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Contos-->Sonhos Perdidos -- 15/02/2001 - 01:49 (Fabio Robson Massalli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
I

Os olhos de Nelson Antônio da Silva já estavam abertos antes mesmo do relógio despertar. Não era sempre assim. Às vezes acordava com um pulo, como se levasse um grande susto. O coração disparava, os olhos na pele parda e enrugada estalavam, a respiração ofegava um pouco. Às vezes acordava suave, como se desperto por um beijo. Mas algumas vezes, como naquela noite, acordava antes mesmo do tilintar do relógio e ficava, olhos abertos na escuridão, acompanhando o tic-tac com os batimentos do seu coração. Neste dia em especial levantou-se lentamente, após desligar a campainha do despertador com o indicador, que sempre lhe lembrava das cinco horas. Ao seu lado a mulher, Isaura, ou Dona Isa, como preferia ser chamada, já entorpecida pelo hábito da vida conjugal, contínuo através de décadas, nem sequer despertava. Foi-se o tempo em que levantava e, enquanto o marido vestia-se, preparava-lhe o café, os ovos cozidos e o pão com manteiga. Esse tempo ficara para trás, junto com todos os sonhos e esperanças que se perderam como uma lâmpada que se queima na madrugada, quando se vê a luz já não existe e aquela que a substituirá jamais será igual a primeira. Será uma nova lâmpada, que por algum tempo brilhará até que se queime e junte-se a sua antecessora, junto com todos os outros sonhos e desejos perdidos.
Dona Isa continuava na cama. Apenas resmungara um pouco e se mexera, ocupando um maior espaço na cama pequena. Nelson, depois de ter saído do banheiro, já estava na cozinha. Ao mesmo tempo cozinhava dois ovos e fervia a água para o café. Leite era um luxo apenas para finais de semana, visitas avisadas e dias santos ou feriados. Mas o café normalmente era forte. Bem forte. Quente e gostoso. Pouco, mas sempre coado na hora. Nunca frio ou esquentado. Se aquela casa e aquele casal tinha algum luxo em sua vida, era aquele. Ainda de pijamas, o velho cortava dois pães franceses amanhecidos ao meio e passava manteiga em cada um deles. Nada mais.
Comia calado, mesmo porque estava sozinho. Porém, mesmo que acompanhado, não falaria, não era seu costume. Responderia se perguntado, mas jamais daria continuidade à conversa. Tampouco ouvia ao rádio ou via televisão durante as refeições, principalmente pela manhã. No jantar ou almoço algumas vezes ainda abria uma exceção, ao passar algum jogo de futebol de seu time, Fluminense, ou da seleção brasileira. Nem mesmo Dona Isa podia ver suas novelas enquanto Nelson comia. Por isso, ou talvez por simples coincidência, a comida ficava pronta sempre, invariavelmente, quando estivesse passando o jornal ou alguma novela que Dona Isa não acompanhasse.
Pronto o café, cozido o ovo, cortado o pão, tudo transformado em um único sabor que se misturava na boca de Nelson como um hálito de recém alimentado. Lentamente ele se vestia e cuidava de sua higiene. Menos pela vaidade que pelo hábito. O cabelo, já brancos na pele escurecida, apresentavam indícios de uma calvície que, a cada dia, parecia que iria dominar mais a sua cabeça. Mas parecia que esta era uma guerra que ele venceria por toda a sua vida. Após algumas derrotas iniciais, vencera todas as batalhas, limitando o avanço da inimiga capilar nas linhas aliadas, mas sem conseguir reconquistar as terras já perdidas. Poderia até mesmo achar que esta guerra já estava ganha, só que sempre lhe parecia, por alguns instantes, que o inimigo avançara, derrubando alguns de seus edifícios esbranquiçados. Mas era apenas uma impressão falsa. Resquícios de sua vaidade um tanto esquecida e ignorada.
Vestiu-se sem pressa e saiu.

