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Contos-->Memórias de Àgua Doce -- 09/12/2006 - 04:44 (Jader Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Memórias de Água Doce



Este livro é a um só tempo uma história alegre e triste. Nele falo do meu pai, da minha mãe e dos meus irmãos. Relembro dos amigos e dos lugares onde estive. São lembranças das coisas e pessoas que vi no tempo em que fui pequeno e ainda sonhava. Os fatos todos verdadeiros que aqui são narrados, estão situados num tempo que começa e termina em Água Doce do Norte, uma pequena cidade do antigo Contestado, onde vivi dos cinco aos quinze anos. Em resumo, é a história boba da minha infância, contada do jeito que sei contar, mas pode ser também, em virtude do longo tempo já passado, apenas fruto da minha imaginação. O autor



Quando saí de Água Doce, há quase cinqüenta anos, eu já sabia que nunca mais ia voltar. Voltei lá, entretanto, muitas vezes em sonho voando na “mãe do ouro”, a nave brilhante e diáfana que me transportava sobre a lagoa, exibindo as casas antigas, meu grupo escolar, o riacho que não existe mais. Antes eu era preguiçoso e entrava naquela nave de sonho para fugir da escola. Agora viajo nela porque tenho saudade da minha antiga professora.






Água Doce

Eu tinha cinco anos quando cheguei em Água Doce. Éramos seis irmãos e logo seríamos oito. Nasceriam mais dois na nova cidade. A vida recomeçava depois de uma longa viagem — uma fuga do meu pai para escapar da terra antiga e cansada de Eugenópolis. O Juca ouvira dizer que havia no Contestado um novo eldorado e acreditou na bela mentira. A vida recomeçaria apenas para ele, já que para mim tudo era novo. Agora era o mundo novo e eu.
Ainda lembro de algumas coisas poucas e sem valor, acontecidas no antigo sítio, mas é um passado cheio de névoa, fronteira do nada. Tudo agora era novo. Eu vinha de lugares insondáveis além do berço, além da barriga da minha mãe — um lugar tranqüilo onde eu apenas dormia, ou melhor, eu era um astronauta irresponsável, viajando sem plano de vôo no espaço amniótico e acordava em Água Doce, sonolento, de uma noite de muitos séculos...
A nova cidade era apenas uma pequena vila feita de uma só rua de terra que começava na lagoa e seguia por uma longa reta. Depois daquela que seria a minha nova casa, virava para a esquerda, cruzava o ribeirão Bom Jesus e acabava na saída para Santo Onofre, indicando o caminho de quem ia para Ecoporanga, Ataléia e outros lugares mais distantes, um fim de mundo onde diziam que era possível até ver o mar.
Mineiro, geneticamente adaptado às grandes montanhas, ainda assim estranhei as altas serras de granito do novo lugar, contestadas montanhas, indefinidas divisas que eu passaria a amar. Aquelas barreiras de montanhas negras, altíssimas e ciclópicas, tornar-se-iam por culpa dos meus sonhos de menino em morada de seres fabulosos. Era tudo real, mas parecia um sonho. Havia pórticos monumentais, janelas altíssimas, construídas por gigantes onde os misteriosos "seres" entravam e saíam. A "mãe do ouro" era um desses seres. "Ela" morava lá e ficava escondida nos abismos internos. De noite saía e sobrevoava os campos despovoados de minha cidade. Lembro que a vi numa noite clara. A temida e amada "mãe do ouro" era uma bola luminosa que percorria os céus noturnos de Água Doce. Flutuava silenciosa, macia, visitando as locas, pousando nos pastos, deixando rastro e cheiro de querosene no ar. Homens e meninos se assustavam. Alguns meninos a olhavam encantados. Os antigos moradores diziam que a estranha luz era a "mãe do ouro". Hoje sei que a "mãe do ouro" foi apenas um apelido que os adultos, muito sábios, botaram nos extraterrestres do meu tempo de menino. Mas, eu que tinha só oito anos e era bem mais sábio que eles. Todos estavam enganados: a "mãe do ouro" era uma kombi cheia de meninos alegres fugindo da escola, disfarçados de passageiros, naquela nave de fogo. Havia dois rios nas redondezas. Eles foram feitos por Deus só para satisfazer à minha hídrica alegria. Um deles era o pequeno ribeirão que passava no fundo da minha casa e o outro, um rio maior, era o Rio Preto, que ficava distante, assim como a lua. Foi lá que tomei banhos e sonhei. As manhãs não acabavam e as tardes seguravam a noite no seu lugar. Pelado e molhado, eu era capaz de viver um século num só dia.
O ribeirão, como acontece com todos os rios que se atrevem a cruzar as cidades, já estava condenado a se acabar. Foi nesse pequeno rio, ribeirão Bom Jesus, que vi presa na areia escura do fundo, ampliada pela lente de água limpa, uma coisa estranha que parecia ser uma bola de bexiga inflada e agitada pela corrente, mas era só uma camisinha!...
Ou seria uma mini biruta submersa? Não, não era. Hoje sei que a mini biruta submersa do meu aeroporto dos inocentes tempos de menino era só uma camisinha dançando no fundo do rio, zombando da minha ingenuidade. Um aviso, uma premonição, talvez um recado de Deus para que eu tomasse cuidado, um cuidado que não tomei.




Bar e Café "Ramos"



Eugenópolis, nunca mais! Depois de uma longa viagem chegávamos em Água Doce, que ainda nem era "do Norte". O Juca, meu pai, se apresentava na nova terra com uma mão na frente e a outra atrás e, só então, se dava conta da vida dura que teria pela frente. Viu que precisava fazer alguma coisa concreta para manter vivos a mulher e os filhos.
Dona Francisca, uma heroína, assistia a tudo. Quando percebeu que o sonho acabaria ali, resolveu intervir com o trabalho. Acontece que o sonho do Juca era encontrar, no fim daquela longa viagem, a fortuna que jamais achou. Sua busca pelo pote de ouro que acreditou haver nas nascentes do arco-íris resultou em nada. Continuou pobre até morrer. O Juca ainda seria, no final da vida, um jardineiro de sonhos. Ele sempre gostou da terra. Era a terra convidando o Juca para voltar.
Meu pai e minha mãe eram dois lavradores e nada entendiam de comércio. Dona Francisca, ao menos, sabia fazer um chocolate gostoso. Decididos a sobreviver, abriram um bar. Bar sem geladeira, onde já se viu? O bar foi aberto e tudo ficou combinado: minha mãe trabalhava e o Juca pescava. Era importante escolher um bom nome para o bar. Decidiram, afinal, que o nome do bar seria "Bar e Café Ramos". O "Ramos" foi tirado do sobrenome da minha mãe. Com o tempo e o relativo sucesso, os fregueses, curiosos, queriam saber a origem do nome do bar. “Por quê "Ramos" e onde o senhor arrumou esse nome tão feliz, "seu" Juca?...”
Os fregueses ficavam curiosos porque o sobrenome do Juca era Ferreira. Então, quem seria "Ramos”? Seria fácil explicar, muito fácil. Bastava dizer que "Ramos" era o sobrenome da dona Francisca, sua esposa, e pronto. Mas ele não fazia isso. Recusava a simplicidade. Cheio de ciências e de ciúmes, o Juca respondia longa e pausadamente: “Oras, é simples... muito simples!... Vejam: "ramo" do cafeeiro, "ramo" de negócio que é o bar, "ramo" de vida... pois é isso, tirei o "Ramos" dos muitos "ramos" que existem... é só pesquisar minha gente!...” Era metido aquele Juca!
O Juca tinha mesmo era muito ciúme da minha mãe. Não sei ao certo por quê, mas nunca dizia que, o nome "Ramos", fora tirado do sobrenome dela, que não se acanhara de emprestar seu nome ao pobre "bar sem geladeira" e que agora começava a ficar famoso. Ao contrário, ela queria apenas educar os meninos e prepará-los para viver, até sozinhos, se um dia fosse preciso. E o pior é que foi.




A Casa e o Quintal


Minha nova casa era um grande L invertido. Por um lado limitava a rua e pelo outro demarcava o limite do quintal. A nova casa era velhíssima. Metade de madeira, metade de tijolos, parecia ser maior do que realmente era. Os seus alicerces tinham sido feitos com esteios de madeira bruta, escorando baldrames mal emparelhados, encaixados muitos anos antes por mãos inábeis.
Quando eu voltava de algum lugar e via a casa, de longe, imaginava que ela estivesse fazendo muito esforço para sustentar as próprias paredes, grossas e pesadas... a casa tinha vida. A um metro do solo flutuava o assoalho de tábuas largas, cheio de junções mal feitas, formando fendas que permitiam vazar o ar gelado que vinha do quintal e do ribeirão, ao longe.
Foi nessa casa, hoje consumida pelo tempo, que vivi meus anos de sonho. Lembro que debaixo dela viviam os bichos domésticos. Eram galinhas e porcos, tranqüilos, aguardando a hora de serem devorados. À noite, os fantasmas dos porcos que tinham sido mortos pelo meu pai voltavam e ficavam lá, assustando a gente até de manhã.
Durante o dia eu e meus irmãos fazíamos perigosas incursões sob a velha casa, guardiã de uma sombra eterna onde havia uma camada de terra antiga e misteriosa, espécie de poeira lunar, fina e fria, que transformei em praia imaginária, de um mar azul que eu nunca tinha visto. A minha praia de poeira, distante do mar, era rica em bactérias, vermes e fungos, mas para minha segurança aquela poeira já trazia consigo, produzidos nos laboratórios de Deus, os respectivos antídotos e anticorpos e, assim, nenhuma doença me incomodava. Ainda tenho saudade daquela poeira milenar, sábia, que Deus acumulou debaixo da minha casa, só para eu brincar! Amigo da poeira mística, escondido na penumbra, eu ficava olhando para cima, através das fendas do assoalho e gostava de ver a bunda preta da velha Tute, comadre e empregada de minha mãe, que parecia uma estátua de deusa etíope. A negra era confiante, mas vivia desprotegida. Uma calça de pano de saco, assimétrica e frouxa, permitia que se visse tudo. A negra Tute, altaneira e orgulhosa, sempre estava acima de mim, autoritária, fazendo alguma coisa útil. Era impressionante, a negra nunca parava. Do meu esconderijo sob a casa, eu ficava olhando para o alto, queria ver todos os detalhes. Minha mãe, branquinha e bonita, também transitava por lá. Eu reconhecia seus passos macios e delicados a passear da sala para a cozinha. Mas eu juro que nunca olhei para cima quando ela passava. Tinha vontade de olhar mas tinha respeito!...
No fim do dia, quando eu voltava dessas aventuras lunares, meus pés vinham povoados de bichos de pé. Esses bichos, que parecem pulgas, na sua missão ancestral de "tungapenetrar" sob as unhas, provocavam uma coceira deliciosa e bastava mostrá-los para minha mãe, sempre disponível para mim, que ela sem demora se armava com uma grande agulha de aço brilhante e cuidava de retirá-los... Era uma delícia!... Eu te amava também por isso, minha mamãe!...
Da janela do bar dava para ver o quintal, longo e interminável, cercado por grossas estacas de cabiúna, uma madeira nobre, perfiladas como velhos templários a proteger nosso reino dia e noite, contra eventuais invasões de ninguém. Eu olhava a cerca feita de grandes lascas de madeira eterna e achava tudo aquilo um grande desperdício: afinal, quem iria invadir aquelas terras poucas, ou querer as coisas pobres do Juca, meu pai?
No quintal havia uma cisterna de onde alguns canos inúteis partiam e se comunicavam com uma construção inacabada, um esqueleto de elefante branco que seria, no futuro, um banheiro completo. Haveria ali uma delícia de chuveiro quente!... Banho quentinho, que bom!... Mas o hierático banheiro tornou-se eterno sem jamais existir. Segundo o Juca, dali jorraria uma água quente que nunca jorrou. Esperei em vão. O elefante branco habitou meus sonhos de menino por vários anos. O banheiro interminável, foi, talvez, a maior "cagada" de um compadre do meu pai, chamado Ginuca, que se auto intitulava engenheiro hidráulico... lembro que esse tal Ginuca se considerava um "gênio". O homem também fabricava dentaduras e vendia remédios... era um Leonardo Da Vinci do Contestado! Um vigarista, isso sim!... Agora sei porque "motivo" o chuveiro, tão sonhado, jamais funcionou!... Se tivesse ficado pronto, ao menos um banho eu teria tomado!... Maldito compadre incompetente! Foi por culpa dele que jamais tomei um banho quente em Água Doce! Mas o meu tempo não foi de todo perdido: aproveitei para tomar gostosos banhos gelados no rio, enquanto esperava...
Havia no meu quintal um chiqueiro imundo, do qual nunca esqueço. Foi nele que perdi o brinquedo que mais amei: um rolamento de aço que eu achara em algum lugar. Onde quer que eu fosse levava aquele aro "pesadinho", gostoso de brincar, que me sobreviveria porque me parecia eterno de tão jeitoso!... Um dia ele me escapou das mãos distraídas e desapareceu para sempre, engolido pela lama do chiqueiro... fiquei atônito. Ninguém mais sabia, só eu: ali, sob o chiqueiro do meu quintal havia uma cratera infinita que ia dar no centro da Terra!... A lama escura que chegava ao queixo dos porcos era a lava de um vulcão prestes a explodir...
Ao fundo, segurando o rio, havia uma moita de bambus preventiva e inteligentemente plantada pelo Juca, cujo único objetivo era impedir o avanço do rio nos dias de enchente... mas a engenharia pragmática do Juca de nada adiantou e ainda lhe causou grande decepção: na hora em que os bambus seriam mais preciosos e everiam segurar as águas da enchente, deram-se as mãos e seguiram juntos rio abaixo!...
O que foi pior: a moita densa, com sua trama de raízes de aço, formou um só grande bloco de terra, que o ribeirão, pensando que era rio grande, levou junto com as suas águas barrentas, roubando um pedaço da terra, já tão pouca, do Juca!... Quando tudo estava sendo levado, feito uma caravela de bambus verdes, olhei para o Juca. Ele estava parado, olhando a cena, perdoando o rio delinqüente, resmungando: “A regra é essa... a regra é essa!...” É sempre assim que me lembro do meu pai. Ele vivia perdoando e aceitando a sorte, dizendo: “A regra é essa!... A regra é essa!...”




