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Contos-->Morte e Transfiguração -- 16/02/2001 - 00:01 (Fabio Robson Massalli) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
É estranho. Setenta e cinco anos depois e agora solidão. Mal sinto as minhas pernas, estão cansadas demais, preocupadas em descansar no leito duro e de uma frieza quente deste hospital. Ou talvez seja eu mesmo quem esteja querendo continuar aqui, neste melancólico fim de um nada que nunca chegou a ser coisa alguma.
Ao meu lado um jovem dorme. Seu corpo, assim como o que restou do meu, está coberta por um lençol estranhamente quente. Por instantes ele mesmo parece morto, tamanha a paz em seu semblante. Será que eu próprio sou capaz de transmitir este sentimento a quem me vê dormindo quando olha para meu rosto profundamente marcado pelas rugas, marcas e cicatrizes que o tempo e a dor deixaram. Não sei o que este colega forçado pelo infortúnio e pela doença tem, nem mesmo desejo saber. Somente sei que ele não está só. Mesmo em seu sono ele recebe visitas, que me lançam olhares rápidos e disfarçados, sem me permitirem, nem ao menos ler suas expressões. Quanto a mim, minhas únicas palavras são com médicos e enfermeiras. Nem mesmo em sua quase morte um jovem está sozinho, já um velho como eu, no limiar da morte e transfiguração, não tem nada além de fantasmas e memórias, quando tanto.
As paredes que me cercam são brancas, assépticas e sem vida. Existe apenas uma janela com vista de um prédio acinzentado, ao menos do único ângulo que minha cama permita que eu veja com olhos que, de tanto que já viram, a cada dia pode detectar e compreender menos detalhes. Os móveis são aparelhos hospitalares que perturbam o sono e povoam pesadelos. Nunca sei se o que eles dizem no silêncio do meio da noite é o anúncio da morte ou a vitória da vida por mais um dia. E não apenas para mim.
Em minhas noites insones talvez tema menos a minha morte que a do jovem ao meu lado. Seria completamente solidão. Não teria mais a respiração, ofegante e quase imperceptível ao meu lado, para desviar a atenção de meus ouvidos velhos e cansados do barulho dos aparelhos deste quarto naquelas horas da noite onde o menor dos sussurros parece um grito insuportável. Silêncio torturante que o hospital embebeda ainda mais. Seria completamente solidão em todos estes restos de dias que ainda guarda minha vida miserável. Apenas solidão. É estranho, como todos se foram ou morreram.
Entre tosses secas e respirações ofegantes que parecem nunca levar ar suficiente para os pulmões lembro-me de minha juventude. A idealização de minha própria morte que fazia aos 20 anos. Acreditava eu que viveria mais 10 ou 15 anos e morreria de uma doença qualquer, assassinado numa das milhares de madrugadas de boêmia, retornando em caminhadas sozinho para casa, incapaz de dar três passos numa mesma direção de tão bêbado que estava. Como tudo o que imaginei e tudo o que planejei em minha vida, nada disso aconteceu. Hoje estou com setenta e cinco anos, sobrevivendo ao mundo mais que todos os meus amigos bem humorados que condenavam e lamentavam meu cinismo, mau humor e melancolia. Não sei se lamento ou abençôo todos estes anos que vivi fugindo de meus planos idealizados.
Esta manhã ouvi o jovem acordar e simplesmente perguntar à enfermeira que estava ao seu lado, “Estou morto?”. A jovem sorriu e, pelo reflexo de seus olhos verdes no cabelo castanho brilhante preso e quase escondido no uniforme, respondeu que não, ele não estava morto, estava em um quarto de hospital. O rapaz ergueu levemente a cabeça, como quem ouve um pequeno sussurro ao dormir sozinho em um quarto escuro numa noite de tempestade, olhou o nosso quarto com uma expressão que misturava um crédulo à um ateu que acabara de presenciar um milagre inexplicável pela razão e tampouco pela ciência. “Graças a Deus”, foi a sua única resposta antes de voltar novamente a dormir. “É”, respondeu a enfermeira, “graças a Deus.” Eu, sozinho com meus pensamentos, lamentava a realidade que meus temores de solidão iria se transformar quando, em breve, o meu jovem companheiro de quarto tivesse alta ou simplesmente fosse transferido para um outro quarto ou para algum tratamento específico de sua moléstia, fosse ela qual fosse.
Desviei o rosto para a janela, com sua vista de um fundo de prédio cinza, na tentativa de desviar meus pensamentos e minha atenção. Incapaz de controlar os pensamentos que invadiam minha mente, eu, como lastimável moribundo que sobrevive a cada novo dia, não tinha por quê agradecer por continuar vivendo como fizera o jovem ao despertar pela primeira vez desde que eu o percebera deitado em sua cama tornando-se um novo motivo de distração para mim e minha mente. Aquela vida não poderia, em tempo ou em vida alguma, ser considerada uma graça divina, mas sim uma perdição, o início de meu purgatório.
Meus rins não passavam de memórias do passado, minhas pernas estavam tão fracas que mal agüentavam o pequeno peso de meu corpo, outrora tão viril. Meus olhos, que viram e viveram tantas coisas nestas sete décadas e meia de história, agora se viam confinadas a estudar os detalhes deste quarto com tão poucos atrativos que nem mesmo Tolstói seria capaz de descrevê-lo de maneira interessante e rica. O quarto tornava-se simplesmente monótono e sem vida com sua janela que, dos ângulos permitidos pela posição de minha cama, me deixavam vislumbrar apenas as paredes de um prédio acinzentado, embora todas as manhãs eu visse o sol criar uma sombra de luz clara e quente em cima de meu lençol branco.
Aquela mente que vira todos os grandes filmes, lera os grandes clássicos e era capaz de discutir toda a atualidade, com citações históricas, agora tinha sua memória incerta e estava incapaz de lembrar sua própria infância, e mesmo sua vida adulta já começava a se mostrar confusa. Um lamentável e melancólico fim. Mas como tudo um dia acaba, do mais difícil jogo à mais espetacular das vidas, eu rezava, para que aquela fosse a última noite em que os aparelhos marcariam o pulsar de meu coração.
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