II

Eram oito horas quando Dona Isa finalmente acordou. Para ela o dia sempre começava mais tarde, embora não fosse menos cansativo. Tinha que limpar toda a casa, que não era grande, antes da hora do almoço, pois à tarde tinha que limpar a casa de uma madame. E não podia se atrasar, pois a patroa era bem rígida. Fritou um ovo que comeu com pão, regado a café requentado. Ao contrário do marido não fazia questão de café feito na hora. Para ela café frio, quente, novo, velho, ou mesmo água da torneira, que às vezes parecia suja, com gosto de cobre, tudo era a mesma coisa. Qualquer coisa servia.
Naquela manhã comia com um certo ar melancólico. Uma tristeza que não sabia direto por quê. Fora do seu controle velhas lembranças vinham a sua mente. Não de todo lembranças ruins, mas que era suficiente para amordaçar a felicidade, assassinando-a violentamente. Mesmo o tédio e a falta de emoção do dia-a-dia parecia contagiada. De uma doença longa, dolorosa e penosa. Saudade.
* * *
Eu era menina. Morava no sitio de papai em pleno sertão. Não o sertão seco e feio que se fala tanto hoje, mas o sertão da mata fechada, das cobras que sempre entravam dentro da casa de madeira, da onça que sempre tinha o perigo de aparecer, do ter que cultivar tudo com o próprio esforço dos calos das mãos e de ir, no lombo de mula, ou mesmo andando embaixo de sol forte, todos os domingos para ver a missa. Roupa bonita a gente só usava naquele dia. Só papai ia em outros dias. Às vezes com meus irmãos. Ia comprar sal, tecido para eu e mamãe cozermos as roupas da família, ou alguma outra coisa. Também ia vender algumas coisas da roça, que nem a gente e nem os bichos comiam. Outras vezes ia vender até leitão, galinha ou pato que papai, ou até mesmo a gente, criança, matava. Ia até esquecendo. Papai saia para ir em outro lugar na cidade. Ia conversar com o Coronel Zacarias, nome que a gente falava com respeito e olhando para o chão até mesmo dentro de casa. Nem nas nossas brincadeiras esse nome tão forte, poderoso e mandão era tratado com desrespeito. Dizia-se até que ele já mandou matar umas famílias de sitiantes. O motivo eu não sei, mas que eu acredito, isso acredito.
Um dia papai saiu. Ia falar com o Coronel Zacarias. Saiu triste, cabisbaixo, levando junto dois porcos bem gordos, quatro galinhas e uma penca de banana madurinha. Eu mesma vi aquelas bananas saírem pela estrada com papai com uma lágrima escorrendo pela bochecha. Nem mesmo pedindo para o papai ele me deu uma. E ficou mais triste. Eu não entendia. Se a banana crescia no nosso sítio, se a gente tinha plantado a bananeira, por que ela era do Coronel Zacarias? Mas eu nunca perguntei isso. Tinha medo de apanhar e respeitava muito papai e o Coronel, o segundo menos que o primeiro, para fazer esse desaforo. Mas aquele dia eu fiquei brava, quase gritei perguntando. Mas engoli a raiva com uma segunda lágrima e corri para o meu quarto. Só saí quando minha mãe me chamou para ajudar a moer o milho. A gente ia fazer farinha para fazer pão. E mamãe era uma cozinheira de mão cheia.
Eu gostava de moer o milho no pilão. Ver o grão de milho quebrar-se e quebrar-se até se transformar em farinha. Mamão sabia disso e, por isso, não importava o que eu estivesse fazendo, onde eu estivesse, mandava me chamar para ajudá-la. E eu ia, sempre, ficava feliz só de pegar no cabo do pilão. Queria fazer aquilo o dia todo. Sonhava as pessoas trazendo suas espigas de léguas e léguas de distância e saindo daqui com farinha. Achava que ia ganhar muito dinheiro com isso. Dinheiro suficiente para que mamãe ficasse em casa só cozinhando e papai só cuidando da horta. Presente para o Coronel Zacarias só de aniversário. E não todo ano.
* * *
Aquela manhã Dona Isa olhava para o café frio enquanto se lembrava do milho e do pilão e do sonho bobo de infância. Perdera não só o sonho, mas até o pilão e o milho. Hoje queria apenas viver mais um dia e que a noite chegasse logo para poder dormir. E desligar sua mente de tudo. Já não moía nem mesmo o café que tomava. Comprava-o moído, não via as folhas verdes contrastando com os frutos pretos presos nos galhos. O pó de café já vinha pronto, torrado e moído, pronto para ser coado. Tinha até café que nem precisava ser coado, era só colocar a água quente em cima do pó preto. Mas ela não tomava. Era muito caro. Mas, no fundo sentia falta do pilão, dos grãos de milho, de fazer farinha para as receitas de sua mãe, das esperanças e dos sonhos que ainda tinha.

III

Nelson estava em pé no quase amanhecer esperando o ônibus que o levaria, através da cidade, para trabalhar. Encostado no poste que indicava a parada da condução, não pensava em nada, tentava apenas não dormir. Mesmo com o hábito ainda tinha sono naquelas manhãs antes de ir para o trabalho. Era mais a idade que o ócio e a preguiça. Sim, era principalmente a idade. Sessenta e dois anos. Cinqüenta trabalhando. A aposentadoria não era suficiente para ele e a mulher sobreviverem. Não tinham nem mesmo casa própria. Precisava, ainda, trabalhar para poder completar a renda e sobreviver. Os filhos, mal conseguiam para o sustento de suas próprias famílias, quanto mais ajudar aos dois velhos. Muitas vezes era ele quem ajudava. Cinqüenta contos (essa era a nomenclatura monetária que conhecia. Não importava o nome da moeda, era assim que ele a chamava) para um, vinte para outro, trinta para uma. Raramente recebia este dinheiro de volta, não importava como chamasse. Mas não se importava. De certa forma sentia-se na sua obrigação de pai.
Este sentimento era também compartilhado por Dona Isa. A velha senhora também dava parte do dinheiro que recebia quando os filhos assim o pediam. Dava tudo o que podia e às vezes até o que não podia. Não raro passavam necessidades por este hábito. Para Nelson era penoso saber que sua mulher, aquela que jurara amar e respeitar, honrar e proteger, tinha que sair de casa todos os dias, aos sessenta anos, para trabalhar de doméstica em casas de madames. Ela que trabalhara e sofrera tanto quanto como ele. Se não mais.
Lembrou-se de seu primeiro emprego, olhando para a rua, vendo os carros que passavam e atento para o ônibus que poderia chegar a qualquer minuto. Se o perdesse, o próximo só depois de meia hora. Tinha doze anos e já vivia naquela cidade. O pai, deitado no sofá e curando-se da bebedeira que o fizera perder muita coisa, inclusive sua mãe, que deixou a ambos quando ele tinha nove anos (ao menos era isso que lhe contavam), estava desempregado. Precisava beber mais do que comer. Conseguia algum dinheiro com alguns trabalhos que ele nunca soube o que era, mas que obrigavam o pai a sair no meio da noite, para voltar algumas horas depois, com coisas bonitas que sumiam tão rápido quanto apareciam. Mas o pai conseguia algum dinheiro com isso. Comprava alguma comida e muita pinga. A primeira para ele e seus três irmãos e a segunda apenas para ele. Por algum motivo o pai nunca deixou nenhum dos filhos beber, dizia que eles não mereciam o mesmo destino dele. Queria que, ao morrer, visse que os filhos estavam encaminhados e não acabariam deitados em uma sarjeta babando na lama onde passavam as charretes e cavalos. O próprio Nelson só bebera o primeiro gole de cachaça aos vinte anos, quando já era órfão. O próprio Amâncio, seu irmão mais velho, tomou um copo de aguardente aos quinze, e quase morreu de tanta pancada que levou do pai. Precisou até mesmo ir para o hospital. Ficou lá uns três dias e, depois disso, nunca mais bebeu, mesmo depois que o pai faleceu. Dizia que era para honrar a memória do velho, que encontraram, imóvel e gelado, em uma sarjeta enlameada cinco anos depois.
De qualquer maneira, naquela manhã esperando o ônibus, Nelson Antônio da Silva se lembrava de seu primeiro emprego. O pai, deitado no sofá, ainda com hálito de cachaça, juntou os três filhos mais velhos, Amâncio com quatorze anos, Nelson com doze e Cristina com onze. O irmão ele mandou trabalhar na venda do Manoel, onde comprava umas garrafas fiado. O guri iria trabalhar, ganharia alguns trocados, que usaria para comprar comida e aproveitando, quitaria a dívida que o velho Amâncio tinha no boteco. E ainda lhe traria algum crédito. Cristina ganhara a responsabilidade de limpar a casa, lavar roupa, inclusive para fora, conseguindo assim mais algum dinheiro, e cuidar do irmão mais novo, Alcides, que tinha oito anos. Ele, Nelson, ganhara quase que um presente: uma caixa de engraxate de madeira, feita pelo velho Amâncio, já com graxa, tinta e flanela. Fora transformado em engraxate.
Para ele aquilo vinha não como uma obrigação, mas como uma verdadeira dádiva. Além de ter ganho a caixa do próprio pai, ainda via nisso a possibilidade de, ao contrário dos irmãos, não ser obrigado a entregar todo o dinheiro para o pai. Poderia comprar doces, bolinhas de gude e outros brinquedinhos. Antevia fartura, riqueza e tranqüilidade para si mesmo.
- Nelson! Nelson! Para de sonhar, menino, que eu estou falando com você! – gritou o velho Amâncio.
- Está bem, papai. – respondeu o garoto, olhando para baixo , tentando esconder o sorriso de satisfação.
- Você vai sair daqui toda dia às sete horas da manhã e vai lá para a área da praça da república. Passe o dia inteiro lá e pergunte para todo cavalheiro e todo malandro endinheirado que passar se quer graxa. Nelson, presta atenção, menino! Não sei que tanto ri! Vai perguntar se quer graxa e vai cobrar cinqüenta mil-réis de cada um que engraxar. E não faça fiado. Nunca e para ninguém. Entendeu, Nelson!!! Nunca faça fiado!
- Sim, papai. – Respondeu a criança ainda cabisbaixo, mas já não sorria.
- Você vai comer um prato que tua irmã vai preparar aqui em casa e que vai embrulhado em um guardanapo. Nada de gastar dinheiro comendo aquelas porcarias no centro. Comida boa é a que é feita aqui em casa. Cristina, você vai levantar às seis horas para fazer o almoço do seu irmão. Nelson, quanto a você, vai me esperar, todo dia, lá por seis horas embaixo da estátua do Marechal na Praça da República. Lá passa muita gente e você ainda pode conseguir engraxar os sapatos de alguém. É sempre um dinheirinho a mais. Mas vai me esperar ali que a gente vai voltar junto para casa. Não quero malandro e nem puta de olho no teu dinheiro. E também não vou querer que fique gastando dinheiro com bolinha de gude e outras besteira. Você vai dar todo o dinheiro para mim e vai me esperar lá no pé da estátua todo o dia às seis horas. E vou de dar a maior surra de sua vida se me desobedecer. Me entendeu, moleque?!
- Sim Papai. – Respondeu Nelson. Continuava de cabeça baixa, mas nesse ponto se controlava para não chorar. O pai ficava zangado se os filhos homens chorassem. Dizia que macho não chora. Mas o velho Amâncio chorou quando mamãe foi embora, lembrava sempre o menino.
Só que lembranças não mudavam a vida do velho Nelson. Havia sempre o ônibus que, mais cedo ou mais tarde, sempre chegava para levá-lo ao seu cotidiano de labuta. Normalmente lotado. Pelo menos, pela sua idade, não precisava mais pagar a passagem e sempre havia alguma alma jovem e caridosa que, talvez menos por educação que por pena, cedia-lhe um lugar para sentar-se. Podia descansar um pouco na longa viagem de mais de meia hora.