O Cavaleiro do Apocalipse


No meu tempo de menino, as atitudes mais simples eram consideradas uma rebeldia. Ler gibi, por exemplo, era uma coisa rigorosamente proibida, mas nós nunca respeitávamos. Líamos, "escondido", no coreto da igreja. Quando havia uma turminha reunida no coreto, um estranho movimento, os pais olhavam desconfiados e já sabiam: estávamos fazendo alguma arte. Os velhos olhavam de longe, desconfiados...
Nossas "artes" terríveis eram: ler gibi "escondido" e folhear montanhas de revistas rudimentares, misteriosamente surgidas, com lindas mulheres peladas, desenhadas a nanquim por artistas que sabiam das coisas. Na maior parte do tempo, porém, eu era um menino solitário e, durante o dia, armado com uma atiradeira e com uma mochila cheia de "pelotas", andava pelas margens dos rios, perdido, caçando passarinho. Era o terror dos pequenos bichos alados. De bicho rasteiro eu tinha medo. Um dia fui posto para correr por um simples tiú enfezado, de apenas dez centímetros...
Tenho saudade da atiradeira, nova e certeira, que me ajudou a matar, cheio de dó, o primeiro chororó. Quando vi ao longe a explosão de penas, sinal de que eu acertara o alvo, seguida de uma nuvem de finas penugens emergindo das folhas, tive uma vertigem estranha. Quando aproximei e vi o pequeno pássaro morto, amarelinho sobre a relva, tive uma lipotímia emocional e quase desmaiei. Mas, ainda não fui um caçador completo, porque não havia ninguém para assistir à minha façanha. E o pior, muito pior, foi quando recobrei os sentidos: o passarinho "recém morrido" tinha voado!... E agora? Como provar para os meus amigos, a minha boa pontaria, a minha nova condição de mais novo caçador de pássaros rasteiros daquelas vargens?!... Melhor esquecer!
Água Doce era o caminho e ponto final de grandes toras. Árvores centenárias, derrubadas por homens insensatos, que os caminhões levavam para as grandes serrarias de Vitória, ou do Rio, às vezes, eram serradas ali mesmo, no terreno sem dono que havia, perto do Grupo Escolar onde estudei. As gigantescas toras, antes de serem fatiadas por homens negros de dois andares, em vigotas transportáveis em forma de caibros e ripas, ficavam ali jogadas, lado a lado, feito um paliteiro de gigantes servindo de esconderijo para meninos tarados, notívagos, assanhados e cabriteiros. Era uma festa.
Nas noites sem lua, no meio das toras, árvores sem vida, a meninada brincava de pique. Mas quando tinha lua cheia no céu, azul brilhante, capaz de cegar os olhos de menino bobo, uma estranha força fluía nas nossas entranhas e mexia com os nossos ânimos. A lua brilhava e os recônditos desejos afloravam. Virávamos lobisomens e saíamos à procura de vítimas conhecidas e indefesas.
Por nossa culpa as cabras leiteiras viravam vigiadas donzelas e eram cuidadosamente recolhidas pelos seus donos aos seus domicílios. Mas essa providência era inútil. Um de nós, aquele que era o esculca especializado na função, libertava-as das amarras nos quintais proibidos e elas vinham correndo para nós. Naquelas noites, as nossas deusas imaginárias e proibidas saltavam de dentro dos sonhos e eram cavalgadas ao luar. Tudo acontecia sob a proteção de antigas árvores, testemunhas mudas das mais inocentes e perdidas horas. Sem pressa alguma, as nossas compartilhadas e divididas namoradas ficavam passivas. Eram tolerantes e parece que gostavam da festa... Ah, aquelas foram as nossas mais esperadas horas! Foi um tempo em que éramos, todos, meninos iguais e ninguém precisava ser bonito. As cabeças brancas, encimadas por chifres, verdadeiras coroas de brilhantes, eram levadas por pés delicados que calçavam botas de alabastro. As princesas exalavam um perfume de leite que nunca mais esqueci. As cabritas foram as minhas primeiras namoradas...



Um grito e depois o silêncio


O ônibus parou na frente do bar e dele desceu um mensageiro cabisbaixo que entregou uma carta ao meu pai. Era uma carta de tarja negra. Faziam isso nas cartas de antigamente, uma tarja preta, para suavizar um pouco as notícias trágicas que traziam. Aquela trazia a notícia da morte do meu avô Eduardo, pai do meu pai. Quando o Juca ultradesconfiado abriu o envelope, alterou-se de repente e ficou meio "passado". Andou por um tempo em câmara lenta e depois desceu para o quintal onde ficou chorando, namorando o chão de terra escura.
Menino curioso, aproximei-me do Juca e fiquei olhando. Meu pai chorava e eu assistia. Uma cachoeira descia dos seus olhos. As lágrimas eram enormes e pareciam pequenas pêras transparentes despencando no chão, adubando com saudade e tristeza a terra do nosso quintal. Eram tantas, que molhavam a poeira e abriam marcas, enormes, como se fossem as primeiras gotas de uma inesperada chuva de verão. As lágrimas vinham direto do coração do meu pai — os olhos eram meras avenidas. Fazia-se uma faxina na alma do Juca, limpando e varrendo o seu passado.
Hipnotizado pela tragédia, levei um susto: de repente o meu velho pai se levantou e deu um grito. O maior de todos os gritos, o mais triste, o mais longo, o mais rouco, o mais sofrido que eu jamais ouvira e saiu correndo no rumo do rio. O Juca fugia de mim, fugia de tudo! Queria sumir e sumiu. Fui atrás dele, já que nesse tempo eu ainda não tinha medo dele, e o descobri. Estava refugiado num bambuzal plantado por ele mesmo no limite do quintal, onde ficou sozinho feito menino pirracento até a boca da noite. A carta de tarja negra continuava aberta sobre a mesa da cozinha. Só meu pai a lera, mas todo mundo já sabia que o "vô" Eduardo tinha morrido.
Nunca mais esqueci daquele grito que se repetiria mais vezes durante a minha vida. Depois de tanto ter visto essas cenas tristes, que nos fazem lembrar das pessoas queridas mortas, acabei aprendendo uma coisa definitiva: agora sei que os gritos de dor e saudade nunca obtêm respostas. Os mortos, esses corajosos que foram primeiro que nós, nunca respondem aos nossos apelos. Pioneiros, esnobes, só porque tiveram a coragem de morrer primeiro, preferem ficar brincando de "vaca-amarela" nas ruas do Céu.






O Circo


Água Doce ainda não tinha luz elétrica. Os postes de madeira a esperavam deitados nas ruas. Lembro dos antigos moradores, pioneiros que ficavam sentados nos imensos bancos improvisados, conversando durante as tardes mornas e fazendo previsões otimistas quanto ao futuro da cidade. Nesse tempo eu achava que não havia diversão melhor que os banhos de rio. Em qualquer rio. Meu pai não resistia à lábia do Joaquim da Venda e nos liberava, quase todos os dias, para nadar, nus e destemidos, nas águas longínquas e escuras do rio Preto, verdadeira geladeira líquida a se mover silente e preguiçosa, ondulando sob a sombra dos ingazeiros...
Mas eu gostava mesmo era das outras diversões, as mais esperadas, que chegavam de outras cidades: os parques e os circos coloridos. Eles vinham, em espaços de tempo regulares, e faziam a alegria de todo mundo!
Os circos já sabiam que em Água Doce não tinha energia elétrica e traziam seu próprio gerador. A luz elétrica era indispensável. Sem ela, como iluminar os circos ou movimentar os carrosséis multicores? Talvez fosse por causa disso que eu aguardava tão ansioso a misteriosa e insondável energia. Assim que os circos chegavam eram armados, sem ao menos pedir licença, num terreno de ninguém, que ficava próximo ao grupo escolar onde estudei, ao lado das toras de madeira, bem pertinho da minha casa. Tudo já estava combinado: "Os parques e os circos que chegavam eram só meus..."
Lembro sempre daquele circo pobre que apareceu um dia em Água Doce. Chovia, e foi por conta disso que muitas coisas tristes acabaram por acontecer. O circo marrom nunca mais sairia da minha memória. Era um circo sem luz. Em poucas horas foi armado. Tinha que ser tudo muito rápido, porque, já no dia seguinte, haveria um espetáculo. O circo tinha pressa. Queria ganhar dinheiro ou era só vontade de alegrar o povo? Um homem, improvisado de alto-falante, anunciou novidades pelas ruas barrentas de Água Doce. A voz do seu megafone vermelho entrava nas casas e os meninos logo apareciam, felizes, nas portas e nas janelas.
As maravilhas anunciadas por ele haveriam de encantar o povo! Aconteceria uma coisa incrível: um bode fantástico, elegante e inteligente subiria uma escada de muitos degraus. Era ver para crer!... Foi isso que mais chamou a atenção do povo. A cidade ansiosa compareceu em massa, em plena tarde. O espetáculo ia começar e começou, mas começou mal. As longas chuvas tinham molhado tudo. As lonas laterais e o picadeiro estavam encharcados — o pobre circo nem tinha a lona de cima! Era um "círculo" mesmo. O povo que compareceu queria apenas ver o bode alpinista. Seria suficiente ver o bode, não precisava mais nada!...
Iniciado o espetáculo, o bode logo se recusou a subir. Recusou, por três vezes, a velha e escorregadia escada. O animador, que era também o dono do circo, dava risadas nervosas. Ainda tentou por mais outras três vezes, porém o experiente bode não passava do primeiro degrau: refugava. Subir escadas molhadas era perigoso... os bodes têm experiências ancestrais, nesse caso.
O dono do bode, preocupado com a reação do povo, dizia, fazendo graça, que a escada estava "escorreganhando". Era para que o povo tivesse paciência, compreendesse, entendesse, mas, o povo não compreendia. Não queria compreender. O que as pessoas queriam, era ver o bode subindo a escada, exatamente como fora anunciado, com chuva ou não. Seria uma glória ver o bode exibindo-se, orgulhoso, no alto da escada, bem no alto, com barba, chifres e tudo o mais, mas nada disso acontecia!
Para frustração do povo, o maldito bode, que sempre fizera aquela mesma "escalada" brincando, decidiu que a missão era impossível. "Escorreganhou" por mais três vezes e desistiu. Foi o bastante. O povo não tolerou. Explodiu! Eu estava lá e vi. A lona foi rasgada, os grandes biombos coloridos de vermelho tombaram. Mastros, trapézios, bilheteria, tudo foi abaixo. O circo foi literalmente pisoteado por uma gente humilde e ordeira, subitamente tomada de fúria, apenas porque um bode, previdente e de princípios, decidira não subir a escada, uma simples e familiar escada! O bode era realmente um cara teimoso... e como era!
Depois da cena triste, em que destruíram o pobre circo por tão pouco, as pessoas simples de Água Doce se olhavam envergonhadas. Durante semanas seguidas comentaram, nas casas e nas ruas, o destino do circo pobre. Cogitavam das reais causas do acontecimento triste e avaliavam o destino pouco promissor do bode rebelde. Para mim, nada disso importava. Triste, mesmo, foi ver no dia seguinte, sob a chuva que ainda caía, o velho caminhão deixando a cidade, levando os restos do circo que o povo destruíra. Na carroceria, enrolados em trapos, tentando se proteger da chuva, os poucos artistas seguiam cabisbaixos, envergonhados e, quem sabe, famintos.
Eu estava de pé, na frente do bar, quando passou a mudança pobre. Vi os mastros quebrados, os restos de corda e um bode sem futuro. No meio da tristeza, havia um biombo colorido que escapara inteiro. Desenhado nele havia o rosto de um palhaço triste olhando para mim. Seus olhos eram enormes, cheios de lágrimas imaginárias. Durante o longo trajeto barrento —do local do massacre até à Lagoa do Marriel—, tudo me pareceu durar uma eternidade. Os olhos "cobradores" do palhaço me olhavam censurando, botando uma culpa infinita em mim. Os olhos de lata eram como punhais. Muitos anos depois ainda os vejo chorando. Eu pensava que todos os circos eram meus. Embora eu tivesse pena dos artistas, o que mais me preocupou foi o "palhaço chorão", feito de tinta vermelha, mas que tinha vida e botava a culpa em mim. Tive vontade de chorar e chorei... Feito uma estátua na rua deserta, eu era o único menino que se importava com o drama do circo. No fundo do meu coração alguma coisa me dizia que os circos nunca mais voltariam!...
Tomei uma decisão definitiva: solidário, decidido, entrei no velho caminhão e viajei de mentirinha com eles: “Água Doce, adeus!...”





1954

Aquele foi um ano comum, parecido com os outros. As coisas foram acontecendo e eu, que era um menino curioso, anotava sem nenhum critério. Olhando para trás, parece que tudo aconteceu num só imenso espaço de tempo, num mesmo ano que não tem meses nem dias.
Lembro de alguns detalhes porque quando tudo aconteceu nós nos preparávamos para o desfile do dia Sete de Setembro que se aproximava. As meninas e os meninos, pulávamos da cama de madrugada, ao som de cornetas, ouvindo o estrondo de fogos, repetindo um ritual sagrado que acontecia todos os anos. Era 1954. Com as almas infladas de patriotismo a meninada marchava pelas ruas desertas de Água Doce, cantando hinos patrióticos, fazendo juras de amor a um país que nunca nos amaria. Ridículo? Talvez fosse, mas era assim mesmo que se fazia antigamente. E era bom porque os meninos viviam a idade do sonho. A felicidade era marchar com roupa nova, ouvindo a banda e vendo fogos coloridos clareando a madrugada. Nesse tempo o Brasil vivia em eterna alvorada. Foi numa dessas jornadas cívicas que vi um soldado chorando porque Getúlio Vargas tinha morrido... nesse mesmo ano uma prostituta negra se matou com fogo, na Coréia. Naquele tempo a zona era chamada de “Coréia”. Durante muito tempo o seu corpo queimado, coberto por enormes bolhas de pele tostada, apavorou meus sonhos. Como foram longas aquelas noites! Lembro que me perguntava, cheio de dúvidas: “Teria aquela prostituta motivos para se matar justamente com fogo, uma das piores mortes?!...”
Os adultos, uma gente boa e honesta que a conhecia, justificavam seu gesto, diziam que ela sempre fora uma mulher solitária e vivia perdida naquele fim de mundo, que não tinha mais ninguém, nem um cisco de família. Talvez tenha encontrado no gesto louco a única saída para fugir da solidão. A prostituta partira de forma muito dolorida para encontrar talvez os que gostaram dela um dia. Eu pensava, do alto dos meus nove anos: "Bem, se foi assim mesmo, desse jeito, até que o seu gesto foi justo e corajoso!"
Em 1954 conheci, e logo perdi, um grande amigo. Ele era o escrivão da cidade, Iraci Marques Ramos Baeta. Lembro bem dele. Era magro, alto, inteligentíssimo. Sabia resolver palavras cruzadas e inventava "charadas novíssimas", que eu tentava decifrar. Quando eu não conseguia, ele me ensinava. Exercia um grande fascínio sobre mim. Eu o admirava porque escrevia coisas importantes em imensos livros de capa dura. A cidade era dele. De repente ele sumiu por uns tempos e depois voltou. Descobri que tinha passado aquele tempo todo num hospital de Vitória. Quando voltou da demorada viagem, chegou mutilado: agora e para sempre, andaria com uma só perna. Vi quando ele chegou. Apoiava-se num par de muletas, feitas de madeira brilhante. Sua antiga perna, roída pela úlcera varicosa, ficara em Vitória! Fora amputada!
Minha casa que era bar e "ponto" de ônibus me favorecia muito. Tudo acontecia na porta do bar, bem na minha frente. Lembro do dia em que o ônibus parou, trazendo uma nuvem de poeira atrás de si. De dentro das entranhas empoeiradas e ferventes do coletivo, desceu, com muita dificuldade, o meu amigo Iraci. Era ele mesmo! Mas como estava diferente! Parecia outro homem. Estava magérrimo e lhe faltava alguma coisa!... Lembro que a Moema, sua filha mais nova que o esperava, levou um grande susto. Quando viu apenas "meio pai" chegando, indagava desesperada, quase em pânico: “E o resto?... Onde está o resto do papai?”
Também eu, que tinha só nove anos, fiquei muito intrigado. Imaginava que fosse assim, daquele jeito "parcelado" que se "perdia" um amigo. Hoje uma perna, amanhã outra. Fiquei com medo do meu amigo e, às vezes, até me desviava dele. Nunca mais o Iraci me passou charadas. Nunca mais resolvemos palavras cruzadas juntos, nunca mais conversamos. Tudo porque eu achava que ele tinha virado um monstro de uma perna só. Desculpe meu amigo Iraci. Eu era um bobo, tinha só nove anos e sei que você, tão sábio, me perdoou...
Nosso bar ia ficando cada vez mais vazio e, para piorar, um motorista de ônibus, mau caráter, subornado pelo dono do novo bar, ainda decidiu passar direto, levando os fregueses para outra parada. Nunca esquecerei daquele soldado bobo chorando, só porque Getúlio Vargas tinha morrido! Lembro que também vi, na porta da igreja, uma mãe quase louca ante o caixão do filho, blasfemando contra o céu: “Esse Deus não vale nada!... Esse Deus é uma merda!...”
Seria mesmo Deus uma merda? Ainda assim, mesmo diante de um Deus tão fraco, temi por ela. Eu tinha certeza de que, quando ela morresse, Deus não a perdoaria jamais! Mesmo eu que era só um menino, vesti minha toga e virei juiz. Julguei e condenei aquela mulher desbocada, órfã de filho:"Se eu fosse Deus Todo Poderoso, ficaria só com o filho, que era um rapaz bom, mas mandaria ela rapidinho para o Inferno!..." Naquele ano o mesmo circo chato que visitava a cidade foi e voltou três vezes. Era o mesmo de sempre. O palhaço, repetitivo, cantava nas ruas uma cantiga que eu já estava cansado de ouvir: "Zabelê cantou no mato!... Zabelê cantou no mato!..."
Meninos vadios, ingênuos e pobres que queriam ganhar uma entrada grátis, corriam atrás do tumulto respondendo, alto e em bom som, um estribilho malicioso, ignorando a grande bobagem que proclamavam: “ Toco cru pegando fogo!...Toco cru pegando fogo!..." Era verdade, estava mesmo!... E não me canso de lembrar do jovem soldado que chorou só porque Getúlio Vargas tinha morrido... Neste mesmo ano, eu também chorei, mas foi de raiva: pela primeira vez, o ônibus que trazia os nossos fregueses passava direto, escolhendo outra parada. Na porta do bar sempre vazio, olhando para o nada e engolindo a poeira que o ônibus levantara da rua, o meu pai espiava e nada via. Coitado do Juca, apenas balançava a cabeça e dizia: "A regra é essa!... a regra é essa!..."
Ouvi mais uma vez o coro melancólico que se distanciava. Era a voz do palhaço que cantava nas ruas: "Zabelê cantou no mato!... Zabelê cantou no mato!..." E alguns meninos bobos da Vila de Água Doce, que eu considerava como sendo grandes tolos e desocupados, ficavam correndo atrás, respondendo sem fazer a mínima idéia da bobagem que diziam: "Toco cru pegando fogo!... Toco cru pegando fogo..." Com ciúmes, eu? Nada disso! Eu já estava enjoado de circo e gostava mesmo era de trabalhar no bar do Juca, meu pai...




