundos pássaros que bailavam no ar, todos despreocupados, estranhos, contraditórios! Os sentimentos são imprevistos. Ela não se conhecia. Estavam tão soltos aqueles olhos que desfiguravam empastados naquele rosto tão translúcido, de uma grande beleza.
Quando Karol resolvia deixar seus olhos malucos, quiçá por se sentir tímida, as plenas faces rubras diante da contemplação do marido, quiçá por coisa alguma, sentiu-se constrangida, receosa dele achar algum defeito em suas belíssimas faces, eu sei lá! Deixava-os brincar coloridos e cheios de vida, dançando de um lado a outro, de cima para baixo. Arregalava-os. Belos cílios sorridentes, vergonhosos, caprichosos, um desfile. Reinavam como soberanos. Tão inquietos ela os deixava, que dava comoções só em olhá-los, todavia, tão dóceis e meigos como a jataí inofensiva, tão peralta que em primaveris dias, aspira os polens das mais belíssimas flores dos vales e jardins de nossa imaginação. Assim como a jataí era apreciada e acariciada pelos deleitosos dedos doirados de Febo, os olhos de Karol eram apreciados pelas masculinas, mas ainda delicadas mãos de seu esposo. Não era Febo e talvez nunca fosse, mais trazia consigo os deleites necessários para deixar Karol realmente apaixonada. Amor!
Um belo dia, quando o sol resolveu brilhar significante, Karol foi ao mercado comprar coisas sem importância. Aproveitou que a molequinha estava na escola e que Alberto havia dormitado. Disse consigo que iria num pé e voltaria noutro sem mesmo seu esposo perceber absolutamente nada. E qual o problema dele saber, qual? Não tinha, não importa! Ele não podia andar mesmo, onde poderia ir, onde? Corria de um lado a outro e nem percebeu que estava faltando alimento na prateleira de seu armário de cor bege clara. Alberto não iria se importar mesmo, ela saiu! Precisava sair. Na verdade a falta de alimento dita por ela a ela mesma, era só uma desculpa para sair um bocado e respirar um ar mais puro e sadio. O destino realmente é grandioso. Andou a passos realmente lentos para aproveitar bem a sua caminhada, não saberia quando iria poder sair novamente, por vários motivos, um deles era a falta de dinheiro. Entrou no supermercado, rodou-o por inteiro e não pegou nada. Esqueceu por completo do que precisava. Quiçá o que mais precisava era de respirara mesmo! Respirar, respirar, respirar. Não precisava de nada! Pegou uma lata de ervilhas e ficou olhando para ela estagnada, perplexa! Seus pensamentos estavam muito longe da realidade, pensava em mil coisas, inclusive em Alberto. Tentava arrumar um jeito para a sua situação. Não queria trair Alberto, mas precisava viver; suas necessidades como mulher e ser humano estavam lhe dizendo coisas confusas. Veio com seus pensamentos embaralhados, uma vontade de amar novamente e sentir aquele sentimento gostoso e abrasador, que lhe tomou outrora os seios volumosos e o seu corpo grácil. Veio a vontade de despir-se e sentir as mãos de Alberto afagar-lhe as formosas curvas. Resolveu, num supetão sentimental, que amaria novamente e que mandaria Alberto para os infernos. Logo lhe veio a compaixão. Relembrou o amor que Alberto lhe ofereceu e os bons momentos que viveu com ele. ‘’Por que você não morre, por quê’’? -disse de si para consigo, angustiada! Sentiu suas mãos fraquejarem. A lata de ervilha desmaiou no chão, Karol pousou sua mão na boca e chorou. A latinha rolava no chão, rolava vagarosa, fria, úmida, morta, tímida. Fazia um barulho quase surdo. Um choro de verdade, um choro com vontade. Karol chorava! Veio às suas narinas um cheiro inebriante. Sem mesmo perceber, apareceu diante seus olhos chorosos, um homem alto, bonito e muito bem educado. Havia naquele semblante afinado e masculino, lindos olhos, uma boca bem torneada e delicadas mãos. Chamava-se Ricardo e trazia consigo um charme e uma complacência absurdamente excessivos. Ricardo pegou a ervilha e perguntou a Karol se ela estava bem. Esta respondeu que não tinha importância, era um problema que só ela havia de resolver.
Ricardo tirou um lenço e, uma coisa maravilhosamente ele fez a ela, coisa que nesse nosso século já não encontramos mais, o romantismo e cavalheirismo! Com sua enorme mão, afastou a de Karol que ainda pousava, pequenina, em sua deliciosa boca e, logo após, passou levemente o lenço nos olhos dela, secando-os todos! Karol olhou o mancebo. Estava assustada, mas não fez gesto de negação, estava gostando, nunca mais tinha sentido aquilo novamente. O amor nascia no coração que palpitava e fazia suas faces enrubescerem completamente.
Ele perguntou seu nome e ela, parada como uma tonta apaixonada, idiota, sonsa, com olhos de diamante e boca semi-aberta, querendo falar palavras quaisquer, só olhava atentamente para os olhos dele. Ricardo tornou a perguntar seu nome e ela manhosa, gostosa, com palavras quase surdas, trêmulas e chorosas, disse seu nome. Depois foi tudo alegria, se conheceram mais e mais. Esqueceu por algum momento a molequinha que já estava perto de sair da escola e Alberto, que dormia sossegado. Acendeu um cigarro, tomou um licor de cacau, uma taça de vinho. Trocaram telefones, sorrisos, olhares, suspiros, namoros.