IV

Quando Nelson entrou no ônibus, Dona Isa estava começando a limpeza da casa. Era metódica e caprichosa em seus afazeres domésticos, por isso ainda hoje, aos cinqüenta e oito anos ainda conseguia emprego de diarista, enquanto que muita moça nova não conseguia nada além de preencher ficha em agências de empregos. Estes eram tempos difíceis, apesar do jornal e do presidente insistirem no contrário, que tudo estava melhorando, que a inflação tinha acabado e que o povo podia comprar mais. Talvez fosse até verdade, mas ela não se sentia parte daquele povo, nem ela, nem os vizinhos e nem os moradores do bairro em que morava. Apenas os patrões podiam comprar mais. Mas se os seus patrões eram povo, o que ela, que vivia numa casinha de madeira de três peças alugada no subúrbio, o que era? Tinha medo até mesmo de saber.
Mas Dona Isa não gostava de pensar nestas coisas. Não entendia destes negócios de política e economia. Se o governo e, principalmente, a televisão dizia que era assim, que as coisas estavam melhores, e ainda melhorando, quem era ela para desmentir, mas que não parecia, não parecia. Lembrou-se com saudades da mesa farta, com porco, galinha e milho, que tinha no sítio de seu pai, em alguns dias de festa ou feriados religiosos, quando ainda era menina.
* * *
- Isaura! Isaura! – chamava Antônio, o pai – A tua mãe está com doença de mulher e, como você já está mocinha, vai ajudá-la bastante para fazer o jantar de Natal.
- Tá bom, papai. – Respondeu a menina, sorrindo.
- Eu vou ter que ir falar com o Coronel Zacarias e não sei que horas eu vou voltar, então eu quero que você mate um leitão para a gente assar amanhã a noite. Não se preocupe que a galinha eu mato amanhã.
- Matar, papai? Matar um leitão?
- É, mate qualquer um, que eu não tive tempo de escolher. Só mate e pendure para o sangue escorrer. Quando eu voltar eu limpo e aí você e sua mãe temperam ele,
- Mas papai eu gosto dos leitõezinhos. Não quero matar eles não.
- Vai me desobedecer, menina?! , perguntou Antônio alterando o tom da voz, pára de choramingar e vai pegar o machado e o facão. Você me vê fazer isso toda a semana e saber como fazer. Agora para de manha e vai fazer o que eu mandei que eu já tenho que sair. E aí de você se eu voltar e não ver um leitão morto e pendurado.
- Sim, papai. – Respondeu Isa.
E ela, sem opção, obedeceu ao pai. Agiu quase que mecanicamente, como via o pai fazendo, mas chorava e soluçava. Quando terminou abraçou Pitoco, um cachorro vira-lata preto que tinha já há dois anos e que fora um presente do próprio pai, e se escondeu embaixo da casa, entre madeiras velhas e teias de aranha. Lá ficou por quase duas horas chorando e dizendo “Você ninguém vai matar para fazer a ceia! Ninguém!”. A mãe, que vira toda a cena, inclusive a conversa com Antônio, seu marido, não chamou a filha para ajudá-la com o resto dos preparativos para o jantar, como queria o pai, e nem o censurou pela maneira que tratara a filha e pelo quê obrigara-a a fazer. Segundo a sua criação devia obediência e subserviência ao marido. Somente superou as dores da cólica e fez todo o resto daquela refeição festiva sozinha e, quando estava só com o marido, elogiou a ajuda que a filha supostamente havia lhe dado.
Na noite de natal Isaura jurava para si mesma que não comeria o leitão e nem nenhum outro tipo de carne. Mas não pode resistir à gula e comeu como se nada tivesse acontecido. Apenas durante algumas noites pesadelos vieram perturbá-la como tormentas, mas nada que o tempo e outros traumas não viessem a acalmar. Porém até daqueles dias ela sentia saudades, não do leitão que teve que matar, mas da mesa farta em dias de festa. Em sua ingenuidade infantil acreditava que aquela fartura comemorativa aconteceria durante todos os anos de sua vida, e a cada ano com uma intensidade maior.