A Cozinha do Bar


A nossa nova casa tinha sido mal desenhada. Os cômodos ficavam distantes um do outro. A cozinha onde "morava" minha mãe ficava lá no fundo, depois da escada, bem longe do bar que se abria para a rua. Para mim, a distância do bar até à cozinha, era uma viagem tão longa quanto percorrer a estrada da lua.
Era na cozinha que ficava o reino adocicado de Dona Francisca, minha mãe, onde ela vivia, alimentando um fogão antigo, monstro de fogo e barro branco, engolindo enormes toras de lenha produzindo fogo e calor, desafiando um vento eterno que soprava do quintal. Dali ela enviava para o Céu sinais de fumaça, com cheiro de chocolate. Nas noites geladas eu subia no fogão e o cavalgava sem medo. Era para pegar o calor perene que emanava das brasas cor de rosa. Eu também gostava de ficar ouvindo as conversas ingênuas que rolavam na cozinha. Eram biodegradáveis papos de comadres ingênuas. Meus olhos vigilantes, e interesseiros, me transportavam, em corpo e alma, para o meio das brasas, onde uma ilha escura e comestível se destacava. Ali, minha batata doce estava assando e, pelo cheiro, eu sabia quando estava boa.
O Bar e Café Ramos, mesmo sem ter geladeira, era o único de Água Doce e virou "ponto" dos ônibus que vinham de Mantena ou de Barra de São Francisco. Dali, do nosso bar, eles seguiam para Santo Agostinho ou Santo Onofre. O movimento era bom e a concorrência andava "de olho" no dinheiro bom dos passageiros... nesse caso, agradar a freguesia era fundamental. Dizia o Juca: “Bar é um negócio difícil e muito trabalhoso!... Não aconselho a ninguém abrir um bar...” Mas o Juca dizia isso, eu sabia, era para valorizar o bar e espantar os invejosos. Ainda acrescentava: “O café deve ser servido sempre quente, precisa variar: ter café de todo jeito, simples, forte e fraco, senão a freguesia vai embora...” Nessas horas eu pensava: "Em não havendo outro bar em Água Doce, a freguesia vai embora para onde?..." Aquele meu pai vivia dando mancadas!...
Havia o chocolate sem igual que só minha mãe sabia fazer! Era "ele" que segurava a freguesia do bar. O "povo" de Água Doce o apelidara de toddy... Nesse tempo eu e os meus irmãos vivíamos numa pressa eterna e injustificada — fazendo a mesma viagem, várias vezes, voando entre o bar e a cozinha — buscando chaleiras e bules, servindo aos fregueses apressados. Passávamos os dias lavando louças e brigando. À noite, ninguém queria buscar chaleiras na cozinha: morríamos de medo dos fantasmas do quintal! Era uma eterna correria... um jogo de empurra! Enquanto isso, lá na cozinha, minha mãe fazia alguma coisa. Agitava o Toddy, acendia o fogão teimoso, acabava com a própria saúde... o Juca, reclamava de tudo. Quando não dormia, pescava.
A casa era comprida e o bar ficava distante da cozinha. Ao fundo, havia uma porta larga que se abria para o quintal, escuro e imenso... era lá que moravam os velhos e antigos fantasmas, habitantes fabulosos dos nossos medos de menino. À noite ninguém queria buscar as chaleiras na cozinha. Aquilo era uma aventura que ninguém apreciava. Havia briga feia por conta disso. A dona Francisca, que morreu tão nova, era tão antiga que parecia ter vindo de lugares remotos além de Júpiter. Era dona das nossas almas, sabia do nosso pavor e ficava deitada no banco da cozinha até altas horas. Ficava esperando por nós, filhos medrosos que revezávamos na terrível angústia de atravessar a casa comprida e buscar as chaleiras quentes que ficavam no longínquo fogão, lá nos limites do quintal escuro e assustador.
Para nós era um alívio ver a dona Francisca deitada ali. Todo fim de noite, mesmo cansada do seu trabalho junto ao fogão, ainda achava forças para enfrentar os fantasmas que ousavam assustar seus filhos medrosos. Mas era curioso como os fantasmas sumiam, encantavam-se todos diante dela. Obrigado mamãe!
Às vezes, quando a comadre Tute deparava com ela deitada no banco de madeira, ao lado do seu fogão, recomendava:”Vai descansar comadre, o dia foi duro!...” Mas ela era teimosa e retrucava: “Estou sem nenhum sono, comadre... vou ficar mais um pouco...”. Ela pensava apenas nos medos dos seus meninos covardes e queria protegê-los. Sempre cuidadosa, nunca deixou escapar que ficava ali, para nos proteger, para afugentar nossos temores bobos de menino. Sozinha, entregue aos pensamentos mais distantes, iluminada pelas chamas do seu fogão de lenha, minha mãe jamais ia descansar, no macio merecido da cama, enquanto não saísse o último freguês do bar.
Mas agora eu sei, dona Francisca! Você ficava ali porque nos amava! Aqueles seus momentos solitários eram gestos de amor. Sem dizer uma única palavra, vivia dizendo que nos amava, todas as noites, enfrentando os fantasmas que nunca existiram no quintal! E, só agora, tão tarde, fui descobrir! Desculpe, mamãe, mas vou amolar você de novo. Precisamos continuar alguns dos nossos assuntos mal começados e outros que ficaram pendentes. Quero beijar sua mão. Vejo você no Céu!...





Os Bolos Velhos de Milho

Nosso bar era tão pobre, que nem geladeira tinha. Mesmo assim, o Juca comprava inadvertidamente montanhas de bolos de milho para revender. Acontecia que os bolos "venciam" na prateleira e ele me mandava levá-los para que a dona Josefa, a boleira, ficasse com eles e o "ajudasse" a "perder". Eu tinha só nove anos e ficava intrigado. Atravessava a cidade pensativo levando a cesta cheia de bolos velhos, imaginando uma maneira de como alguém poderia ajudar o meu pai a "perder" tudo aquilo... Hoje sei que ele os devolvia, não era, exatamente, por causa do dinheiro, mas porque desejava que a dona Josefa, uma mulher humilde, que morava numa casa rachada perto da lagoa, também participasse da sua frustração de não ter vendido todos os bolos que desejava. Que ela soubesse, que apesar de todo esforço, meu pai ainda não pudera comprar uma modesta geladeira para o bar. Era até bom que ela contasse para os vizinhos, proclamasse aos quatro cantos, porque assim todos saberiam que o Juquinha era um trabalhador justo, que sustentava uma luta desigual contra a sorte e o tempo...
Havia outras palavras, além de "ajudar a perder", que eu não alcançava, nem entendia, por causa da minha pouca idade. Nesse tempo eu já gostava de ler, especialmente literatura de cordel, que o Juca entendia como cultura e não censurava. Li o "Pavão Misterioso", "A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum", "A Chegada de Lampião no Inferno", para desespero do Diabo. Mas a história que me causou maiores transtornos foi uma intitulada "À Meia-Noite no Cabaré". Devorei o pequeno livro em poucos minutos. Encantei-me com a narrativa e me deixei impregnar pelas palavras estranhas e belas. Depois da leitura fui até a cozinha onde estava minha mãe e algumas comadres e me pus a cantar feito um desesperado: "vou passar esta noite num "cabaré"... eu vou passar num "cabaré"... quero morar num "cabaré..." As comadres da mamãe pareciam estar vendo em mim o Demônio. A dona Francisca, furiosa, me perguntou:”Vai mesmo?... Quer mesmo dormir num cabaré?”
Tolo, confirmei. Sem mais delongas ela me deu uma boa sova. Só depois fui saber o que significava "cabaré" e não entendi que fosse assim uma palavra tão grave! De outra vez, eu e o Vavá, conversando com um menino tido como marginal, conhecido por João Guaraná, ouvimos dele que a doença das mulheres era gonorréia. Não acreditamos, claro! O João Guaraná era um ignorante, como ia saber dessas coisas? De mãos dadas começamos a correr e cantar, pelo bar e pela casa: "estamos com gonorréia... estamos com gonorréia..."
Vivendo e aprendendo, levamos outra bela surra!...



Caçando e Pescando


Era para se esquecer da situação, difícil, que o Juca pescava e caçava, todos os dias. Mas, quando ele se preparava para a pesca, era eu quem passava vergonha por ele. Explico. Eu tinha que transportar a vara, e os anzóis, até um certo ponto, no caminho do rio, para enganar os vizinhos curiosos. O pescador, nesse caso, seria eu. O Juca sentia vergonha de pescar durante os dias comuns. Temia os comentários dos vizinhos e só ia ao encontro dos seus pertences depois de fazer um bom tempo que eu tinha saído. Só então, ele criava coragem e cruzava a cidade, com as mãos inocentes e vazias... Assim ninguém poderia acusá-lo de vadiagem, afinal ele estava sem vara e sem mochila... Seu maior drama era cruzar a cidade, enfrentar os olhares dos vizinhos. Quando se via longe dos críticos, passava horas na beira do rio... À noite, o Juquinha voltava e seu grande álibi era descoberto: chegava trazendo a vara e o anzol — artefatos que não tinham sido levados... Esse era o Juca, meu pai, que vivia achando varas e anzóis perdidos na beira dos rios. Além disso vivia me metendo em encrencas...
No caminho do rio, por onde o Juca passava, havia a casa da mulherada, a "coréia", e isso deixava minha mãe cheia de ciúmes. Ela pensava que o Juca poderia estar "pescando" outras coisas, outro tipo de "peixe", e me mandava vigiá-lo, de longe, até que passasse a entrada da "zona" temida. Eu não gostava mas obedecia à ordem dada e virava detetive particular de minha mãe, acompanhava o Juca à distância e via quando o velho pescador e seu chapéu marrom cruzava firme e decidido pela região do pecado. Nem de leve o Juca olhava. Afinal, seu sonho era o nada, seu destino era o rio... Dia e noite, sol e lua, vivia pescando e caçando. O Juca era um homem do rio, de pequenos rios. Esse era o Juca, meu pai. O povo do lugar dizia, que não era "bom" pescar na Sexta Feira Santa. Era perigoso. Diziam que nesse dia triste, panos roxos cobrindo as imagens, muitas coisas estranhas podem "acontecer" nas beiradas silenciosas dos rios... Mas o Juca era arrogante, abusado e teimoso. Não acreditava em nada disso e ainda dizia: “Isso é lenda! Tudo isso é lenda do povo!...”
Eu me lembro de uma Sexta-feira da semana santa, já quase noite, em que ele desafiou a todos e saiu para pescar. Fiquei pensando: “O Juca não devia ter ido pescar!... Hoje, não!” Naquela noite de lua cheia o rio estava "bufando". A água fazia um ruído estranho, parecia gente velha tossindo... A sombra da noite caía mais densa nos remansos e havia escuridão sob as árvores. Mas era, exatamente, nesses lugares mais tenebrosos que o Juca, corajoso e solitário, gostava de pescar... Sentava ali feito um Buda e ficava pescando mistérios no barranco do rio... o Juca era valente, isso todos sabiam. Ele mesmo sempre dizia que era, e precisava demonstrar sua coragem. Só não sabia que, da escuridão da noite, alguma coisa estranha o espiava... De repente, graças aos seus sensores hipofissários, o Juca sentiu a presença de "alguma coisa misteriosa" que o deixava incomodado, inquieto, e decidiu correr... mas foi por segurança, apenas por isso, que ele saiu apressado. A vara, os anzóis, a mochila, "esqueceu" tudo!
O Juca, quando contava depois suas histórias, jamais mencionou aos seus amigos que tivesse "corrido de medo". Apenas contava que "abandonara o local, rapidamente". Como ninguém tivesse visto a cena, a dúvida persiste até hoje. Ó dúvida eterna! Lembro que naquela noite ele chegou em casa apavorado, perdera a vara e a mochila. Durante a semana que se seguiu, queixou-se de dores pelo corpo, sentiu tremores e decidiu que estava na hora de parar: nunca mais pescaria naquela curva de rio. Muitos amigos brincalhões, até insinuaram que tinha sido reza —alguma reza misteriosa e forte que alguém fizera contra ele. O Juca, na sua cabeça, pensava que o susto tivesse sido obra da minha mãe, uma coisa "encomendada..." O que o velho pescador não sabia é que os sapos, as cobras e os vaga-lumes, esses moradores das margens, são amigos dos peixes e ficam espiando, vigiando acima do rio e detestam pescadores!...
Naquela noite especial, tenho certeza, milhões de olhos estavam com raiva do meu pai. Espiavam e viam no escuro, odiavam o Juca!... Agora, depois de passados tantos anos, já posso contar o que sei: antes de sair para a pesca, o Juca me dera uma surra por motivo banal, coisa boba. Por causa disso fiquei em casa destilando meu ódio, "cozinhando" o Juca! Ah! Então foi isso que aconteceu?!... Aqueles milhões de olhos furiosos "secando" o Juca e desejando o mal para ele eram do seu filho? Quem diria?!
Certo fosse, ou não fosse, a verdade é que o Juca nunca mais pescou naquele rio. Nunca mais pescou em nenhum outro rio, nem sexta nem sábado, nunca mais!... Bem feito, já parou tarde!


