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cronicas-->AS IMPERTINENTES AÇUCENAS DA MEMÓRIA -- 10/09/2004 - 12:25 (Salomão Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Numa época em que o único pendor do homem é para o egocentrismo, que o único verdor do mundo é a supremacia da máquina -, só poderíamos contar com a alteração dos processos de memorização. A memorização visual que ainda existe acaba ocorrendo com parcialidade. O indivíduo não quer mais intimidade, passeia com indiferença e, se manifesta alguma interação, a agressividade tem predomínio na hora de ele aproximar-se da natureza.
Assim, as lembranças não serão recuperadas pela verbalização das nuances do mundo, pois o indivíduo não gravou os nomes e não registrou nenhuma experiência sensorial. E o mundo pessoal só existe se pode ser revisto através da visualização que está gravada dentro das lembranças. Aquelas lembranças que servem para reconstruir os sabores, as texturas cheias de calosidades, as cores que se cruzam em indefiníveis matizes numa mesma sépala.
Sem a recomposição dos objetos que habitam o mundo do passado, vai sendo elimina-da a experiência enriquecedora da memória. Não há, por exemplo, para a infància atual, arti-fícios capazes de construir a coleção pessoal de flores, de animais, de pequenos insetos. Quando muito, seres informes e violentos do universo irreal dos games e dos filmes de galá-xias inexistentes. Prevê-se que virão várias gerações que até poderão conhecer outros mun-dos, a geografia do senhor dos anéis, imaginar terceiras dimensões, mas que não saberão fa-zer a nomeação do território que habita, com prejuízos para a capacitação individual de am-pliar a visão pessoal, de criar interações afetivas com o mundo. O homem do futuro não terá como construir metáforas enriquecedoras das próprias emoções, pois elas saem das associa-ções cruzadas das diversas lembranças.
As crianças não se escondem mais atrás do assa-peixe de cachos de flores tomadas de abelhas; da moita de veludo-vermelho de flores esverdeadas; de um cupinzeiro que desponta entre o capim-meloso de flores roxas-avermelhadas, do monte de lenha ou dos tocos prontos para o fogo e já estéreis para as flores. A não ser que o monte de estacas esteja ali há tanto tempo que as trepadeiras silvestres já as encubram, plenas de colorações após as invernadas de dezembro. As crianças terão de ser apanhadas atrás de um piloti, de uma coluna, de uma escada. Se tiver vingado uma muda de mentrasto numa rachadura de cimento, ela já terá sido arrancada antes de estourar as peludas flores alvas que poderiam servir para as infusões de aliviar as dores dos nervos.
Um pai, hoje, antes de deixar o filho se enveredar por um trieiro, faria pesquisas para apurar os riscos que ele enfrentaria. Quando encontrasse o artigo associando o fungo da ma-ria-fecha-a-porta a algumas erisipelas, impediria a aventura do filho. E depois não vai enten-der que, aquele que não tem intimidade com o mundo, não precisa respeitá-lo, dar-lhe conti-nuidade. Podemos eliminar aquilo que não interage com a nossa afetividade. Quantas vezes bati as mãos nos ramos dessa sensitiva só para vê-la se voltar sobre si mesma em rápido ges-to de autoproteção! Não temia aquelas flores amarelas e felpudas, que mais pareciam um inseto estranho e temível! Os homens de hoje passam debaixo das acácias sem vê-las ou re-conhecê-las, sem apreciar o dégradé de suas cores ao envelhecer, saindo do roxo, indo ao róseo, chegando ao branco pálido, à podridão murcha nos gramados.
A memória das flores contribui, sobretudo, para o entendimento dos processos da re-produção, e dos engenhos misteriosos da formação da cultura. Quem não adquire memória pessoal das flores não estabelece liames para compreensão da beleza e de sua ligação com a cadeia evolutiva da vida. As flores existem para que exista a harmonia. Só há harmonia quando existe a possibilidade da perpetuidade. Não é à toa que a Igreja insiste em proibir, condenar os meios que impeçam a reprodução. Tudo que é sagrado busca o perpétuo, só que o infinito só existe onde está o homem a contemplar a beleza. Não existe a perpetuidade num jardim onde o homem não está para confirmar que a exuberància existe.