V

Nelson estava sentado em um banco dentro do ônibus continuando seu trajeto para o trabalho. Cansado de olhar para a janela, vendo uma sucessão de carros, árvores, casas e prédios que passavam tão rápido que nem se prendiam na memória, o aposentado resolveu dar uma olhadela para o interior do coletivo, lotado como quase todas as manhãs. Dentre todas as pessoas, todas as histórias que se refletiam nos olhos, bocas e rugas, algo em especial chamou-lhe a atenção.
Um casal sentava-se quase à sua frente. Ele moreno, cabelo no estilo militar, ela, mais clara, tinha uns cabelos acastanhados, cacheados e compridos. Eram jovens, talvez namorados, talvez noivos, talvez casados. Estavam abraçados, com a cabeça de um escorado na cabeça do outro. Na visão do velho indiscutivelmente apaixonados. Pareciam ter a mesma idade de Nelson e Isaura quando se casaram, algumas décadas antes. E, aparentemente tinham a mesma atitude, a mesma paixão.
* * *
- Eu trouxe um presente para você! – gritou Nelson quando entrou na casa onde morou nos primeiros anos com a mulher.- Isaura! Isaura! Onde está você?
Não obteve resposta. Nada além do eco da casa vazia. Não era da mulher sair de casa àquela hora, principalmente sabendo que era a hora em que ele voltava do trabalho. Procurou por um bilhete por toda a casa, mas não encontrou nada. Nem mesmo o jantar estava pronto.
Ligou o rádio. Sentou-se e tentou não pensar em besteiras. Mas era impossível. A mulher deveria ter passado o dia inteiro em casa. Será que estaria com alguém. Talvez tivesse um amante e esquecera-se da hora na luxúria de seu pecado. Nelson não queria pensar nisso, mas a mulher não lhe parecera mais fria nos últimos meses? Ele não sabia o que faria se este temor fosse verdade. Mataria ela, mataria o amante, mataria os dois ou mataria a si mesmo? Talvez não matasse ninguém, somente sumisse daquela casa, daquela cidade, da vida dela. Não sabia.
- Não, a Isaura nunca faria isso. Ela me ama. Não faz nem um ano que a gente casou. Ela não teria outro. – falava para si mesmo.
E se ele estivesse certo. Se a sua mulher não estivesse com um amante. E se ela tivesse saído para comprar alguma coisa, visitar uma amiga e algo tivesse lhe acontecido. Poderia ter sido atropelada, assassinada, violentada, tantas desgraças poderiam ter acontecido e ele ali, sentado ouvindo rádio sem poder fazer nada. Nem mesmo sabia de nada.
Levantou-se e foi até a mesa da cozinha e pegou o embrulho que trouxera para ela. Deixara-o ali quando chegara e vira a casa vazia. Economizara quase um mês para poder comprar aquele presente, fazendo pequenos sacrifícios, se privando de pequenas coisas, apenas para dar aquele agrado para Isaura, a sua Isaura. Era um pacote com um papel de presente azul, decorado com anjinhos e coraçõezinhos vermelhos. Segurou-o com suas duas mãos, sentou-se novamente e começou a chorar. Chorava de desespero e de medo. Não apenas de perder a mulher que amava, mas também por não poder fazer nada, nem mesmo saber o que aconteceu.
Quatro horas depois Isaura chegou. Nelson agora dormia no sofá, com o embrulho nas mãos. Ela chegou-se sorridente, viu o presente e sorriu ainda mais. Tirou o pacote lentamente, sem acordá-lo, sentou-se em seu colo e deu-lhe um beijo longo e apaixonado.
Nelson acordou sobressaltado. Ao ver a mulher abraçou-a como se não tivessem passado horas separados, mas meses, talvez anos. Tinha os olhos cheio de água, mas não entendia a estranha expressão de felicidade de Isaura. Então ela desaparece de casa, não avisa nada e volta de madrugada numa alegria sem limites? Ele exigiria uma explicação. E que fosse bem convincente.
- Isso é para mim, padrinho? Um presentinho para a sua mulherzinha? – disse ela segurando o embrulho – Mas você vai precisar comprar outro. A nossa vizinha Sueli ganhou uma menina e nós seremos os padrinhos. Eu estava lá até agora ajudando ela a dar a luz. Nem pude te avisar nada, era uma confusão tão grande. Ficou muito preocupado?
- Fiquei. – respondeu ele meio emburrado.
- Ahh! Desculpa sua mulherzinha. Foi uma emergência.
- MMM...
- Por favor. – Insistiu cheia de manha.
- Tá bom, te desculpo. Mas nunca mais faça isso entendeu? Agora abre meu presente.
Era uma camisola de seda, com rendas de Sevilla, como ela nunca teve antes. E tão linda como ela nunca vira antes. Naquela noite eles se amaram tão intensamente como na primeira vez. E, entre beijos de exaustão, decidiram ter aquele que seria o primeiro filho do casal. Afinal eram jovens, e tudo para eles eram promessas e sonhos de felicidade e prosperidade.
* * *
- Promessas que o tempo tratou de destruir e sonhos que desgostos transformaram em decepções. – murmurou o velho enquanto o ônibus se aproximava do ponto em que iria descer. Era a realidade castigando até mesmo as memórias.