A Bruxinha


Na minha casa não tinha Natal. Nunca teve presentes. Meu pai, coitado, fazia uns carrinhos de madeira, toscos e precários, e nos dava para brincar. No dia seguinte ao Natal, nós saíamos empurrando os ridículos carros caseiros, de rodas quase quadradas, pelas ruas de Água Doce. O Juca tentava, desse modo, disfarçar a pobreza e enganar os vizinhos. Muitas vezes, nem carrinhos caseiros ele podia dar e tudo ficava muito triste. Desse tempo ainda me lembro de uma manhã, depois da misteriosa passagem do Papai Noel —este velho trapaceiro que não gosta de menino pobre—, quando encontrei dentro do meu sapato um sabonete Eucalol, o mesmo sabonete de segunda linha que a gente usava nos banhos rotineiros lá de casa. O fato me deixou preocupado. Desconfiei no primeiro momento que o sabonete fosse uma indireta do meu pai insinuando-me de porco ou me advertindo que eu não andava tomando banho direito ou na freqüência desejada... Depois vi que era mesmo um presente, porque os meus outros irmãos também ganharam um sabonete igual. Nesse dia senti muita pena do meu pai, que, do seu jeito pobre, pelo menos ele tinha se lembrado de nós...
Com a minha irmã caçula foi um pouco diferente. Naquela mesma noite ela recebera do Papai Noel, para nossa ciumeira, uma boneca de pano. Era uma boneca primária, um tipo de bruxa, que minha mãe mesma fizera na véspera. A boneca não passava de um travesseirinho amarrado ao meio, exibindo, na cabeça careca, os olhos e o nariz pintados a carvão. A boca, era exageradamente vermelha, e fora feita com batom barato, possivelmente tomado emprestado à comadre Tute...
O que foi pior para nós meninos ciumentos é que o presente agradou bastante e a minha irmã, uma ingênua que ainda tinha tempo de ser feliz, caiu de amores pela bruxa. Parecia até uma provocação. Ou melhor: era provocação!... Aonde quer que fosse, ela levava a boneca horrível. Para nós, era muito difícil suportar a provocação e um conflito acabou se tornando inevitável. Os irmãos "Eucalol" provocados e preteridos, armamos um grande tumulto. Unidos pela mesma "justa causa" pegamos a bruxa feia e a dilaceramos, acabamos com ela... lembro das vísceras de algodão amarelo e da pele de pano em frangalhos, espalhadas pela sala da casa. E minha irmã, órfã de boneca, chorando em desespero!...
Para nós valeu a vingança torpe. Foi a vitória do sabonete Eucalol — comum e ordinário — sobre a boneca de pano, sem nome, mimada e preferida, a queridinha do Papai Noel!... Onde já se viu!? Vivo lembrando daquele Natal de pobre. Foi um Natal especial, onde havia uma bruxinha que tinha tudo para ser eterna, mas, viveu só dois dias e depois acabou. Desculpe minha irmã, mas, era uma questão de honra. Era ela ou nós. A sua Bruxinha precisava morrer...



Anjinho da Roça



Os alunos já sabíamos do que se tratava. Quando um homem humilde chegava e ficava na porta da escola olhando para dentro com olhos pidões —um filho seu, um anjinho na certa, tinha morrido lá na roça. A professora também sabia e logo nos liberava uniformizados para buscar o anjinho amarelinho, que estava esperando por nós na sua sala pobre. Os pais dos anjinhos só pediam uma coisa: que os alunos que fossem buscar seu filho usassem o uniforme. Era chique. Muitos riquinhos não gostavam de ir e havia outros, cujos pais não deixavam. Eu sempre ia porque a dona Francisca, minha mãe, já tinha dado autorização prévia e também porque eu gostava de ir. Era uma festa buscar anjinhos na roça. Eu gostava de caminhar nas trilhas de mato molhado e ainda matava a aula. Os anjinhos morriam era para me livrar da escola...
Isso era comum em Água Doce. Os anjinhos morriam na roça e o pai vinha arrumar "torcida" para acompanhá-los até à sua última morada. Era triste e gostoso ao mesmo tempo. Vi muitos pais chorões ensaiando um sorriso ao verem seu filho, morto, se indo para sempre —para nunca mais. Ficavam contentes porque seu filho estava sendo carregado por um bando de meninos alegres e sem nenhum preconceito. Seu filhinho, agora, era um deles, daquela turminha legal... Era isso que eu pensava. Eu pensava que os pais, "pidões", ficavam felizes porque o seu anjinho, ao menos nessa viajem, estava bem acompanhado. E, também, aqueles meninos da cidade eram filhos de gente boa, era uma coisa oficial. Foi assim que ajudei a levar anjos sem conta para o cemitério de arame da Vila de Água Doce. No caminho de volta, carregando o corpo leve, eu sempre "transferia" para o anjinho morto uma tarefa difícil.
Tinham me dito que os bebês mortos aceitavam levar para o céu o "medo de defunto" que os meninos bobos tinham. Era isso que eu pedia durante o trajeto. Pedi muitas vezes. Pedia sempre a eles para levarem a minha encomenda para o céu. Acho que deu certo, porque não tenho mais nenhum medo dos mortos. Agora o que tenho é apenas uma grande nostalgia.






Colhendo gordura


Uma vez por mês, no meio da madrugada, ouviam-se estranhos gritos vindos da escuridão do quintal. Eu já sabia que era o Juca, meu pai, com suas mãos inábeis dando cabo de mais um porco gordo que apartara na véspera. Era ele, sempre ele, fazendo uma de suas famosas "cagadas", fabricando gordura e fantasmas, aumentando a população de duendes do meu quintal.
Nessas ocasiões, eu acordava preocupado. Já sabia que, se por qualquer razão o porco não morresse, a culpa seria só minha, por que não passava de "um frouxo e tinha dó do bicho". Quando isso acontecia, e não era raro, o Juca me entregava uma marreta e mandava que eu "terminasse o serviço". Ou seja, eu devia liquidar definitivamente o porco moribundo. Era um castigo que ele me dava para que eu aprendesse a ser "homem". De posse do pesado instrumento eu esmagava a cabeça do suíno. Foi assim que aprendi a ser um "homem", matando porcos com marretadas junto com o Juca, meu pai!
Bem cedinho, quando havia movimento na casa, eu já sabia que haveria morte no quintal. O Juca vivia acompanhado por alguns de seus muitos compadres, esses colaboradores voluntários e misteriosos, solidários na vida e na morte. Eu achava que algum mistério forte unia aqueles compadres. Não eram parentes, não eram sequer vizinhos, mas como se defendiam e se ajudavam!
Numa dessas madrugadas, aconteceu uma cena agitada e cômica. Eu tinha oito anos, pouco mais pouco menos, e ainda me lembro do fogaréu em movimento. Naquela madrugada caipora, nada deu certo para o Juca. Foi uma cagada só. O porco fora derrubado meio sem jeito e a faca acabou sendo introduzida pelo lado errado. Para variar, o Juca errara de novo o coração do porco! O órgão vital ficava do outro lado... O atento e experiente compadre que estava ali por perto, resmungou: “Compadre, esse bicho não morreu!...”
O Juca fingiu que nem era com ele. Teimoso, pois sabia de tudo, desconversou. O enorme depósito vivo de carne e toucinho permanecia deitado. Desconfiado, fingia-se de morto e apenas ganhava tempo. Escondido por uma montanha de folhas secas e combustíveis de bananeira, parecia que dobrara de tamanho. O esperto porco gostou do calorzinho das folhas —um inesperado carinho. Dormiu, cochilou em gostosa lipotímia...
O aviso do compadre, que tinha lá a sua lógica, fora solenemente ignorado, pois a experiência do Juca lhe assegurava que o porco estava morto, definitivamente morto. E continuou o serviço. Um litro de álcool foi despejado, um fósforo imediatamente riscado e veio a explosão. Clareou-se a noite e o quintal. O porco, meio morto meio vivo, despertou e fugiu com destino incerto —em velocidade antes nunca vista!— carregando o calor na pele e fugindi do fogaréu no rumo do rio!
Antes de tombar morto, porém, o valente suíno ainda teve tempo de incendiar velhas bananeiras e tudo o mais que houvesse de inflamável ao longo do caminho. O nosso quintal agora estava em chamas. Spielberg dirigia a cena. Um avião de guerra sobrevoara o pequeno feudo do meu pai, despejando barris de napalm. Só faltava o som da Nona Sinfonia de Bethovem.
Finalmente, diante da obviedade do desastre e da fumaceira, o Juca se rendeu ao real e concordou que o seu compadre tinha razão. O maldito porco realmente não morrera. Olhou para o vazio, como sempre fazia nessas horas, e comentou fingindo uma tranqüilidade que em verdade não tinha: “É compadre, a regra é essa!... a regra é essa!...”



O Velho Arcendino


O senhor Arcendino Gevergi tinha muitos filhos, uns oito ou nove, e era tão pobre quanto meu pai. Um dia o seu filho, o José, decidiu ir embora para o Rio. Queria vencer na vida e só assim poderia ajudar o seu velho pai a criar os outros irmãos. O Rio, porém, ficava muito longe e era preciso dinheiro para a viagem. O José, corajoso, estava disposto a ir até mesmo sem dinheiro. Na véspera da sua viagem, quando percebeu que ele não desistia mesmo, o velho Arcendino o chamou no quarto e, no meio de um mundo de lágrimas, entregou-lhe um saquinho plástico contendo trinta notas novinhas de um cruzeiro. Seria o suficiente para a viagem e ainda daria para "passar" alguns dias na solidão do Rio... No dia da viagem, numa última tentativa, o velho Arcendino ainda chamou o filho e lhe disse: “Olha José, você está indo para longe porque quer. Ninguém está lhe tocando para fora de casa. Nós somos pobres, mas se você esquecer essa idéia boba de ir para o Rio de Janeiro, daremos tudo o que você precisar. Fique aqui, não faça sua mãe chorar! Pode ficar com os trinta cruzeiros não precisa devolver...” Mas não adiantou nada, o José estava mesmo decidido a ir embora e entrou no ônibus. A sua mãe, a dona Efigênia, através da janela do ônibus, ainda lhe dirigiu algumas palavras de conforto e carinho: “Meu filho, lá no Rio tudo é muito caro, se você quiser mandar as roupas sujas na sexta, sua mãe as devolve, limpas e passadas, no ônibus da segunda... faça isso, meu filho!”
Coitada da dona Efigênia! Ela não sabia que o Rio ficava tão longe de Água Doce. Eram mais de mil quilômetros! Hoje sei que amor de mãe é assim mesmo, para ele tudo é perto, ignora distâncias, não sabe geografia, viaja, vai junto. O José, aquele teimoso, foi-se embora. Na cidade grande, longe dos pais, sem conhecer ninguém na nova terra, sofreu o diabo. Nos primeiros meses, enquanto não conseguia trabalho e precisava economizar o dinheiro suado do seu velho pai, José almoçava no Exército da Salvação e jantava biscoitos com chá no quarto da pensão. Rapaz honesto e esforçado, acabou arrumando emprego e melhorou de vida.
Depois de longos meses sem dar sinal de vida, ou escrever uma carta sequer, aproveitou um feriado prolongado e chegou de surpresa em Água Doce. O José estava saudável e bem vestido. Abraçou a mãe e os irmãos, emocionado. Quando viu o seu pai, velhinho, chorou como uma criança e aproveitou para lhe entregar discretamente, um saquinho plástico. O velho Arcendino reconheceu o invólucro do antigo pacote e abriu. Dentro havia trinta cruzeiros. Eram as mesmas notas, todas novinhas...



O Velório da Menina

Os mortos de Água Doce eram velados na única igreja que existia — uma capela de madeira com uma cruz na testa que ficava no alto do morro. Ficava estrategicamente situada a meio caminho do cemitério. Era uma "mão na roda".
De onde eu morava, dava para ver tudo. Lembro do dia triste em que morreu um padrinho meu e a igreja ficou lotada de gente. Os amigos chegaram de longe. O morto tinha sido uma pessoa boníssima e todos queriam se despedir dele naquela hora que nunca mais se repetiria. Meu pai e minha mãe estavam lá. Eu também estava. Os amigos e parentes andavam lentos. Pareciam hipnotizados pela morte. Eu, inexperiente de velório, achei que o meu padrinho tinha ficado estranho, depois que a vida lhe deixara o corpo. Ele ficara mais jovem e agora exibia uma pele estranhamente lisa e brilhante. A morte o remoçara! Eu nem sabia que o meu padrinho ia virar menino de novo!... Pensei que ele sentira uma grande saudade dos seus pais e agora retornava no tempo para se encontrar com eles.
No fundo da capela havia uma sala pequena que era mantida sempre fechada e só abria quando os padres emprestados pela diocese de Barra de São Francisco chegavam em Água Doce. Naquele dia triste, a citada sala estava aberta para receber o corpo de uma menininha, filha de gente humilde, que morrera em algum sítio pobre nas redondezas de Água Doce. A pequena sala tinha sido cedida especialmente para receber o velório pobre da menina, mas foi uma caridade, era bom que ela se lembrasse disso! O anjinho frágil jazia sobre um banco comprido, de madeira e era velado apenas pelo pai e pela mãe que mal se olhavam. Choravam cabisbaixos. Estavam envergonhados de tanta miséria e tinham vergonha de ter perdido a filha. A solidão e a tristeza estavam juntas e de mãos dadas naquela sala. Menino curioso e enxerido, fui ver o anjinho e logo senti no ar um aroma gostoso de açúcar, bem diferente do cheiro denso que havia na sala maior onde estava o corpo do meu padrinho. Os pais da menina, órfãos de filha, sofriam ali sozinhos. Ninguém estava com eles, só o silêncio...
Cheguei bem perto e fiquei olhando encantado, para o rostinho pálido da menina morta. O cheiro de açúcar saía dela. O anjinho era feito de rapadura. Suas pálpebras, roxas e fundas, me pareceram fixadas nos globos oculares por uma cola poderosa. As mãozinhas azuladas, feitas por pequeníssimos dedos finos e frágeis. Estavam engrenados, como se despedissem para sempre. Davam-se adeus: uma mãozinha ia para o Céu e a outra também. Quando o pobre pai me viu ali, rompeu a timidez e me disse com os lábios trêmulos, quase chorando: “Menino, estamos sozinhos aqui... será que você arruma algumas pessoas para virem até aqui para "ver" a minha filhinha?!...”
Nesse tempo eu tinha poucos anos, nove, talvez dez, mas lembro que quase chorei por aquele pai pidão e pela sua menina morta. Saí da sala adocicada e voltei para contar à dona Francisca e percebi que ela foi conversar, discretamente, com a comadre Poisé. Logo depois, a sala da menina encheu de gente. Um pouco mais e ouvi algumas vozes, inconfundíveis, que puxavam um terço animado! Agora o anjinho estava feliz! Falavam bem alto, na sua língua... Obrigado, minha mãe. Agradeço a você, em nome da menininha dorminhoca, a maquinista do trem noturno que parou na minúscula igreja de Água Doce apenas para ouvir um terço e depois seguir sua viagem. Nesta hora ela já chegou na estação do Céu, e faz tempo!...




