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Contos-->CAMUNHENGUE (Valdomiro Silveira) -- 28/01/2007 - 16:49 (Heleida Nobrega Metello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




C A M U N H E N G U E
Valdomiro Silveira (1873-1941)



Um belo dia, sem mais esta nem aquela, pegaram a aparecer pelo rosto do Zeca Estevo umas grossuras, uma vermelhidão, uma pressama que ninguém sabia como explicar. Engrossavam-se-lhe as asas do nariz, iam-se-lhe sumindo os olhos sob a carne tumefeita, que os vencia por todos os lados, recrescente, e as pestanas principiaram a fazer-se-lhe ralas, esfiapadas, ao mesmo tempo que a cabeça se despovoava de cabelos e uma quase contínua fraqueza lhe bambeava as pernas, para baixo dos joelhos.

Às primeiras mensagens daquela doença incompreendida, que, aliás, passava por nada na opinião de todos da casa, não se alvoroçou nem se fez diferente o Zeca Estevo, acostumado como estava a tudo quanto é bom e quanto é ruim na terra. Mas, depois, quando se acentuaram os sintomas; quando deram os vizinhos a dizer que “aquela empinge vinha braba”; quando notou que os estranhos já o olhavam com desusadas mostras de reparo e quase de asco; foi então que entendeu de cuidar de si, rebuscar “u’a mezinha com qualquer curandeiro ou curjão dos arredores”.

Lá pelas covanças do Guaçu, numa tapera escangalhada e cheia de mato, assistia o Cabeludo, um prático de fama, que era a última palavra nestas moléstias desconhecidas. O Zeca Estevo preparou-se com todo o cuidado, mandou arrear a melhor besta de sela que tinha, escolheu o melhor rapaz do sítio para camarada na viagem (porque tinha com quê, o Zeca Estevo),e riscou chão u’a madrugada, nem bem o galo pipuíra que lhe morava em frente da janela, acabou de bater as asas e cantar pela terceira vez.

Não se podia ler ainda uma carta e, além de tudo, caía uma neblina muito fria, embora fosse tempo de milho verde. Mas em riba dos espigões, que mal se divisavam através daquela cortina opaca, um grande vulto cor de cinza clara se movia já do chão para o céu, ligeiramente, e era a manhã que rompia.

O Zeca Estevo despediu-se da mulher com duas palavras apenas, porque a demora seria pouca e a saudade que levava era muita. O filho mais novo, de cinco anos, que era a menina dos seus olhos, como dizia, ainda teve jeito de lhe pedir um piquira lazão de crina branca, bonito e manso como o do Candinho, o irmão mais velho, que andava pelos oito anos e era pouco menos que um adomador. Ele ouviu o pedido, respondeu que sim, que o piquira havia de vir, - como não havia? – e passeou a ferramenta pelo vazio da mula, que se descanhotou logo, estrada a fora, violenta e macia no trote de cão.

Lá se foi o Zeca Estevo, alegre e confiado. Houve outros que partiram também confiados e alegres à procura do Cabeludo, mal lembrados do horror que levavam dentro de si, no peito ou no coração, e que não puderam voltar, entretanto, e acharam melhor, decerto, deixarem-se ficar esquecidos e descansados, nalgum recanto de cemitério, em lugarejo, sem nome ou sem fama...

Mas o Zeca Estevo não concordava com esse abandono da vida longe dos seus: ou tudo ou nada, falava ainda na véspera da viagem. Ou sararia, e a volta havia de ser uma festa; ou teria então o desengano, e ainda assim tornaria ao sítio, morto e já desmanchado que fosse!

Não era coisa a que se pudesse chamar bonita, aquela tapera onde assistia o Cabeludo. Ao fundo dum angola praguejado, em que a unha-de-gato, o cipó-caboclo e a japecanga se entrançavam, caindo dos maricás ou dos ceboleiros, escurentada e escondida por um maracujazeiro de árvore, aparentava o jeito de um gato mourisco assanhado, que se encolheu e vai saltar de súbito à cacunda tremente do xintã.

Toda a gente sabia, contudo, que um mundão de romeiros cheios de fé vingava diariamente aquele rincão, em busca do milagroso experiente que distribuía a vida e a saúde a troco de uns sacos de mantimento ou de umas poucas cabeças de galinhas ou leitões...

O Zeca Estevo escolheu a ocasião boa: chegou à tapera ao fechar da tarde, quando já ninguém de fora lá estava e os urus gargarejavam seu canto profundo e selvagem nos esgalhos das pindaíbas e dos cedros, ali perto. Saltou logo ao terreiro: e como visse que o Cabeludo não se apressava a recebê-lo, entretido a tostar sobre as brasas uma cobra engraxada de manteiga, fez chorar no saco da garupa os dois marrõezinhos mais gordos que criava no chiqueiro e lhe trouxera, como presente especial, antes da cura.

O Cabeludo, nesse ato, virou-se para ele, vagaroso e solene.