VI

Dona Isa ia limpando metódica e cuidadosamente a cozinha. Começava lavando e secando a pouca louça suja do café-da-manhã dela e do marido. Depois guardava no velho armário de madeira que morava, já há vários anos, no mesmo lugar, entre a pia e a geladeira. Sonhava em poder comprar um outro, mais novo, maior e mais bonito. Mas era apenas mais um sonho. Depois varria o chão e o desinfetava com um pano umedecido em alguns produtos de limpeza.
Era em momentos assim, sozinha, limpando a casa, que às vezes lembrava-se de Elizeth, a filha mais nova. Por ser a mais nova fora a única da família a concluir o ginásio, pois enquanto os outros trabalhavam ela podia estudar. Quando precisou também de um emprego conseguiu um não tão duro, o que lhe dava condições, inclusive físicas, de continuar estudando em uma escola noturna. Nelson e Isa imaginavam e sonhavam com a filha casada com um rapaz honesto e trabalhador, talvez até, auge do orgulho perante a vizinhança, com um homem com diploma de universidade. Talvez até ela mesma conseguisse um? Sonhavam com isso a cada noite que a viam sair para as aulas noturnas.
Fazia quanto tempo? Quinze, dez anos? Faziam sete anos e meio que a tragédia acontecera. Ela tinha certeza. Isa possuía então quarenta e oito anos quando a filha conhecera aquele homem. Não, ela provavelmente conhecera-o antes, já que tinha dezoito anos quando resolveu ir morar com ele. Morar simplesmente, nunca se casaram. Elizeth era, talvez, a filha mais querida, por ser a mais nova e a que ainda morava com os pais. Tinha a beleza da mãe, a altura e a força do pai, mas uma personalidade fraca e submissa. Atendia, sempre a todas as vontades de Nelson e Isa. É claro que eles também, dentro do que podiam, realizavam todos os desejos da moça. Por isso que quando o pai soube que a filha estava se encontrando com aquele homem, foi tomar satisfações e exigir que ele ficasse longe da filha. Acabou apanhando do cafajeste, e de mais dois que estavam com ele, segundo consta, e levou sete pontos no supercílio, além de perder dois dentes. Mas a surra que o pai levou do namorado, não fez Isaura se afastar dele. Pelo contrário, tornou-os mais unidos e apressou a ida de Elizeth para a casa e a cama do marginal. Os pais não puderam fazer nada.
Chamava-se Francisco Pereira Brito do Nascimento, vulgo Chico Brito. Era um criminoso conhecido em toda a cidade. Malandro, violento, viciado, traficante, assaltante, todos estes adjetivos não estavam longe da realidade daquele homem. Já fora preso várias vezes e tinha inimigos em todas as partes da cidade. Alguns indivíduos tão ou mais perigosos que ele. Vivia em bares pelo bairro, sempre bebendo, insultando as moças e provocando os homens e senhores. Dizia-se que a própria polícia tinha medo dele.
Ver a filha querida nos braços de tal homem partiu o coração de Nelson e Isa, mas incapazes de fazerem alguma coisa tiveram que deixar a filha sair de casa e ir morar com o criminoso, perdendo-a para sempre. Depois da noite em que a menina arrumou a mala e simplesmente disse “Adeus, estou indo morar com o Chico. Nós nos amamos e não há nada que vocês possam fazer. Não venham atrás de mim, que eu não quero que o meu homem machuque vocês. Adeus”. Elizeth saiu antes mesmo que os pais absorvessem o choque da notícia. Quando foram atrás da filha ela já havia desaparecido dentro da escuridão da noite.
Desde dia em diante só tinham notícias da filha através de vizinhos e conhecidos. Várias vezes vieram lhe dizer que a filha fora vista em bares com Chico Brito, muitas vezes com marcas de violência espalhadas pelos braços, pernas e rosto. Chegaram até mesmo a dizer que o marginal a levava com ele para algumas zonas na área boêmia da cidade, talvez até mesmo para obrigá-la a trabalhar enquanto ele se divertia com alguma sirigaita. Isa não acreditou que a filha se daria a esta desonra, mas Nelson saiu uma noite para ver com seus próprios olhos o destino da filha mais nova ao lado daquele homem, sem que fosse visto, pois Chico Brito estava sempre ameaçando de morte, pessoalmente, não apenas os dois, mas a própria Elizeth, se eles interferissem em seu romance. O que ele viu naquela região de perdição e luxúria nunca contou à mulher. Disse apenas que não teve coragem para ir até lá. E isto assunto tornou-se tabu naquela casa.
Até mesmo a gravidez de Elizeth eles souberam através de notícias de terceiros, e só foram ver o neto quando era tarde demais. Nem mesmo Nelson ter implorado a Chico Brito que deixasse Elizeth levar a criança na casa dos avós, para que eles pudessem conhecê-la e rever a filha, adiantou. Ele conseguiu apenas um forte tapa na cara e um humilhante chute no traseiro que o jogou na lama. Tudo regado às gargalhadas do marginal. Mas o ódio que Nelson sentiu não pode nem mesmo se acalmar. Dois dias depois foi substituído, em toda a família, por um outro muito mais forte, de dor, perda e desespero.
Na madrugada seguinte cinco homens todos vestidos de negro, inclusive com capuzes que escondiam-lhes o rosto, entraram na casa de Chico Brito e mataram, ali mesmo, tanto a mulher, Elizeth, quanto a criança, Jair, que tinha apenas três meses. Ambos levaram, juntos quinze tiros. Dez a mulher e cinco a criança. Quanto a Chico Brito, seu corpo foi encontrado na tarde seguinte. Também morrera com vários tiros, mas antes disso sofrera bastante. Segundo a polícia fora uma tortura tão grande que se ele não estava morto quando recebeu os tiros, estava desejando não mais respirar. Todos concordavam que Chico Brito mereceu o que recebeu, mas por muito tempo ninguém pode esquecer o que acontecera a Elizeth e Jair. Principalmente na família de Nelson Antônio da Silva, onde até hoje esta trágica história ainda assombra os pensamentos e sonhos de todos os seus membros.
A polícia nunca conseguiu capturar os culpados. Nunca prenderam nem mesmo um suspeito. Para muitos foram membros corruptos da própria corporação que cometeram o crime. Para outros foram inimigos de Chico Brito. Mas todos concordavam o motivo era um só: vingança contra Francisco Pereira Brito do Nascimento, vulgo Chico Brito. Era um criminoso conhecido em toda a cidade. Malandro, violento, viciado, traficante e assaltante.