Minha foto na janela


Eu já terminara o primário. O curso ginasial ainda nem sonhava existir em Água Doce. Fiquei um ano parado enquanto o ginasial não vinha. Durante aquele ano, que nunca acabava, a minha vida se resumia em curtir a nostalgia da escola, dos colegas e, ainda por cima, morria de ciúmes da "minha" ex-professora, Durvalina. Eu parecia um fantasma rondando o prédio da escola, saudoso e sebastianista...
Perdido e solitário, eu jogava bola com o vento feito um bobo, num terreno baldio que existia ao lado da escola. Arriscava a vida escalando os altos e ásperos pilares da caixa d água, espiava acintosamente para dentro das salas com o objetivo de provocar os novos alunos e fugia em seguida. Tudo eram ciúmes bobos de menino. Próximo do final do ano observei que a turma estava pensando na festa e na foto coletiva que já tinham virado tradição. Era sempre assim: no final de cada ano os alunos, os professores e o diretor, todos se juntavam para tirar uma foto geral que seria depois ampliada e colocada na ante-sala da diretora. Faziam a foto para que a posteridade ficasse assegurada. Desta vez, ó tristeza, ó infâmia, eu estaria ausente. Na foto do ano anterior eu já tinha "saído" e diziam que isto era o bastante para mim. Agora eu era apenas ex-aluno, não era mais nada!
Quando todos se agruparam para a foto tradicional, foi muito triste para mim, porque a história, inexorável, estava para se repetir sem a minha importante presença!... Que tristeza! Fiquei atento como nunca. Em dado momento, percebi que acontecia no pátio de trás uma alegre e organizada algazarra. Todos escolhiam lugares bonitos. O fotógrafo Juca Paixão já estava a postos. Depois foi tudo muito rápido. Ouvi alguém gritar: "Pronto!... Agora... já!..." E a foto foi batida. Naquele exato momento, dentro do milionésimo de segundo que nunca mais se repete, surgi numa janela, vindo de onde nunca se saberá, para "sair" de novo naquela fotografia! No dia seguinte veio a surpresa e a revolta geral. Revelada a chapa, lá estava eu sorridente, fazendo pose na única janela que esqueceram de fechar, acenando do ano passado, velho como as sagradas escrituras, melando a festa dos novos donos do mundo!...
Desculpem amigos, mas não consegui evitar a tentação de sair na foto, nem agi sozinho! Tudo foi culpa da nostalgia da escola, da saudade dos colegas e do desejo de estar com a minha professora. Foram estas "coisas" diáfanas que me transportaram do passado para aquela janela, para ficarmos juntos de novo e para sempre!... Ó vingança, ó delícia!...




O Cavalo e Sua Montaria

Quando chegamos em Água Doce, a vila era pouco mais que uma fazenda. As poucas ruas eram todas de terra e dava para ver cada casa, individualmente, considerar os grandes vãos existentes entre elas, ver os morros e os vales para além da vila, ao longe. Eram casas mistas, construídas sobre esteios, com baldrames de madeira bruta, e possuíam assoalhos que flutuavam a um metro do chão. Os animais domésticos faziam a festa sob elas. Brincavam, na sombra, os porcos e as galinhas.
Um dia chegou gente nova na cidade. Junto com a mudança veio um macaco de estimação. O bicho não vivia amarrado, nem mesmo preso. Brincava na casa e na rua, livre e solto como se estivesse na selva. Fez amizade com todos, com gente e outros animais de Água Doce. Acostumamos com o novo vizinho e até nos divertíamos com suas artes. O macaco era a alegria de todo mundo. Macaco que se preza, porém, sempre está inventando novidades. Este resolveu que não andaria mais a pé.
Agora, sempre que o via passar, estava montado em um porco do vizinho, com quem fizera amizade. Às vezes passavam devagar, às vezes não. Entendi que o porco já estava meio injuriado com a incômoda e peluda montaria. Pensava assim porque, da última vez que os vi passando, seguiam em velocidade considerável na direção da casa dos Gevergi, uma casa alta e de porão aberto. De longe ouvi o barulho. O "cavalo" entrara, mas o "cavaleiro" não. Logo imaginei que após o incidente o macaco nunca mais montasse naquele porco. Que nada!...
No dia seguinte, os dois passaram defronte ao nosso bar, o cavalo e sua montaria, seguindo na mesma direção e com velocidade ainda maior...






A Mãe do Bezerro

Tia Olívia já tinha passado por quase tudo na sua fazenda. Era médica, parteira e mãe de gente e de boi. Quando as vacas pariam no pasto bem longe, os peões avisavam: “Tem bezerro novo no pasto, Sinhá!...” Tinha mesmo. Imediatamente a tia se preparava para buscar a mãe e o bezerro. Sem falhar nunca, ela voltava trazendo o bezerro. A nova mãe vaca ficava furiosa e vinha logo atrás acompanhando o cortejo. Vinha cheirando, lambendo, conferindo... Bufava mas vinha!... Se pudesse, "acabava" com a tia Olívia, mas não podia. A tia era mais forte do que um touro. Os caboclos se alegravam de ter uma patroa assim forte como ela. Mulher de verdade, corajosa, caridosa e valente. Meu pai, coitado do Juca, nem chegava aos seus pés! Lembro de uma vez que até desejei que o Juca fosse igual à tia Olívia. Outras coisas, curiosas e fantásticas, aconteciam na fazenda. A história do "Menino" foi uma delas. Tudo começou assim: uma vaca, recém parida, descuidada — como o são todas as vacas — caiu do barranco e quebrou o pescoço. Foi um desatino. O bezerrinho queria mamar mas a vaca só queria mesmo era morrer! Foi uma tristeza geral! A mãezinha do bezerro morria devagar e afinal morreu. Mas ela morreu com a "ajuda" dos homens "bons" da fazenda. Eram "bons" demais aqueles homens... O bezerro órfão e faminto chorava muito e isto comoveu à minha tia Olívia. Criativa na caridade, improvisou com um garrafão de muitos litros uma mamadeira com bico de pelica e alimentou o bezerro em grande estilo. Foram os maiores e melhores goles da sua curta vida de bezerro. O sortudo agora estava de mãe nova e ganhou também um nome novo. Virou "Menino". Tudo corria bem, a vida era até bem melhor que antes para o “Menino”. A mãe nova era melhor que a primeira, muito melhor. Era mais gentil, mais educada, mais cheirosa, muito mais em tudo. O leite das outras vacas que agora bebia, em garrafões, enormes, também era diferente e mais farto, abundante e cremoso. O “Menino” cresceu forte, mas tanto conforto e carinho acabou por confundi-lo e ficou pensando que a tia Olívia fosse sua mãe verdadeira. Seguia-a por todos os lugares. Até na missa de domingo o “Menino” ia. É verdade que esperava a tia do lado de fora, mas não faltava na missa de domingo. Não falhava um domingo, sequer. O povo da vila até achava engraçado um bezerro fazendo vez de cachorro!
Aquele bezerro foi o menino que eu não fui, teve as regalias que eu não tive! Mamou o quanto quis e não quis, abusou e engordou. Entrava na casa pela porta da sala e deitava na cozinha. Houve um tempo em que cheguei a ter ciúmes do “Menino”. Mas o tempo dos bois passa mais rápido do que o de gente e, quando surgiram os primeiros morrinhos de chifre na cabeça do “Menino”, a minha tia não gostou daquele "homem" dentro de casa e o botou pra correr. Despachou o "garrote" para o pasto, onde deveria ficar junto com os seus. Expulso de casa, extintas as mordomias e limitado pelas condições franciscanas do pasto, o “Menino” ficou vários dias berrando na cerca do curral, olhando a casa, chamando pela "mãe" inutilmente...
Quando ele chamava lá da cerca com seu berro triste, minha tia Olívia e mãe do bezerro, quase chorava. Havia por conta disso muita tristeza na fazenda. Ninguém gostava de ouvir o berro triste do “Menino”, nem de ver a tristeza da tia Olívia. Mas a grande tristeza não durou muito: certa manhã o “Menino” viu, com seus novos olhos, passar uma novilha cheirosa e bonita e foi o quanto bastou: não resistiu ao chamado ancestral do cio e se deixou levar pelos encantos da primeira namorada.
O “Menino”, já um "homem", descobria assim que era parente antigo daquele povo estranho que, como ele, também usava patas e chifres. Tudo era novidade para o Menino. Mas depois de umas olhadas tristes para a sua antiga casa, decidiu que o mais certo seria seguir com a sua turma pelo pasto verde. Um dia depois, já com nova identidade e sem nenhuma saudade da Tia, o “Menino” seguiu o seu destino de boi. Agora ia para qualquer lugar onde fosse a boiada!...
Mas e a tia Olívia?... Que tia, que nada!



A Morte Anunciada



O velho caminhão entrou na única rua de Água Doce arrastando uma nuvem de poeira. Quando parou defronte à farmácia do Chiquinho e o pó assentou, vi que dentro da boléia, havia um homem de olhos arregalados, revelando muito medo. Alguém disse: “Mas eu conheço ele... é o Vitinho!” Era mesmo. O Vitinho tinha sido picado por uma cobra venenosa e chegava para morrer!... Isso mesmo! Naquelas contestadas terras diziam que a urutu cruzeiro "quando não mata, aleija"... Então o pobre sitiante estava condenado, era um homem morto! O Vitinho sabia disso e aceitava o fato como definitivo, tanto que nem procurou socorro médico em Mantena ou Barra de São Francisco, onde poderiam salvá-lo: preferiu aguardar a morte junto aos seus amigos de Água Doce...
Chiquinho, o gordo boticário, limpou o ferimento e recomendou um analgésico banal. Depois providenciou um espaço nos fundos da farmácia onde o Vitinho ficaria esperando a morte. Tudo muito fácil e simples. O moribundo ficaria lá, sozinho com seus temores. Os "amigos" foram chegando devagar, formando uma roda de medo. O quarto era antigo, um tipo de paiol de madeira cheio de fendas por onde o vento entrava e fazia dançar a chama das velas. Havia velas clareando o ambiente, mas as velas que iluminariam os caminhos do moribundo além da morte ainda seriam acesas. Havia cheiro de morte no ar. A noite chegou de mansinho e trouxe as desesperanças. Os acontecimentos mais tristes eram esperados para a madrugada. Ninguém dormia. O silêncio amarrava os amigos num feixe de medo e tristeza. Quanto a eles, aos amigos, só sabiam ficar calados. Os "amigos", que aguardavam o desfecho do caso, estavam na verdade curiosos. Não tinham pena do Vitinho coisa nenhuma, o que eles queriam, de verdade, era assistir à sua morte, ver o pobre morrendo. É doce e emocionante ver a morte dos outros!
A noite avançara e continuava avançando. Pelo normal das coisas, o Vitinho já devia estar ao meio, ou por pouco. No ambiente e na véspera da morte, flutuavam duendes pesados. Nessa hora exata da noite é que as baratas saem das tocas escuras. Enquanto isso, o veneno da cobra agia silencioso, cumprindo sua missão nos capilares do Vitinho...
Nesse tempo eu tinha oito ou nove anos e também estava curioso para ver alguém morrendo... desculpe, Vitinho, a vítima seria você! Hoje sei que aqueles "amigos", homens vividos e "destemidos", estavam ali pela mesma razão que eu: queriam presenciar a chegada da Velha Senhora e aprender essa tarefa difícil que é morrer. Todo mundo precisa aprender. É bom estar preparado para quando chegar a hora. É bom ter experiência de vida e de morte!... Mas, como? O doente piorava e ninguém se mexia para ajudar, nem saía atrás de um médico, nada! Limitavam-se a esperar a morte do "amigo". O Vitinho era um homem corajoso que mesmo picado de cobra ia na frente ensinando a morrer, abrindo caminho... Subitamente, o Neném, um dos presentes — que era mudo mas enxergava muito bem — arregalou os olhos, tirou o chapéu e se benzeu. Os outros o imitaram. No leito pobre, o moribundo emitiu um gemido estranho. Da sua boca escorria uma baba viscosa... Sororoca!... Era a hora! Alguém colocou uma vela acesa na mão do agonizante e eu corri apavorado! Fui contar à minha mãe. Contei a ela tudo o que tinha visto, igualzinho. “Coitado do Vitinho, vai deixar a mulher e os filhos no total desamparo!”— disse minha mãe quando soube da novidade. Aquele resto de noite dormi assustado. No dia seguinte, curioso, levantei bem cedo e fui até à igreja, que servia também de velório. Eu queria ver o defunto que "devia" estar ali. Devia!... Levei um grande susto: o Vitinho driblara a morte e continuava vivo lá na farmácia do Chiquinho e com boas chances de sobreviver!... Oras! Mas eu tinha afirmado, convicto, para a minha mãe que o homem morrera! Isso me deixava numa situação difícil porque eu sabia que ela detestava mentiras. Ela sempre estava dizendo:”Nada de mentiras comigo!... Mentiu, apanha!...” Temendo levar uma surra passei a torcer para que o Vitinho não sobrevivesse!... Torcida inútil, o homem sobreviveu e voltou para casa...
Lembro que levei "só uma boa bronca" por conta da "invenção". Minha mãe foi boazinha comigo, mas aprendi que a morte é coisa de muito segredo, de ninguém ficar sabendo quando nem como. Ao me lembrar daqueles adultos, uns falsos, de chapéu na mão, torcendo por uma morte que Deus sonegou, pergunto: é justo querer saber como se morre? Talvez, mas hoje sei que esse aprendizado é inútil, porque o momento mesmo da morte, o exato, o definitivo, esse ninguém tem tempo de aprender e depois contar...




A Semente de Abacate

A Vila de Água Doce estava esperando com uma certa ansiedade pela chegada da energia elétrica. Ao longo das ruas já estavam deitados os postes de madeira que receberiam os cabos e os braços de luz. Os comerciantes da minha rua, juntos com os poucos profissionais liberais que haviam, reuniam-se nos fins de tarde e ficavam sentados naqueles postes a vigiá-los como se fossem seus, conversando sobre o futuro. Falavam das geladeiras e dos aparelhos de televisão que comprariam, eletrodomésticos que muitos deles sequer tinham visto.
Numa dessas tardes de papo animado, eu e o meu irmão Vavá, estávamos no bar prestes a fazer uma grande arte. Fizemos e depois nos arrependemos amargamente e agora conto como foi. Tínhamos acabado de comer um saboroso abacate. Eu segurava a semente e pedi ao Vavá para que fosse até à rua e me indicasse a direção, me desse o lado que seria melhor para jogar o caroço. O caroço já estava queimando minhas mãos. O "alvo" ideal e escolhido, segundo a intuição do Vavá, seria um grupo de senhores que conversavam no "poste dos Gevergi..." Desci para o quintal e, conforme a orientação do meu engenheiro de vôo, Vavá, joguei a semente para o alto, no rumo aconselhado. No ar, o pesado caroço ganhou vida própria e, como autônomo asteróide, viajou sozinho na direção do grupo. Digo em minha defesa, que não tive nenhuma culpa pelo estrago que a semente causaria no seu destino final, já que a minha pontaria não era tão boa. Foi coisa de Deus.
Ainda hoje, estou absolutamente convicto, de que o caroço, embora jogado por mim, seguiu uma rota determinada pelas leis de Deus para chegar com tamanha precisão, naquele poste deitado, onde estavam os amigos do meu pai em papo animado. O mais incrível foi que no exato momento em que o doutor Kiko Fernando, um dentista bochechudo apreciava a beleza do céu, a semente de abacate chegava e colidia com sua gorda bochecha...
A vítima caída junto ao poste, a semente de abacate, vinda do inferno talvez, ali no chão ao seu lado e ninguém entendeu nada. Instalou-se o tumulto. As vítimas e os autores da arte ficamos atônitos e incrédulos. Eu, porém estava seguro, seguríssimo de que jamais, a menos que o Vavá contasse, ninguém saberia quem tinha jogado aquela semente... esse era o meu desejo sincero!
Um mês depois, quando ninguém mais se lembrava do fato o dentista, já com sua bochecha devidamente recuperada e instalada no lugar, veio ao nosso bar tomar toddy, como sempre fazia. O Vavá, querendo ser esperto e para meu desespero, perguntou para o dentista: ”Esse "vermelho" no seu rosto, o que foi que provocou?...”
Absolutamente não havia "vermelho" nenhum no rosto do homem, foi pura provocação do Vavá que queria me provar a sua teoria de que a arte já fora esquecida... Mas ele não devia ter perguntado, foi uma grande "bandeira". Afinal, o que poderia interessar a um menino de oito anos aquele fato lamentável, acontecido havia mais de um mês? A proximidade da descoberta me apavorou e saí de perto. Fugi para o quintal. Nem precisaram apertar muito. O Vavá acabou abrindo o bico e contou tudo. Contou como foi, quem foi, tudo direitinho e levou uma surra gigantesca —tão gigantesca e demorada quanto fora o atraso da descoberta. O pior de tudo é que ele não apanhou sozinho. Abacate, te juro, nunca mais!