Karol voltou para casa, sorridente e alegre, embriagada por conta do vinho, sensação, Ricardo. No caminho pegou a molequinha que lhe perguntou porque ela estava sorrindo à toa. Respondeu-lhe que estava feliz. Mônica não entendeu muito bem, perguntou sobre o pai a Karol, ela nem respondeu.
Chegou em casa e foi logo ver como estava Alberto. Não havia acordado e assim que ela entrou em seu quarto notou uma coisa estranha após tocar em suas faces; estavam geladas.
Karol levou a molequinha para a casa de uma senhora que sempre lhe perguntava de Alberto e, logo depois, chamou a ambulância. Morreu inválido, triste. Não falou nada, não quis beijar mais a amada. O laudo médico disse que ele havia morrido de insuficiência pulmonar, disse também que estava muito magro e fraco. Se a insuficiência pulmonar não o matasse, outra doença o mataria. Morreu de desgosto, não vivia mais, não sonhava, não amava, nunca mais viu o pôr do sol. Nunca mais sentiu o vento lhe tocar as faces. A vida é escolha, escolhas.
Alberto um dia voltava do serviço para casa, descuidado como era, cansado, esgotado, porém com tanta vontade de encontrar a família, beijar a mulher, contar uma história para a molequinha beijar-lhe as fáceis de criancinha e afanar seus cabelos gostosos... A ansiedade foi tamanha que resolveu pegar um caminho mais curto, onde havia um muro que deveria pular para dar caminho a um atalho muito próximo a sua casa. Chegou perto. Um pulo ele deu e já estava em cima do muro, como macaco em cima do galho, só que seu pé vacilou e escorregou, bateu o pescoço numa pedra e esmagou a cartilagem. Fraturou a vértebra e do mesmo jeito que caiu ficou. Uma senhora que via tudo chamou a ambulância e, como há senhoras quase profetisas, cheias de crendices populares, alertava a todos que gostavam de pular e seguir aquele caminho esdrúxulo, que um dia iriam escorregar e dar um outro caminho para sua vida. Todo o caminho que acreditamos andar é o que marca nossos passos.
Ficou inválido, sentiu pela primeira vez em toda a sua vida o próprio cheiro de suas necessidades. Sentiu de verdade, o odor da morte e o sorriso da vida, irônica, sabe? Irônica mesmo! Sentiu vontade de olhar o pôr do sol, de dizer à mulher que a amava muito. Sentiu vontade de abraçar a molequinha e de lhe contar as histórias interessantes dos irmãos Grimm.
Antes de Karol ir ao mercado, ela verificou se Alberto estava dormindo. Ele suspirava tranqüilo, realmente um sono. Beijou-lhe a tez e saiu. Assim que a porta foi fechada, ele abriu seus olhos e as últimas lágrimas rasgaram-lhe as faces raquíticas pela derradeira vez.
Enterraram-no, jogaram-no fora, já não existia mais! Importa?
Karol continuou encontrando Ricardo. Faziam planos para viverem juntos, na mesma casa onde viveu com Alberto. A molequinha já brincava despreocupada. Parecia que o pai já não existia em seu coraçãozinho de menina.
No dia seguinte à morte de Alberto, Mônica voltou para casa; havia passado o resto do dia e a noite na casa da boa senhora; entrou, quietinha, a passos bem lentos e cuidadosos, com grandes olhos bonitos e assustados, os cabelos um pouco revoltosos, os brincos de pedras negras reluzindo e bailando majestosos; ela caminhava lenta, lenta. Os danados dos brincos tocando-lhe, vez ou outra, as faces rubras, dois morangos. Sua boquinha estava seca, semi-aberta, respiração ofegante, seu peitinho palpitava frenético, cheio de medo. Sentiu uma falta que não soube dizer ao seu coração de que se tratava. Enquanto Karol foi à cozinha pegar um copo com água, a molequinha, vagarosamente, vagarosa, ainda lenta, ofegava; os brincos ainda bailavam, não tinham medo, não tinham! Foi em direção ao quarto, obscuro e assustador, onde o falecido pai se encontrara sempre. O mesmo quarto que a assustara dias antes, assustara mesmo, de verdade. Bem de mansinho chegou à parede do quarto, encostou um lado da face na beirada da parede e, com as mãozinhas pequeninas bem seguras no batente da porta, Mônica colocou um único olho para dentro do quarto, um olhar apenas, desconfiado. A molequinha só encontrou o vazio.
As folhas balançam tão bonitas nos compridos dedos das velhas árvores. As rosas morrem e renascem como a fênix. A vida é uma só. As asas das rosas exalam uma fragrância assustadoramente deliciosa. Quando dormem no chão em que pisamos, morrem. O sentido é viver dos sonhos e morrer na realidade. Não é permitido aos olhos lacrimejarem injustamente, não é permitido! Nós precisamos das dores, somos todos inválidos! Apenas não sabemos o que a nossa invalidez representa para nós, não podemos saber.
- Mamãe, onde está papai?
- Ele precisou viajar.
- Para onde?
- Não saberia te dizer, filha.


Ed Carlos Bezerra
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