VII

Nelson Antônio da Silva desceu do ônibus e começou a andar até o seu trabalho. Trabalharia o dia inteiro para conseguir ganhar quase um salário mínimo por mês. Muito pouco. “Que saudades dos meus tempos de cabelos escuros e braços fortes.”, pensou. Trinta anos antes o velho Nelson não demonstrava a mesma debilidade nos braços e nem mesmo a vista cansada. Operário de construção, jamais ganhou o suficiente para comprar uma casa para morar tranqüilo na velhice, nem mesmo conseguiu juntar uma boa poupança para tempos difíceis. Mas conseguiu dar aos seus filhos, todos eles, até mesmo à infeliz da Elizeth, uma infância melhor do que àquela que ele levou. Todos só precisaram ir trabalhar depois dos quinze anos. Seria um luxo na época de sua infância.
Quando trabalhava como peão era bastante conhecido na cidade, a maioria dos mestres-de-obra já tinha contratado Nelson, bastava começar uma nova construção que ele ia até lá e conseguia o emprego. Era um bom operário, não bebia no serviço, não atrasava, não faltava, não respondia aos patrões e fazia qualquer serviço que lhe pedissem. E normalmente bem feito. Isso, aliado a sua estrutura e braços fortes, faziam-lhe um tipo de operário-modelo, que muitas vezes era até chamado em sua própria casa para trabalhar. Chegaram mesmo, em algumas ocasiões, duas construções disputando o privilégio de tê-lo como peão. Nunca reclamou de salário, achava uma benção simplesmente poder trabalhar e receber e, mesmo que achasse pouco, nunca pediu um aumento e nem mesmo participou de uma greve. Talvez por isso, em épocas de disputas salariais ou sindicais era mal visto pelos companheiros, que muitas vezes o marginalizavam e mesmo o agrediam, por querer sempre ir trabalhar, mesmo durante as greves. Mas normalmente possuía um comportamento pacato e tinha um bom relacionamento com todos, empregados e patrões. Não se importava nem mesmo com o apelido de pelego que certa vez lhe deram e pelo qual ficou conhecido por muitos anos. Nelson Pelego. Mas não se importou. Sabia o significado da palavra e sabia que não o era, apenas seguia a sua consciência e se via satisfeito de poder trabalhar sempre para alimentar, vestir e dar moradia para a mulher e os filhos. Mas se fosse sozinho, se só tivesse a ele para sustentar, não seria o cordeirinho que era, mas a raposa no galinheiro. Seria o gato no cio que mia, grita, incomoda, até conseguir o quer. Jamais o chamariam de pelego, mas de líder e herói que discutiria aumentos de salários com os patrões e que nunca voltaria de mãos vazias. Afinal não importaria se perdesse o emprego ou se a polícia lhe batesse, afinal seria apenas ele. Mas lutaria pelo que é certo. Mas com uma família tão grande, tanta gente para sustentar, jamais poderia, tinha que continuar sendo o velho Nelson Pelego.
E assim continuou sendo durante mais de vinte anos, até que a idade foi aumentando e o emprego diminuindo. Chegou uma hora que ninguém mais lhe contratava, já estava velho, era melhor contratar jovens mais fortes e ágeis. Não ganhou nem mesmo um emprego em reconhecimento aos anos de dedicação. Para os patrões deixou de ser o Nelson Pelego, que sempre trabalhava, não importasse o serviço e o salário, e voltou a ser Nelson Antônio da Silva, um velho desconhecido à procura de emprego. Por sorte não faltava muito para se aposentar. Mas mesmo depois de aposentado teve que continuar a trabalhar, não só ele como Dona Isa também. Mal conseguiam sobreviver com aquelas duas aposentadorias, ainda mais tendo que ajudar sempre um filho ou outro. Além disso estavam sempre ficando doentes e os remédios eram muito, muito caros. Então continuou a trabalhar, não tanto quanto na época do Nelson Pelego, embora voltasse para casa muito mais cansado e recebesse um salário bem menor.