A Palavra do mendigo

As coisas andavam muito ruins para o Juca. Nada dava certo. O movimento do bar ia diminuindo a cada dia. A despensa da casa, reino pobre de minha mãe, andava sempre vazia. Coitada da minha mãe, envergonhada nos oferecia no jantar o mesmo que já servira no almoço, a famosa canjiquinha com feijão, repetindo um cardápio que teria de repetir mais tarde, ouvindo resmungos dos filhos exigentes. Foi nesse pedaço de tempo duro que surgiu, não sei de onde, um maltrapilho malcriado, que foi capaz de derrotar o meu pai com poucas e duríssimas palavras. Julgou e condenou o Juca. O mendigo, miserável, pediu uma esmola que o meu pai não deu. Se o Juca tivesse dinheiro para dar àquele infeliz, estou certo que daria, mas aconteceu que o meu velho pai, absolutamente, não tinha! Coitado do Juquinha, não tinha sequer para os filhos, como haveria de dar esmolas? Eu estava perto e ainda me lembro, é como se fosse hoje. O mendigo de olhar penetrante estendeu a mão para o meu pai (a mão suja quase tocava o nariz do Juca) e pediu como se desse uma ordem: Uma esmola pelo amor de Deus!... “Hoje não tenho!”, respondeu o Juca, acentuando o "hoje" com absoluta certeza de que em outro dia, amanhã talvez, teria para dar. E certamente daria, mas a voz rouca do mendigo se ouviu de novo, furiosa, determinante: — Que os anjos digam amém e que o senhor nunca tenha!!
Nesse exato momento (crendospadre!) o Juca levou um susto e tremeu. Aquelas palavras duras e proféticas foram recolhidas para dentro do seu coração e nunca mais foi o mesmo! Nunca mais teve dinheiro. A praga do mendigo "pegou"! Fiquei com muita pena do Juca. Passados cinqüenta anos, ainda não perdoei aquele mendigo de voz rouca, que assustou o meu pai para sempre. Sei que o Juquinha não deu aquela maldita esmola porque não tinha para dar. Ainda assim, mesmo tendo razão, nunca mais foi o mesmo. É verdade que aquele mendigo foi muito duro com sua praga e com o Juca, mas acho que ela pegou porque faltava um pouco de Deus no coração do meu pai. Acho que foi isso...






Após a Praga

Depois da praga do mendigo, o Juca nunca mais foi o mesmo. Andava amuado e não queria conversa. Nesse tempo era eu quem comprava os mantimentos do bar. Na hora de dar o dinheiro para comprar o açúcar, ou o café, ele sempre ficava nervoso e me xingava bastante. Eu voltava para a cozinha e dizia para minha mãe: — Mãe, acho que a praga do mendigo atacou de novo!...
Ela dizia que não me preocupasse, que aquilo era coisa passageira, mania do Juca, logo ele daria o dinheiro. Depois ele dava. Mas as crises e as manias foram se tornando mais freqüentes e o meu pai ficou intolerável. Naquela época falava-se muito a respeito de Brasília, a nova capital que estava sendo construída, que era um formigueiro humano, onde todo mundo ganhava muito dinheiro. O Juca, numa dessas crises, deu um estalo e disse para dona Francisca: —Vou para Brasília, não agüento mais essa molecada! Amolecada no caso éramos os oito filhos. E se foi. Dois meses se passaram desde que o Juca tinha sumido. Nenhuma notícia chegava. Minha mãe tocava o bar, normalmente, com a ajuda dos muitos filhos. De vez em quando eu a via chorando, escondida no quarto. Para mim, todavia, estava até melhor sem ele. Ninguém brigava, não havia mais surras, nem temores. O caixa estava com sobras, era até melhor que o Juca não voltasse!
Mas um dia ele voltou. Chegou na Vila de Água Doce e não veio direto para casa. Hospedou-se numa pensão que havia próximo ao bar e mandou avisar que estava na cidade mas que não voltara definitivamente, era só uma visita. Fui visitá-lo na pensão e até dei um abraço meio sem jeito nele. No dia seguinte, o Juca entrou no bar e chegou como se fosse um freguês comum. Pediu um Toddy, indagou o preço e achou barato. Criticou o excesso de açúcar, mas não pagou a despesa... Entrou pela casa, foi na cozinha, depois entrou no seu antigo quarto e deitou lá, como se nada tivesse acontecido. Nunca mais foi embora e nunca disse qualquer palavra sobre Brasília ou sobre o que andou fazendo nos últimos dois meses. Acredito que o meu pai estava era de saco cheio de tanto moleque e resolveu tirar umas férias de nós...






Cabo Aristóbolo

O cabo Aristóbolo vivia no nosso bar, contando suas mentiras. Bebia cachaça, comia lingüiça e contava suas aventuras incríveis. Nunca acreditei nele, mas gostava de ficar ouvindo suas histórias mentirosas. O cabo era reserva da polícia capixaba e se aposentara, precocemente, devido a um acidente de trabalho que o obrigava a ficar com o indicador sempre em riste. Este defeito físico, adquirido e nunca suficientemente explicado, impedia-o de puxar o gatilho das armas... E foi por esta "justíssima" razão que o cabo se aposentara. Vejam só!
Sempre achei que os soldados e os cabos, pudessem fazer outras coisas que não "apenas puxar o gatilho", porém o cabo se aposentara em razão daquilo e exibia com orgulho o seu "dedo duro". Usava agora o seu dedo para segurar cigarros sem conta, que fumava sem parar. Freqüentemente caía um cigarro seu no chão, que o cabo recuperava dizendo: —Ah, caiu, não é?... Pois vou queimar estas bactérias!... E fumava tranqüilamente o cigarro recuperado do chão.
Em Água Doce os meninos tinham um costume antigo que eu apreciava muito, mas tímido que era, nunca usara. Aguardava o momento certo para "pegar" alguém. Era assim: as pessoas que duvidassem do que a outra contasse, e quisessem manifestar a sua dúvida, perguntavam: "Isso aconteceu durante o dia ou foi de noite?"
Escolhi o cabo para ser minha vítima. Afinal, ele vivia contando mentiras. Dizia que, lá na sua terra, havia um rio com muito peixe, tanto peixe que era possível "pescar com facão"... Era só entrar no rio e meter o facão. As metades dos peixes logo flutuavam... era só pegar! Eu não acreditava no cabo Aristóbolo nem nas suas histórias, mesmo quando ele usava seu dedo defeituoso para mostrar a ferida que tinha no joelho, resto de uma antiga pescaria com facão. Naquele dia ele entrrou no bar e o Juca não estava. "esta é a hora" —pensei, e parti para a pergunta fatal: — Cabo, desculpe, mas aquela história de "pescar com facão" aconteceu de dia ou de noite?...” Pra quê? O cabo ficou furioso. Não me respondeu nada e ainda contou depois para o meu pai, que me aplicou uma tremenda surra por causa do atrevimento. Dizia o Juca durante a surra: — Os meninos precisam respeitar os mais velhos, mesmo que sejam mentirosos, ouviu?” Nunca mais perdoei o cabo Aristóbolo, que era um grande mentiroso e duas vezes dedo duro. Pescar com facão, onde já se viu uma coisa dessas?!




O Couro do Paiol

Quando eu passava perto do paiol e sentia o cheiro do cabrito morto, ficava com muito medo. Só depois criava coragem de olhar o resto, a sua roupa de pele, seu couro que se bronzeava na porta do paiol. O couro de bode fora pregado ali, pelo meu pai, para me assustar e acabou sendo o meu grande medo do tempo de menino. No meu passado há um momento de medo, hierático, pregado na porta do paiol. Do couro emanava cheiro e medo. Eu acreditava que ele fora pregado ali, com o único objetivo de me impedir de passear sozinho. O totem diabólico tinha por missão evitar que eu chegasse perto do misterioso paiol, refúgio das empregadas domésticas da minha mãe. Enfim, perdi preciosos momentos desenhando curvas no meu caminho, fugindo daquele Cérbero solitário, sempre protegendo o paiol, vigiando. Intrigava-me o fato de que "elas", as empregadas, ficassem lá sozinhas, dormindo tranqüilas. Eram corajosas as empregadas da minha mãe. Não tinham medo de nada e eu as "admirava" muito por isso, mas somente por isso.
Nas vizinhanças morava o jovem Botinha, que era conhecido na Vila de Água Doce pelo apelido de Grande Conquistador, palavras cujo significado eu não alcançava. Muitas vezes vi o Grande Conquistador entrando no paiol, altas horas. Era mesmo um corajoso aquele Botinha! Ele "encarava" o couro que eu tanto temia. O meu pai, o Juca, parece que não gostava muito daquelas incursões do Botinha. Uma certa noite chegou a persegui-lo, furioso, por muitas cercas e quintais. Eu achava que eram ciúmes do Juca. Para mim estava tudo bem, o Botinha "podia" até levar embora aquele couro de bode que eu ficaria feliz, seria um alívio. Mas o Juca não gostava que ninguém sequer se aproximasse do paiol. Ele tinha mesmo era um grande ciúme daquele couro de bode. Ao caminhar sozinho na direção do rio, eu olhava para o paiol e via o maldito couro e era obrigado a mudar de caminho. Que droga! Nessas horas, eu sentia uma grande vontade de desafiar o medo. Minha idéia fixa era "salvar" as empregadas de minha mãe das garras daquele couro maldito e talvez do Botinha. Mas, por último, eu andava pensando "algumas coisas mais..."






O Coveiro Marriel

Além da ponte, de tábuas grossas, que só por um milagre pairava sobre a lagoa escura, vivia o coveiro Marriel e seus dois filhos doentes. Ainda me lembro que ao passar por ali eu parava e ficava olhando a água preta se movendo lá em baixo. Andava por aquelas bandas só para ver o casebre cinzento onde morava o coveiro temido. Era um negro misterioso. Sempre bêbado, porém lúcido, ele foi se tornando compadre de todo mundo. Quando o vi pela primeira vez, já usava cabelos brancos. A sua camisa, sempre suja e aberta, exibia o peito suado, cheio de pêlos amarelos, da mesma cor da terra do cemitério de arame, onde ele reinava. O Marriel, era coveiro e eu morria de medo dele. Muitas vezes o vi subindo o morro, levando pequenas caixas. Eram caixas brancas, misteriosas, cheias de presentes fantásticos...
Eu ficava vendo a cena que se repetia e me perguntava: "O que poderia haver naquelas caixas?" "Presentes?" "Quem, no cemitério de arame fazia festa todos os dias?" "Quem mandava os presentes?..." Depois de alguns anos descobri que aquelas caixas escondiam, ora fetos expontâneos, ora alguns anjinhos fabricados... Então era isso! Entre um enterro e outro, o Marriel fazia bico enterrando anjos! Vivia levando presentes para Deus, aquele miserável. Lembro de uma certa vez, em que fiquei apavorado. Vi meu pai conversando "um particular" com ele. Falavam baixinho. Precavido, olhos enormes e bem abertos, fiquei olhando de longe. Imaginava que aquele encontro pudesse ser um conluio, uma trama macabra a meu respeito. Os dois eram compadres e bem que "podiam" me "oferecer de presente" para o aniversariante misterioso que morava no cemitério de arame de Água Doce!... Enfim, o alívio: após a longa conversa, decidiram não me levar. Escolheram outro. Quando o Marriel deixou minha casa, tomou o caminho do cemitério levando uma pequena caixa branca. Aí eu pensei: — Ufa! Escapei por pouco!...
Anos mais tarde, depois que já tinha levado muitos anjos para Deus, o coveiro Marriel morreu. Foi grande o meu alívio, o Marriel tinha morrido! Eu tinha então uns sete anos e pensava com os meus botões: "Agora que o Marriel morreu, quem o levará?", quem vai fazer seu embrulho de presente?" Eu mesmo o julgava e condenava: "Se eu fosse Deus, não deixaria jamais o Marriel entrar no Céu!... Ele foi um capeta muito ruim para as criancinhas..."
Fiquei atento para ver o seu velório, queria me certificar de que ele realmente tinha morrido. Notei que apenas alguns compadres apareceram para se despedir dele e só os seus dois filhos bobos choravam a sua morte. Era pouca "torcida" para quem tinha tanto compadre. Não morria bem o velho entregador de anjos, aquele estafeta do céu ou do inferno que tanto me assustara em vida. Tudo era silêncio. Por primeiro saíram dois homens. Estavam curvados sob o peso de um tronco marrom. Levavam o corpo do Marriel. Depois surgiram mais dois, ajudando, e foi só. Quando vi os primeiros movimentos do minúsculo cortejo, que deixava a casa de barro, imaginei que aqueles homens fossem formigas gigantes, seletivas, devolvendo um graveto amargo, recusado pelo formigueiro. No exato momento em que levavam o corpo do coveiro Marriel para um lugar de onde jamais voltaria, ali bem perto da sua antiga tapera, sob a velha ponte, era como se nada de importante tivesse acontecido. A água da lagoa, estranhamente limpa, se movia lentamente. Vi vários peixinhos pretos com longos bigodes nadando no fundo. A vida continuava. Lembro que ainda disse baixinho: “Foi bem feito!... Boa viagem até o inferno, Marriel!...”