Em minha experiência pessoal, a primeira memória das flores emerge do fundo de mi-nha infància. Ao nos aproximarmos para apanhar água, víamos do outro lado da bica a moita da açucena de corolas vermelhas, com os milhares de pistilos atraindo os marimbondos e as abelhas arapuás. Arrancávamos os bulbos para que outras touceiras vermelhas se formassem para delimitar, com as touceiras de jiloeiros e dos quiabeiros de flores bojudas, o contorno do terreiro. Nunca voltei a encontrar amarílis igual àquela açucena! Talvez a espécie tenha se extinguido. E tanto a memória é pessoal que sequer a minha mãe consegue reconstruir a presença daquelas flores que ela mesma certamente plantou ali de parelha com as laranjei-ras. Esgotada a primavera, as touceiras só reapareciam no ano seguinte, pois as açucenas hibernam até a chegada de outra primavera.
As açucenas ainda alimentam as lembranças numa manhã sem mãe e sem alguma ou-tra mulher que, durante as viagens, engrandeça o dia com nomes de flores ou com centenas de pistilos novos que possam animar a vida.
Há miríades de experiências. Principalmente com aquelas flores que passavam des-percebidas, mas que podem ser apalpadas ainda neste momento. As pequenas flores brancas das laranjeiras, das goiabeiras, dos cachos roxo-amarelados das mangueiras. Os troncos alvos das jabuticabeiras. A minha avó cultivando brincos, rosas e rosas e rosas, palmas-de-santa-rita. Hibiscos. Inconfundível o amarelado em destaque nas flores das latadas de são-caetano, que depois abririam bananas com sementes de forte vermelho-adocicado. Quem já viu os verdadeiros favos das flores de bananeira cheios de colibris!
Quando ia chegando o Natal, a tia Criola colocava a meninada toda - eu ali no meio - para buscar no brejo braçadas de moça-branca para enfeitar a porta do cómodo da casa em que seria montado o presépio. Aqueles cachos de flores brancas recendiam pela casa to-da, a ponto de repugnar com o perfume açucarado. Beija-flores invadiam a casa para visitar o senhor-menino.
As flores encheram tanto a minha infància que participaram de iguarias raras. Colher os brotos de abobreira, cheios de botões, que seriam refogados para a cambuquira. Em tem-pos de pouca mistura, as escaladas pelo cerrado para encontrar as moitas espinhosas dos gravatás para cortar aquelas flores de vermelho esbranquiçado, que eram fatiadas em peque-nos cubos para o guisado áspero. Às vezes, no lugar das flores, já estavam as bagas maduras, com o suco meloso e de azedo travoso. Estas flores ultrapassavam o limite da beleza. Era a antropofagia da beleza, os braços lanhados pelos espinhos no ato da colheita. A espera dos veados que vinham comer as flores dos pequizeiros - verdadeiras orquidáceas.
Depois chegaram flores desenhadas em envelopes cheios de sementes. O amor-perfeito. Eu chegava a confundi-lo com as borboletas. De cores raras e variadas. E a flor que servia de relógio para o horário do almoço? Nove-horas. As flores participavam da socializa-ção das famílias. As mulheres tinham o escambo próprio para mudas, sementes, flores.
Os intrincados cachos de flores douradas, pendentes com milhares de abelhas, das duas palmeiras próximas ao rio Calvo de minha infància. As infindáveis quaresmeiras nos sopés dos morros. As acarnáceas e os narcisos, de Sylvia Plath; as coloquíntidas, de André Gide, "que só oferecem à sede um ardor mais cruel, mas têm sua beleza sobre a areia doura-da".
Há flor mais bela que a perpétua? Ela é a sempre-viva. A flor se despetala e não existe mais a perpetuidade. O homem quer imitar o processo de geração de alguns vegetais, que, descontentes com o demorado ciclo que se inicia com a floração e segue com a maturação do fruto, se reproduzem a partir de pedaços deles mesmos. O abacaxi. O poejo. A bananeira. As açucenas.
Ando com saudades de ouvir as flores de uns lábios. Miosótis. Zínias. As tónicas flores do sabugueiro, das rosas. Alguém podia me mandar pelo menos as pétalas de um beijo. Agora não passo de um indesejado lagarto da modernidade, indo por um rio sem fim, à disposição da impertinência das moscas, sem ao menos a embarcação de uma vitória-régia!
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