VIII

Dona Isa estava limpando o quarto, varrendo a poeira de um dia, e pensava no marido. Pensava que, apesar de todas as dificuldades, tinha uma vida feliz ao lado do velho Nelson. Mesmo que todos os sonhos do casal tivessem se destruído com o tempo, ou talvez eles mesmos desistiram de sonhar. Mas ainda assim se achava feliz, ainda que não se lembrasse de quando fora a última vez que beijara o marido, ou quando os dois trocaram carícias, mesmo sem malícia. Já estavam casados há mais de quarenta e um anos. É verdade que brigavam e discutiam, o último muito mais que o primeiro nos últimos anos, ao contrário de antigamente. Mas mesmo assim ainda achava que amava o marido, e sentia que o sentimento era mútuo, mesmo que não fosse demonstrado.
Se casaram quando ela tinha dezessete anos. Já estavam noivos há um e namoraram, antes disso, outros dois. Se conheceram poucos dias depois que ela e sua família se mudaram para a cidade. Ela contava com treze anos e era uma mocinha em flor, como dizia a sua mãe. O pai, o velho Antônio, já estava com a doença que o matara – a saudade do sítio. Por algum motivo o Coronel Zacarias conseguira comprar o sítio de papai e, um dia, simplesmente chegou lá com um monte de jagunço dizendo que tudo aquilo era dele e era para toda a família de Isaura saíram de lá naquele mesmo dia. Então toda a família fez as malas, pegou o que pode e se mudaram para a cidade. Lá Antônio nunca mais foi o mesmo, não trabalhava e passava o dia inteiro nos bares, bebendo e bebendo. Dois anos e meio depois estava morto. Coube à mãe, Clotilde, e aos dois irmãos mais velhos trazerem o sustento para casa.
Para a menina Isaura era tudo novidade. Uma aventura sem fim. E foi neste sentimento de euforia, que encobria a dor pela mudança forçada que ela conheceu Nelson.
Ele estava voltando para casa, depois de um dia de trabalho, quando viu Isaura na janela, olhando, deslumbrada, para as luzes da cidade. Então esta era a menina que viera do interior, pensou Nelson. Ouvira que uma família viera do interior do estado, onde o pai fora expulso de suas terras por um coronel, e se instalara ali, no mesmo bairro em que morava. Jamais havia visto nenhum deles antes. Agora via a menina. Achou bonita, mas nada de excepcional, entretanto achou de bom tom ser cortês e educado com a nova moradora. Passou ao seu lado, tirou o chapéu e disse, sorrindo:
- Bom dia, mocinha!
Isaura se espantou com aquele rapaz, que nunca vira antes e que agora passava cumprimentando-a como se fossem amigos de infância ou conhecidos da igreja. Mas mesmo assim sorriu em resposta. E daquele momento em diante não tirou mais aquele rapaz moreno de sua cabeça. Tinha sensações estranhas em seu corpo de adolescente em formação. Até mesmo sonhou com ele algumas vezes.
E como em todo o folhetim, os dois acabaram se conhecendo. Não foi um encontro singular ou exótico, foi comum e banal como seria toda a vida em comum daquele casal. Aconteceu numa tarde de agosto, dia 20 para ser mais exato. Depois de algumas semanas com trocas de olhares e sorrisos, mas praticamente nenhuma palavra, Nelson abordou-a pouco depois de sair de casa. Isaura ia comprar pão e manteiga na mercearia perto de sua casa. Ele se apresentou, ela também. Conversaram um pouco sobre futilidades e então ele perguntou, parecendo o mais cortês e respeitoso possível:
- Para onde a senhorita estava indo?
Isaura respondeu e ele se ofereceu para acompanhá-la, inclusive pagou, sob protestos, a conta daquela compra, com direito a trezentas gramas de queijo e duzentas de mortadela. Nelson gastara o dinheiro que reservara para a boêmia daquele semana naquele agrado.
De volta à porta da casa de Isaura o jovem desconhecido da família foi convidado por Dona Clotilde, mãe da moça, para fazer parte daquela refeição com a qual contribuíra tão generosamente. Nelson aceitou de imediato, para alegria levemente disfarçada de Isaura. Naquela oportunidade o jovem conquistou definitivamente a mulher que seria sua futura sogra, e reafirmou o amor daquela que seria sua esposa. Clotilde se encantara com aquele jovem, educado, trabalhador e honesto, aparentemente sem máculas, que demonstrava interesse em sua filha. Anos mais tarde a então idosa senhora lembrava-se deste momento e percebia que além das qualidades aparentes do rapaz, de alguma forma ela sabia que ele seria o homem que faria a filha feliz, do mesmo modo que o velho Antônio a fez antes de serem obrigados pelo coronel a se mudarem para a cidade. Depois disso ela perdeu não apenas as terras e o marido, mas também o amor que sentia por ele. Depois de anos de bebedeiras e privações, onde em algumas noites Antônio era até mesmo violento e grosso com ela e os filhos na dor e desespero de seu vício, Clotilde até sentiu-se aliviada (“Deus me perdoe”, dizia ao perceber este sentimento) quando o marido morreu.
Então não era de se espantar que Dona Clotilde ficara ainda mais feliz quando Nelson, depois de já se tornar intimo da casa, foi pedir a mão de Isaura em namoro. Até aquele dia o jovem ainda não conhecia o pai de sua pretendente, mas já conseguira o consentimento da mãe e, por conhecer os problemas da casa, sabia que isso era suficiente. De toda as vezes que visitara Isaura, o velho Antônio estava no bar, bebendo suas mágoas de migrante ou mendigando pelas ruas atrás de dinheiro para sustentar o vício. Clotilde, mesmo após ameaças de violência do marido, não lhe dava mais o dinheiro que ela e os filhos conseguiam com seus trabalhos. Ele, depois de algum tempo e algumas surras, percebeu isso e, num último ato de decência, preferiu mendigar a pedir dinheiro à mulher.
No dia em que pediu a mão de Isaura em namoro, Nelson estava decidido a, pelo menos, conhecer o pai de sua amada. Não conseguiu. O velho Antônio já ia poucas vezes para casa, talvez da vergonha daquilo em que havia se transformado, talvez por mal sair dos bares onde implorava por uma cachaça fiada ou mesmo por não conseguir chegar em casa, de tão deplorável que era seu estado. Nelson já conhecia o alcoolismo através da vida de seu próprio pai, enfrentara-o praticamente por toda a sua infância, se não pela presença física, pelo trauma que causara. Por isso ele se comovia tanto com o problema da família de Isaura. Entretanto não foi naquele dia que Nelson apertou a mão de seu futuro sogro. Foi obrigado a ir embora sem realizar seu desejo, pois a hora já obrigava os homens de bem de se despedissem das senhoras e moças de família, para que as últimas não ganhassem má fama na vizinhança e, consequentemente, pelo bairro. E ninguém queria que isso acontecesse.
Somente depois de dois meses de namoro é que Nelson conseguiu conhecer o velho Antônio. O jovem enamorado se sentiu eufórico, pediu que Clotilde preparasse um café forte para os dois homens e se sentou com o ex-agricultor no sofá da sala. Queria conversar sobre o seu futuro e o de Isaura. Pretendia anunciar o desejo de noivar com a moça que conquistara seu coração. Mais que anunciar o desejo, iria pedir a mão dela em noivado ao pai naquela mesma ocasião.
O velho Antônio estava já bastante debilitado e doente. Para ele a simples sobriedade durante algumas horas era uma tortura sem fim. Parecia que suas entranhas queimavam, como se milhares de lombrigas de fogo estivessem alojadas em seu corpo. Sentado no sofá com Nelson, o velho, envelhecido menos pela idade que pela vida, se abraçava e tremia, apesar do calor de mais de 30º daquele dia. Tinha os cabelos desarrumados, maiores do que o seu normal, e cheios de piolhos. A boca, com poucos dentes, e a pele, cheia de feridas avermelhadas, pareciam exalar um odor fétido de álcool.
Mas mesmo assim, mesmo com o estado em que o velho Antônio se encontrava, Nelson estava decidido a realizar seu desejo de pedir a mão de sua namorada em noivado. Ela já sabia desse seu desejo e aceitava, a mãe também. Não concordavam com o fato dele querer pedir a mão da menina ao pai, mas ele insistiu e, graças a essa insistência, os irmãos de Isaura conseguiram levar o pai para casa naquele dia.
- Senhor Antônio – Começou o jovem Nelson – eu sei que o senhor não me conhece, mas há muito tempo estava querendo me encontrar com o senhor.
Antônio apenas o olhou, com a cabeça tremente.
- Meu nome é Nelson Antônio da Silva e já fazem dois meses que estou namorando a sua filha Isaura. Já conheço a sua esposa, Dona Clotilde, e os seus outros filhos.
Antônio novamente apenas o olhou.
- Eu sou operário, trabalho em construção e tem sempre gente querendo me contratar. Não ganho bem, mas consigo me sustentar e ainda ajudo um pouco em casa. Assim eu acho que conseguiria sustentar eu mesmo uma família, com algum sacrifício, é claro, mas conseguiria sem que eu e minha futura esposa passássemos fome. Sempre teria comida em nossa mesa e um teto em nossas cabeças, isso eu posso garantir.
Pareceu ao jovem Nelson que o pai de sua namorada nem o estava ouvindo. Ele ficava apenas olhando para o vazio e tremendo.
- Por isso senhor Antônio, eu gostaria de pedir a mão de sua em noivado e gostaria que o senhor nos desse a sua benção.
Somente então o velho Antônio falou.
- Será que o senhor moço pode me dar um trocado. Pode casar com a minha filha eu não me importo, mas me dá um trocado, pelo amor de deus.
Aquela resposta atingiu ao jovem Nelson com um chicote em suas costa. Sentiu um misto de indignação e dor. Tinha, ao mesmo tempo, vontade de chorar e de esbofetear o pai de sua futura esposa. Se controlou e não fez nem e nem outro. Deu algum dinheiro para o velho, que saiu quase que desesperado, e então virou para a família de Isaura que estava na sala, onde o choque parecera ter sido maior, pois Isaura e sua mãe choravam e os outros irmãos estavam com os olhos vermelhos e úmidos e os punhos cerrados. As mulheres soluçavam e os homens trincavam os dentes. Olhou para eles e falou:
- Não se importem. É melhor esquecer. Com meu pai foi parecido. Chega uma hora que você já nem o conhece mais. Nem ele mesmo se conhece. É apenas a bebida falando, e ninguém mais.
E no silencia que se criou naquela sala ninguém sabia se Nelson dissera aquilo sobre o velho Antônio ou sobre o velho Amâncio, seu pai.