O Tacho de cobre

Já era o terceiro dia, seguido, que eu observava a estranha caravana passar na frente da minha casa. Hipnotizado eu ficava com pena do moço negro, de corpo brilhante, que carregava um tacho de cobre, cor de cinza de tão sujo. Os policiais o seguiam açoitando para valer e doer. Segundo os policiais, de quem a grande maioria duvidava, o moço roubara o tacho e não queria confessar. Era por essa razão que os militares ignorantes o humilhavam nas ruas. Queriam arrancar dele uma confissão difícil de fazer. Essa prática desumana, era comum aos policiais do Contestado, donos do mundo. Desta vez mais atento, ouvi o jovem falar alguma coisa. Sua voz era rouca, quase inaudível: “Fui eu que roubei o tacho!...”
Mas o policial que estava mais próximo fingiu que não tinha escutado e perguntou: “Não ouvi direito, ladrão, repita!...” E o suposto ladrão repetiu a frase, mas com pouquíssima vontade, pois tudo o que mais queria era não ser ouvido: “Fui eu que roubei o tacho... fui eu mesmo!”
Do alto dos meus sete anos, cheio de dúvidas, perguntei, olhando para a minha mãe: “Fazer o quê com um tacho, meu Deus?!” Afinal o que se faz com um tacho? Para que serve um tacho? A mãe do jovem, velhinha precoce, seguia o cortejo revivendo nas ruas de Água Doce um calvário moderno e bárbaro, sem a figura importante e tão esperada por mim de um cireneu. Na porta do bar, olhando a cena triste com os olhos cheios de lágrimas estava minha mãe, cada vez mais doente e preocupada com o destino dos seus filhos. A dona Francisca não queria sequer pensar que um dos seus filhos passasse por aquela infâmia ou sofresse tanto. Ela já estava muito doente, sabia que não ia viver por muito tempo e desejava poder controlar o futuro de cada menino. Seu desejo era que todos fôssemos homens honestos, sem passar por nenhum sofrimento. O destino de cada um de nós, se dependesse só dela, seria grandioso!... Seríamos oito felizardos e viveríamos como reis. Lembro que olhei para ela e lhe fiz uma promessa mental, desejando que me entendesse: "Jamais roubarei um tacho, mamãe, nem que seja de ouro!... Jamais!" Acho que ela me entendeu, porque sorriu para mim e voltou mais tranqüila para dentro do bar. Enquanto a caravana do tacho subia a rua principal de Água Doce, eu ouvia o ruído surdo das chibatadas e começava a ficar com um medo danado de crescer...



Casas Paratodos


Quando o João e o Vavá tinham dez e nove anos, respectivamente, eu estava com oito e formava com eles uma escadinha. Éramos muito espertos para a nossa pouca idade. Ou melhor, era assim que pensávamos ser... nos momentos de folga do bar, criamos uma linguagem própria para conversarmos perto do Juca, nosso pai. Seria um novo idioma caseiro, para ser usado sem que ele soubesse do que se tratava. Isso tinha sido necessário porque o Juca não tinha diálogo conosco, era muito bravo e por qualquer motivo nos dava uma surra.
Toda a idéia foi inspirada na parede interna do nosso bar, onde havia uma "folhinha" — era assim que chamávamos um calendário da Casa Para Todos — que se renovava a cada ano. Era sagrado: entrava ano saía ano, aquela "folhinha" estava lá, marcando nossos dias, meses e anos com grandes números vermelhos. Eu era vigiado por ela. Foi dela que tiramos a inspiração para criar o nosso novíssimo e indefectível idioma. A coisa funcionava como se segue: Casa Paratodos, líamos de trás pra frente e ficava sendo: Asac Sodotarap. Procedíamos da mesma maneira com qualquer outra palavra. Por exemplo: amor virava roma; azul virava luza, pedra era ardep e assim sucessivamente.
Depois que inventamos isso, ficamos seguros e confiantes, porque tínhamos encontrado um jeito de conversar perto do Juca, sem que ele tomasse conhecimento do assunto. Pelo menos era o que pensávamos. Por esse tempo, em plena "Era da Canjiquinha", o Juca andava às voltas com uma horta salvadora no quintal da nossa casa e fizera uma carroça enorme, equipada com dois longos varais. Era para puxar esterco dos pastos próximos e adubar a sua terra pobre e tão pouca. Na realidade, éramos nós que puxávamos a carroça. Com muita raiva era verdade, mas puxávamos assim mesmo. Mandão, o Juca, só dava ordens. Dia sim dia não, metidos entre os longos varais, lá íamos nós para o pasto, eu, o João e o Vavá, puxando a temida e odiada carroça. Nesses momentos de raiva virávamos três pequenos burros sem rabo! O Juca não podia ver a gente brincando alegre que logo arrumava alguma coisa para nos ocupar. Como era de costume, veio a ordem terrível e temida: “Preparem a carroça que vamos buscar esterco!”
"Esterco", para nós, era o mesmo que dizer bosta, não passava de bosta! Reclamamos em uníssono e de trás para a frente: Ocas!... Saco!... Isso demonstrava que já dominávamos a nova língua. Doravante seria assim que conversaríamos. Agora, perto do Juca, a ordem era só falar de trás para a frente! O Juca era o Acuj...
A caminho do pasto em busca da bosta de vaca salvadora, seguíamos puxando a odiada carroça. O Juca, muito magro, ia na frente e levava uma enxada nos ombros. Observei que suas calças eram velhas e folgadas. Ele andava a passos largos, talvez pensando no melhor esterco ou na sua horta que não dava lucro nenhum. Não tinha mesmo jeito aquele nosso pai. Era um caçador de bosta, um garimpeiro de merda!...
A alguns metros atrás, íamos nós, os três filhos revoltados conversando tranqüilos no nosso novo idioma. O João disse e eu traduzo: “Detesto puxar essa carroça!” O Juca ia na frente e fazia de conta que não ouvia. Mas isso não nos preocupava porque, mesmo que ouvisse, não entenderia o que estávamos dizendo. Não sabia falar na nossa língua. Podia ouvir!... Que ouvisse!... Decidimos aprofundar as nossas bobagens, pegando mais pesado, partindo para a crítica pessoal. Queríamos nos vingar do nosso pai, um bobão que imaginava ficar rico com bosta de vaca, veja só! Destilávamos a nossa raiva de meninos sonhadores que sabíamos de tudo. Disse o Vavá de trás para frente e eu traduzo de novo: “Olha a bunda dele!... “
Nesse exato momento o Juca estancou de repente e olhou para nós indignado, perguntando: “O que há de errado, afinal, com a minha bunda?!” Incrédulos e apavorados, respondemos a uma só voz: Nada!... Nada!...Nada!... Assustados , abandonamos a carroça e fugimos os três novos "poliglotas" de volta para casa. Algumas horas depois chegava o Juca, trazendo a carroça cheia de bosta. A “arrus” (surra) tinha sido longamente planejada!...


Ambra-Sinto

Depois que a comadre Tute morreu, a Conceição veio para ajudar a minha mãe. Ela não era tão eficiente como a "preta", mas, aliviava a carga do serviço que era muito e já começava a ficar demais para a dona Francisca. Foi até bom que ela tivesse vindo, porque minha mãe, já acusava os primeiros sinais da sua doença. Várias vezes a surpreendi comentando que sentia estranhas dores pelo corpo. Contava também que soubera de um novo remédio, de nome Ambra-Sinto, que estava vindo para curá-la e que gostaria muito de experimentá-lo. Isso se pudesse, se desse tempo e se Deus quisesse. Não pode. Não deu tempo e Deus também não quis. O remédio milagroso com que sonhava a dona Francisca era, na realidade, um antibiótico novo e vendido sob receita, só em São Paulo ou no Rio, cidades que ficavam muito longe de Água Doce — tão longe como era a lua! A Conceição, que era jovem e disposta, até que se ofereceu para ir buscar o remédio, mas, o Juca, não tinha dinheiro para promover aquela viagem longa e cara. Ainda me lembro que minha mãe ficava perguntando quase todos os dias, com irritante insistência ao farmacêutico Sebastião Barros, o comunista, sempre que ele vinha tomar café no nosso bar: “Já chegou o Ambra-Sinto, Sebastião?”
Que nada!... O Sebastião, que não tinha crédito junto aos fabricantes porque era comunista, sempre respondia que não. Que ainda não tinha chegado e nunca chegaria. Durante este longo período, a Conceição continuou lá em casa. Ela morava na roça e a cada quinze dias sentia vontade de ver os seus pais que viviam num sítio a uns dez quilômetros ao norte de Água Doce, no caminho de um lugar chamado Lavra, onde havia muitos homens procurando ouro. Minha mãe nunca a deixava ir sozinha. Eu era seu acompanhante e protetor. Íamos e voltávamos no mesmo dia, andando por trilhas de mato fresco, ladeando riachos, saltando poças, evitando matacões, úmidos e enormes, ao longo do caminho. Antes de chegar no sítio do seu pai, havia um mandiocal onde a Conceição parava todas as vezes e caminhava uns vinte metros para dentro das folhas e, sempre no mesmo lugar, onde eu podia vê-la facilmente, aninhava feito uma galinha choca. Depois de uns minutos ela voltava ajeitando a roupa e me perguntava: — Você não olhou eu mijando, não é mesmo?
Nunca soube ao certo se ela, lá do seu ninho, também não gostava de me ver curioso, afastando as folhas de mandioca para tentar vê-la. Por mim, aquelas folhas seriam melhores se fossem de vidro. A Conceição um dia casou e eu cresci. Muitos anos depois, quando me mudei para a Barra do Piraí e comecei a trabalhar como propagandista de medicamentos, descobri que o Ambra-Sinto, o remédio com que minha mãe sonhara, existia realmente. Mas era uma merda, apenas uma "feliz" associação de dois antibióticos específicos para os males das vias aéreas e urinárias, absolutamente inócuo contra a tuberculose, a malvada doença que acabou levando a dona Francisca. O fato de eu ter tomado conhecimento da eficácia apenas relativa do Ambra-Sinto contra a tuberculose aliviou um pouco o meu coração. Concluí que mesmo que o Juca tivesse mandado a Conceição buscar o remédio no Rio ou em São Paulo, de nada teria valido e, talvez, até tivesse piorado a já fraca saúde da minha mãe.
Sempre que via nos depósitos das farmácias os frascos de Ambra-Sinto, vermelhos e inócuos, lembrava da minha mãe, sempre cheia de planos, com seu sonho de se curar. Lembrava também da Conceição, a empregada que quis ajudar e não pode. O certo é que hoje, com o aparecimento dos novos e mais potentes medicamentos, talvez a minha mãe nem tivesse morrido tão jovem e eu poderia tê-la "aproveitado" bem mais como minha mãe. Que pena! Ainda assim sempre serei grato à Conceição, que era uma estranha, mas manifestou o desejo de buscar o remédio que "curaria" minha mãe. Para mim, a Conceição era uma santa, uma santinha bonita e corajosa que plantava mistérios úmidos na beira da estrada. Mesmo que ela tenha querido apenas passear no Rio, nunca mais me esquecerei dela!...



O Vampiro de Água Doce

Houve um tempo em que a cidade era tão pequena, que nem açougue tinha. Cada chefe de família arrumava carne do seu jeito e à sua maneira. Os bichos viviam assustados... O Juca abatia galinhas e porcos no quintal da casa. Os outros moradores também se viravam, e os animais, covardemente abatidos, forneciam proteínas sem reclamar. Grandes bois eram derrubados, com tiros de rifle, em plena rua. Posteriormente, eles eram sangrados, em carnificinas homéricas, na margem do ribeirão Bom Jesus, cujas águas límpidas ficavam cor de rosa de tanto sangue.
Lembro bem de uma dessas carnificinas. Vi um estranho homem que bebia o sangue do boi, ainda quente, numa grande caneca de louça. Ele bebia o sangue com tanta vontade, que parecia estar bebendo chope e ainda dizia que o sangue do boi era uma excelente vitamina, que era muito bom para a saúde. Talvez até fosse, mas só para o assustador vampiro de Água Doce. Lembro que o sangue que vazava dos bois e levava consigo a vida, escorria vermelho pelo barranco de terra, tingindo de rosa as águas, ainda limpas e virgens do ribeirão. Era assim a vida em Água Doce. Os bois morriam na beira do rio e os porcos nos quintais.
Na minha casa, a agitação começava cedo. Tudo era preparado no friozinho da madrugada. Eu acordava, ouvindo o canto triste dos galos, e descia sonolento para o quintal onde um porco, sem nenhuma culpa, morreria. Abro aqui um parêntesis para dizer o que penso dos galos, eternos e imortais, incansáveis e genéticos, que vivem a cantar a tristeza. Eles vêm fazendo isso todas as madrugadas, século após século, por alguma razão que precisa ser estudada. Particularmente, acredito que o som rouco do seu canto, exerça alguma função terapêutica sobre os distúrbios respiratórios e neurológicos das crianças. Pode ter, também, alguma relação com o ritmo circadiano...
Nesses dias de "Senhor" da vida e da morte, o Juca já tinha a vítima separada. O porco que morreria já estava escalado. Os outros se amontoavam num canto, assustados, mas felizes, por não terem sido eles os escolhidos daquela madrugada. Meu pai, o carrasco, se apresentava e dava início ao ritual selvagem. Derrubava o gorducho suíno no chão barrento e, imediatamente, lhe saltava em cima com um punhal... Nessa hora eu olhava para o lado. Não queria ver, nem ouvir, o furo do aço que rompia a pele, a gordura, a carne, e entrava macio, sem pedir licença, no coração do porco...
Essas cenas e sons macabros ficaram na minha memória. Ainda lembro que quando a arma pontiaguda, depois da longa e dolorida travessia do toucinho rompia o miocárdio, lá dele, do porco, ouvia-se um som abafado e distante da vida que partia. Era fatal. Segundos depois o porco jazia sem vida no barro vermelho do quintal. O Sangue jorrava inútil e se perdia. Mas só o primeiro jato, porque o segundo, que era o sangue bom, seria recolhido e virava chouriço na panela cheirosa da comadre Tute. Ah, disso eu gostava bastante!... Era assim a vida em Água Doce. Havia muitos chefes de família disfarçados de açougueiro matando porcos honestamente, fazendo fantasmas com suas almas, mandando-as para o céu no escuro da madrugada. Aquelas matanças desnecessárias na rua ou nos quintais me marcaram para sempre. Jamais vou esquecer dos gestos do Juca matando porcos, nem do vampiro —o estranho homem que bebia sangue de boi numa enorme caneca de louça. Ele me acenava oferecendo e convidando. Dizia que o sangue era uma delícia. Eu, assustado, nem via o homem, mas apenas sua língua e seus dentes vermelhos querendo beber o pouco sangue que ainda havia no meu coração. O Juca não bebia o sangue dos porcos, apenas gostava de matá-los. E eu? Bem, eu era um santo, só gostava de comer o chouriço!...