***
Mesmo com o fracasso do encontro entre o pai da Isaura e Nelson, o noivado se concretizou. Uma semana depois, aparentemente, já estava tudo bem novamente naquela casa. O namoro do casal apaixonado, no sofá com a presença da mãe, ou em passeios pela cidade nos finais de semana, ia cada vez mais aproximando Nelson e Isaura e tornando-os cada vez mais dependentes um do outro. Tanto Antônio quanto Amâncio tornaram-se tabus na casa de ambos. E assim ficou até que o primeiro morreu e se transformou em uma lembrança como o segundo.
Nelson, conforme prometera à Dona Clotilde, só estava esperando conseguir dinheiro para, se não comprar, pelo menos alugar e mobiliar uma casa para poder se casar. E assim o fez. Não comprou, mas alugou, e no mesmo dia que comprou o último móvel necessário para uma família viver, pediu a mão de Isaura em casamento. Novamente a filha aceitou e a mãe ficou feliz com a decisão da filha. Desta vez o velho Antônio não foi nem avisado.
E os dois se casaram em uma igreja pequena e discreta, sem muito luxo, assim como foi a lua-de-mel do casal. Não viajaram, como disseram a todos, apenas ficaram trancados em sua casa amando um ao outro, apreciando tudo que lhes era negado durante o namoro e o noivado. E logo após este pequeno recesso de amor começou a transformação de Nelson Antônio da Silva em Nelson Pelego e, depois, em Seu Nelson e de Isaura Cristina de Jesus Silva em Dona Isa.

IX

Ao mesmo tempo em que o quarto começava a ser limpo, Nelson chegava em seu emprego. Em que trabalhava, depois de tantos anos, não importa, o que importa é que, apesar de fornecer o almoço e vale-transporte, exigia muitas energias do velho senhor. Chegava sempre exausto em casa, pensando apenas em jantar, descansar um pouco em frente à televisão e ir dormir, para na manhã seguinte começar tudo de novo. O mesmo poderia ser dito a respeito de Dona Isa. Limpava a própria casa e depois passava a tarde inteira fazendo o mesmo na casa de outra pessoa. E nem mesmo o almoço ganhava. Chegava em casa em tal estado que apenas reunia forças para fazer o jantar do marido e para assistir suas novelas, antes de praticamente desmaiar em seu colchão velho, surrado e duro.
E assim se passava o dia para ambos. Enquanto os ponteiros faziam sua maratona interminável, para ambos restava apenas o trabalho, ficando apenas Dona Isa um pouco mais suscetível a lembranças que seu marido. E trabalhavam durante o dia, para no início da noite se reencontrarem novamente, se cumprimentarem como velhos amigos, jantarem juntos e sentarem-se no mesmo sofá para assistir um pouco de televisão, apesar de todo o amor mútuo que sentiram, e que ainda sentiam. Era mais uma sonho que se ia embora um pouco a cada dia. Provavelmente o último que ainda insistia em sobreviver.
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