Os Compadres

Os nomes das pessoas, marcaram o meu tempo de menino. Ganharam vida. Quando me lembro deles, é como se fossem feitos de fogo sagrado. Brilham, clareando o passado. Perdidas perseidas... Foi o que aconteceu de importante comigo.
Água Doce tinha dois rios, muitos morros e grandes serras, mas, o que ficou em mim, para sempre, foram os nomes das pessoas com quem convivi. Gravei-os e posso ouvi-los ainda hoje, levando-me numa viagem de volta aos tempos de menino. Estão aqui, vivos, como estavam há cinqüenta anos. Durvalina Maria do Carmo, minha primeira professora, minha primeira namorada! Morena, cor de mel, o rosto de bronze era marcado por furinhos. A varíola a tornara mais bela. Ela foi, sem saber, o meu primeiro amor...
Tive muitos colegas de escola, mas, recordo mais é do Franklin Delano Magalhães. Esse nome de estadista imponente, me fazia orgulhoso. Eu era igual aos reis, igual aos grandes homens do meu tempo. Eu estudava com Franklin Delano Magalhães!... Onde anda você, Franklin? Havia os compadres de meu pai. O meu padrinho era Victório Coibra — dono de uma grande empresa de ônibus de um só veículo que ia e vinha, Marcelo da Eva, Gustavo Reinoso, Arcendino Gevergi, Tião Abelardo e seu filho riquinho, Dilair, que dormia a salvo dos valentes mosquitos de Água Doce protegido por uma rica cortina de filó. Havia a comadre “Poisé”, amiga da dona Francisca. Dessa comadre depois eu conto. Havia o senhor Orlando da Máquina, esse não era compadre do Juca. Era só um homem bom. Talvez o melhor de Água Doce. Era dono da máquina de "pilar" café e foi ele que recebeu o meu irmão João, como se fosse um filho, depois que o próprio João decidiu, que precisava trabalhar para ajudar nas despesas da casa. O João tinha só treze anos nesse tempo. Lembro que minha mãe chorou muito naqueles dias e me mandava levar, escondido, bules de "café com manteiga" para ele. O trabalho era insalubre e o café "gordo" protegia o "peito" do João, contra a poeira que saía dia e noite, da máquina barulhenta... a palha do café que saía da bica comprida, era jogada sobre a lagoa formando montanhas marrons e quentes, onde os jacarés vinham pegar sol... minha mãe vivia dizendo que o senhor Orlando tinha um coração de ouro e que, por ele mesmo, nunca jogaria a palha naquela lagoa. "Era um atentado contra a natureza", ele dizia. A dona Francisca e o senhor Orlando, hoje estão morando no Céu. Havia a Casa Para Todos, de dois irmãos briguentos que vendiam tecidos. Um deles, eu me lembro, tinha o nome esquisito de Pergentino e namorava a moça mais bonita da cidade, filha do José Fernandes. Uma vez por ano, autorizada pelo meu pai, minha mãe ia na Casa Para Todos e comprava muitas roupas para nós. Quando ela voltava, trazia uma montanha de tecidos coloridos e se punha a costurar por vários dias, fazendo ela mesma nossas roupas que fazia sempre em tamanho maior, para "aproveitar" por mais tempo porque "os meninos viviam crescendo". A loja mais chic de Água Doce, era a dos italianos Giostri, de quem peguei inexplicável medo depois que a matriarca morreu. Talvez fosse porque o velho italiano, junto com os filhos, passaram a usar luto fechado. Às vezes, acontecia de o meu pai me mandar à noite, buscar alguma coisa em sua loja e eu me apavorava. Dentro da loja, mesmo seguindo de perto os passos do velho italiano que caminhava entre as prateleiras de mercadorias cheirosas, segurando uma lamparina, cujo facho de luz andava junto, oscilando no teto, eu ia assustado e nem ousava olhar para trás. Eu morria de medo da falecida!... Mas ainda assim eu achava tempo para admirar a coragem do senhor Alberto, o viúvo, que não temia encontrar naqueles meandros escuros, a alma da sua saudosa esposa. Parecia até que ele desejava que isso acontecesse de tanta que era a sua saudade da esposa. Havia um tal de Arquimedes, o seleiro e vizinho nosso que diziam que era comunista e fora apelidado de "vermelho" por uma razão que eu não alcançava. Esse apelido, "vermelho", eu achava que era um mistério insondável Odeio o Arquimedes até hoje, cinqüenta anos depois. Minha raiva nasceu quando ele elogiou e aplaudiu o Juca, meu pai, que me levava arrastado "pela orelha" de volta à escola de onde eu fugira minutos antes.
Os Gevergi eram uma família briguenta. Eles moravam a quatro casas da minha. Sua "venda", era ainda mais pobre do que o nosso bar. Eu nunca soube o que realmente vendiam. Eram numerosos os irmãos Gevergi. Lembro do Vantuil, o mais velho e do José, um menino inteligente que construía aviões de barriguda, uma madeira levíssima, que voavam de verdade e faziam um ruído assustador. O José foi embora para o Rio de Janeiro e ficou rico. O Valdir, um Gevergi mais novo, vivia peidando para sua mãe cheirar e apanhava muito por conta disso. O Sebastião da Farmácia, um comunista que foi preso muitas vezes. Da última vez judiaram dele na prisão. Disseram que chutaram o seu saco, coitado! Eu gostava muito dele. Passava horas na sua farmácia, admirando os vidros coloridos de Vanadiol, uma vitamina premiada em suspeitíssimas exposições internacionais. Eu era magrinho e ansiava por alguns quilos. Se tivesse dinheiro para gastar, teria comprado e bebido litros e litros de Vanadiol.
O Tatão tinha um caminhão e nunca esqueço que foi o seu filho que me queimou a roupa branca, feita de "tussor", um pano antigo, bonito e caro, presente da minha madrinha para o desfile da escola. Também foi no seu caminhão, dirigido pelo Euzébio, que um grande amigo meu viajou para o Rio, antes de mim. Quase morri de inveja dele. O Joaquim da venda, um solteirão, a quem agradeço porque era habilidoso e convencia meu pai com argumentos lógicos e brilhantes para que ele nos deixasse sair para tomar banhos paradisíacos, no rio Preto; Havia o "Tião Caratinga", um rico comprador de café a quem a polícia vivia prendendo. Era só para cobrar a fiança dele, mas depois o soltavam. A Dalvina, índia morena de quem eu gostava na mesma proporção que ela me odiava. Ela era baliza dos desfiles da escola e sempre desfilava nos meus sonhos, só para mim, vestida de "deusa". Houve um tempo em que ela virou uma espécie de inquilina dos meus pensamentos libidinosos. Quantas vezes me lembrei dela, nas horas mortas, nas beiradas dos rios... Ali, a sílfide virava mulher de argila. Era a Vênus telúrica, passiva e disponível, que dava vida às esculturas de lama feitas no barranco do rio. O Astrogildo era o meu melhor amigo. Jeito de artista, mas de nome estranho, foi o meu maior concorrente, meu ladrão de namoradas. Ele ficava sempre com as mais bonitas. A Edna, era a menina do parque, foi a minha outra namorada sem saber. Quando ela soube que eu a amava, mandou que eu me afogasse "num mar de água quente!" Só não me afoguei porque não tinha mar ali por perto. Ela gostava mesmo era do Astrogildo... Ah!, voltarei um dia, só para conferir! Quero ver se as serras de Água Doce eram mesmo tão altas...



Pois é

As portas da pequena igreja de Água Doce, só se abriam para o povo, nos domingos. Uma vez a cada mês. Nesse dia, a missa, tão esperada, acontecia em clima de festa. Até eu que não tinha nenhum pecado, me confessava. Após o "exame de consciência", contava meia dúzia de mentiras para o padre e saía feliz, prontinho para entrar no céu... O bar já estava aberto. Os nossos amigos, as comadres, os compadres da Dona Francisca chegavam cedo, das grotas, de todos os lugares. Moradores de sítios que ficavam nos distantes vales de Santo Onofre ou Santo Agostinho, tomavam conta de tudo. Os afilhados, os congregados marianos, as "filhas de Maria", chegavam e invadiam o bar. Uma multidão de gente boa entrava pela casa e transformava o lugar em ponto de partida para a tomada da igreja. Nesses dias nossa casa virava uma espécie de ante-sala da bastilha. O Café Ramos tornava-se destino e ponto de partida de muita gente. A história da gente humilde e efêmera se fazia ali. Eu gostava de ficar olhando.
Dentre aqueles amigos, e amigas, de uma eu gostava mais: era a comadre Poisé. A comadre era uma preta sorridente, que usava apenas dois enormes dentes de coelho. Sempre estava sorrindo e falando:”Pois é, comadre, pois é!...” Sua voz era metálica e estridente. Ela sempre estava alegre e concordava com tudo que minha mãe dissesse ou fizesse. As duas se amavam. Eram como duas irmãs. Lembro dela e do seu jeito bom de ser. Sempre botava a mão no queixo, os olhos brilhantes e cheios de vida, tombava a cabeça para o lado e dizia sempre do mesmo jeito:” Pois é, comadre... pois é!...” e depois dava uma gargalhada contagiante. Minha mãe já fazia de propósito. Sabia que eu gostava de ouvi-la falando o seu bordão e repetia algumas coisas, tolas que fossem, só para fazer a sua comadre dizer de novo: “Poisé, comadre!... poisé!...”
Como eu gostava de vê-la sorrindo! Até já tinha virado "moda" ver e ouvir o riso, o jeito de falar, da comadre Poisé!... Todos gostavam dela. Quando minha mãe, que tinha ficado doente de tuberculose, foi para o Rio se curar, a comadre "Poisé" ficou chorando em Água Doce. A dona Francisca não teve sorte, tudo já estava escrito. Ela ficou vários meses longe dos filhos, andou por hospitais de Barra do Piraí, do Rio e de Petrópolis. Quando voltava para os filhos, para a sua casa de Água Doce, para sua cidade tão querida, parou no caminho. Tentaram enganá-la. Disseram que já estava curada, mas ela sabia que não estava...
Seu desejo era muito pouco. Queria apenas dar uma última olhada nos filhos e nas suas coisas, despedir-se dos amigos, das comadres, o que seria muito justo, mas não conseguiu chegar! Deus, esse juiz draconiano, que dizem ser tão justo, não consentiu... e, a Dona Francisca, que tanto trabalhara e mais do que ninguém merecia conforto no final da vida, acabou de favor na casa de um irmão, ouvindo sarcasmos da cunhada neurótica. Quando ela morreu, nem os filhos puderam vê-la dormindo. Pegou no sono sozinha. Às vezes penso na ironia e na maldade do destino: justamente a Dona Francisca, que recebera tanta gente em sua casa, que tinha tantos amigos, uma cidade inteira de amigos, no dia da sua partida, quando foi pegar seu "último trem", nenhum amigo estava lá. Viajou sozinha, para o Céu e para sempre! Eu apenas podia imaginá-la de longe. Vi a Dona Francisca dormindo sozinha sobre uma grande nuvem azul, tomada por um sono sem fim e sem sonhos. Ela estava regressando para um tempo que não conta. O grito do Vavá, um grito em tudo semelhante ao que ouvira anos antes quando o Juca ficou sabendo da morte do seu pai, o meu avô, arrancou-me do torpor. A vida se repetia e continuava triste. Nessa hora, lembrei da comadre Poisé, que tinha ficado em Água Doce. Se ao menos ela estivesse por perto, só de companhia, a despedida da minha mãe teria sido talvez menos triste. A comadre certamente lhe teria dito, na sua simplicidade, o único consolo que sabia dizer: “Pois é, comadre... pois é!...”
Talvez, quem sabe, isso até tivesse arrancado um último sorriso dela, da sua amiga e comadre, a Dona Francisca, minha mãe.











O Tio Chegou

Quando a Dona Francisca percebeu que não tinha mais forças, chamou o seu irmão Pedro, um homem feito de pedra, e pediu para que ele cuidasse dos seus filhos. Ela não agüentava mais sofrer e estava partindo para merecidas férias no Céu. A vida não lhe servia mais. O tio deveria ajudar na educação dos meninos porque ela não botava fé no Juca. Alguns dias depois, o tio Pedro, que era homem de coragem e palavra, chegou em Água Doce. Ele falava uma língua estranha, com sotaque carioca e vinha buscar os "moleques", um bando de sobrinhos feios e órfãos, e levar todos para o Rio de Janeiro.
O tio também era pobre e viera de ônibus. Durante a parte final da viagem foi reconhecido. Seus olhos negros, enormes, gêmeos dos de minha mãe, o denunciaram. Houve uma choradeira geral das comadres e amigas que viajavam no mesmo ônibus. Elas esperavam boas notícias da dona Francisca mas receberam a mais triste de todas. A comadre, coitadinha da comadre, tão jovem que era tinha morrido! E choraram juntos de novo.
O tio, ao ver que sua irmã era boa e tinha tantas amigas, desta vez não resistiu e chorou também. É verdade, ela não merecia aquela injustiça de Deus!... Quando o tio Pedro desceu em Água Doce, adoeceu de maleita e tremeu por vários dias. O tio tremia por duas razões: por causa da febre e também porque, da sua cama, dava para ver com seus grandes olhos de jabuticaba a cerca de arame farpado do cemitério de Água Doce. Era ali que a alma do Marriel reinava. Cruz credo! Credo em cruz!
Vivemos um drama intenso naqueles dias. Na nossa casa, que desabava, não tinha quem socorresse o tio , e "aquele" tio definitivamente não podia morrer! Ele era nossa última esperança. Depois de alguns dias na cama, graças a Deus ele melhorou. O próprio se virou com receitas caseiras aprendidas com os negros da umbanda no Rio de Janeiro. Para combater a febre ele botava rodelas de batatas na testa, tomava chá de alho, chá de romã. Coitado do tio Pedro, parecia um espantalho vigiando" o morro. Uma vez na vida, ao menos, a sorte nos ajudava e o coveiro não precisou ser chamado. O tio Pedro, homem de palavra, sobreviveu e pode nos levar por uma longa viagem. Passamos por muitos lugares bonitos que nem pudemos aproveitar direito. Estávamos envoltos pela penumbra da tristeza. Quando saímos de Água Doce, a dona Francisca tinha morrido e o Juca, cagão assustado, tinha fugido. Fechava-se para nós uma janela da vida e se abria um grande vale, onde o passado seria congelado. Eu deixava para trás os amigos, a casa, o quintal. Depois, tudo seria esquecido. Água Doce do Norte, adeus!... Eu sabia que nunca mais ia voltar!



O Jardineiro do Hotel


Depois do dia triste em que seguimos com o tio no rumo do mar, atendendo ao um pedido que era quase uma ordem de minha mãe, o Juca, meu pai, como Pilatos, lavou as mãos e seguiu sozinho. Não queria saber de filhos, nem de problemas. Agora que estava viuvo e livre, seria como um passarinho. Estava decidido, andaria pela terra dos outros, fugindo da sua aldeia e da sua gente. Mas o Juquinha era um passarinho de gaiola, não sabia mais voar. Acabaria fugindo de si mesmo. Na sua longa fuga, acabou voltando para Minas sem perceber. Virou jardineiro no fim da vida. O jardim do hotel, onde acabou morrendo, ficava perto de onde nascera e vivera. Os mineiros são assim. Voltam para casa quando sentem que a morte está próxima. Preferem morrer em Minas, namorando as serras e os morros encantados. Eu só soube da sua morte muito tempo depois, quando o João ligou para dar a notícia que, também ele só soubera de ter ouvido: Juquinha, o meu pai, que nunca vivera, tinha morrido! A alma gêmea, o antigo namorado da minha mãe, que por último andava tão mudado, também morria sozinho. Agora dormia. O Juca foi encontrado dormindo um sono perpétuo no jardim do hotel onde trabalhava. Vestia uniforme de jardineiro e seu sono parecia tranqüilo. Agora, se alguém ainda o procurasse, ou perguntasse por ele, ninguém precisava mais mentir: ele estava pescando todos os peixes dos rios e do mar, para sempre! Não há mais perigo, ninguém mais vai chamá-lo de preguiçoso ou de malandro. Esse foi o modesto fim do Juca, meu pai, que vivia dizendo por qualquer motivo: A regra é essa!... a regra é essa!
Agora que ele estava sozinho, como nunca e nem desejou estar de verdade, vai ver que acabou aprendendo com a força do hábito de repetir "a regra é essa... a regra é essa!" e nem ligou para a morte. Acabou aceitando-a como parte da grande e inevitável regra da vida. Adeus, Juquinha, meu pai. Não fique triste: “a regra é essa!”


"O Chocolate da Mamãe "

2 litros de leite;
6 colheres (sopa) de chocolate em pó;
1 colher (sobremesa rasa) de maizena;
1 colher (café) de canela em pó;
1 pitada de baunilha
açúcar a gosto
( servir bem quente)

(Colocar no verso, costas, do livro)


Nas noites solitárias, preparo esta receita antiga. Depois que bebo durmo com o coração aquecido. Em sonho, volto para minha Água Doce, desço do velho ônibus empoeirado e aproveito para rever minha mãe, sentir o seu cheiro e pegar o calor de colo do seu velho fogão de lenha...


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