Medo, terror, foram tolices que nada conseguiram do Zeca Estevo, nunca na vida. Mas agora, àquela hora duvidosa do lusco-fusco, naquele ermo, um irreprimível pavor se lhe foi apoderando pouco a pouco do espírito, à medida que o morador da tapera lhe respondia à salvação e lhe perguntava pela saúde, com voz pousada e um tanto rouca, em que havia muito de tempestade longínqua e também de rugir contido e ferocíssimo de tigre. Sentiu curvarem-se-lhe os joelhos, uma corrente de água gelada passar-lhe pela medula, porem-se-lhe a pino todos os fios de cabelo do corpo, e juntamente uma ânsia tão forte, de tal modo sufocadora, que lhe constringia a garganta e lhe fazia corre um suor frio nas palmas das mãos e entre os vãos dos dedos.

Entrou na tapera, apesar de tudo. Contou sua vida ao outro, largamente, e acalmava-se à maneira que a narração lhe ia fugindo dos lábios para os ouvidos do curandeiro atento. Fora, sob o maracujazeiro, o camarada assobiava enternecido uma tirana das derradeiras funções. E aquela tirana, casada agora ao chiado monótono de uma cigarra já invisível, foi fazendo que o Zeca Estevo de todo volvesse em si, ganhando outra vez a paz de espírito de sempre, a calma que em todos os casos lhe servira de máxima fortuna.

O Cabeludo, porém, tirara com a mão esquerda o lampião de azeite, de um mancebo ao meio da casa, e com a direita lhe examinava suavemente as faces, que se arrepanhavam grossas por sobre os zigomas, donde pareciam debruçar-se para as maxilas como bambinelas rubras e extravagantes. Indagou-lhe dos pais e dos avós: se nunca tinham tido mal de gálico, se nenhuma mulher da família quebrara resguardo de parto, por onde lhe tivesse vindo a doença triste que faz a mão ficar de vaca e perder as unhas. E o Zeca Estevo, escutando semelhantes interrogações, para ele desnecessárias e estúpidas, entrou de novo a possuir-se de um enorme susto pânico, entremetido de raiva de fúrias, durante as quais deixava de esganar o feiticeiro (parecia-lho naquele instante), só porque acreditava bem na certeza do tratamento.

Houve uma pausa embaraçosa e embaraçadora nas palavras do velho: foi a um canto da casa, ao pé do jirau em que dormia, puxou uma gamela, pôs-se a lavar as mãos com uma orelha de timburi e já voltava para o Zeca Estevo, num passo ondulado e mole, quando este quis saber o nome da doença:

– Antão, meu patrão velho, o que é que eu tenho?

O Cabeludo olhou-o de frente, com os olhos parados e inexpressivos:

– O mal.

– O mal? Vancê tá caçoando!

– Caçoando tá você, menino! Pois antão você, quando veio aqui, não sabia já que tava de camunhengue? E olhe que é jarerê dos graúdos, é dos brabos! Tome conta disso, antes que ele tome conta de você!

O Zeca Estevo tinha o gênio desabrido: vieram-lhe repentes de sacar o punhal e sangrar no mesmo instante aquele bruxo desgraçado. Mas conteve-se:

– E o que é que eu bebo pra sarar?

– Não beba remédio, que pra isso não tem remédio, não há mezinha. Coma carne de capivara sem sal, por todo feitio, e a da onça, que tá são. Mas largue do sal, se quer mesmo ficar como dante!

Anoiteceu de todo. Um fantasma apavorante caminhava entre as nuvens, serenamente, e no andar cadenciado e como que fraco imitava o do curandeiro, que, entretanto, mudo e sombrio, se agachava encostado ao fogão, onde recomeçava a tostar a cobra apetecida.

O Zeca Estevo olhou-o, olhou depois aquilo que caminhava terrível entre as nuvens; sentiu-se aniquilado, transido de verdadeiro medo, e ia gritar pelo camarada, quando as nuvens se abriram, enchendo o arruinado casebre de uma claridade azulega de lata nova, e reparou que aquele fantasma era a lua cheia, com seu São Jorge muito entusiasmado ao alto e alguma tênues fumaças brancas a enrolarem-se como numa túnica.

Desamarrou os sacos trazidos, pô-los à porta da tapera, e montou a cavalo.

– Temo lua boa, seu Chico: de madrugada tamo em casa: bamo embora!

Houve um forte e rápido rumor na estrada: se não fosse tão rápido e tão forte, poder-se-iam ouvir os gemidos do Zeca Estevo, homem que nunca tinha chorado na vida, de serra abaixo pra cá, tal qual se diz na moda velha.

Não era tão tarde assim, que o Zeca Estevo não tivesse lado de torcer um pouco da estrada e procurar o sítio num conhecido antigo, um criador em cujo potreiro vira ao passar, com sol alto ainda, um poldro lazão de crina branca e palmatória, bonito e manso como o do Candinho, e bem ao modo do que lhe fora pedido pelo José, a menina dos seus olhos, a quem não podia negar esta alegria tão fácil. E foi preciso mandar campear o petiço, àquela hora velha e pelo cultivado úmido de orvalheira, porque o José lhe estava a aparecer diante, todo risonho e satisfeito, ao ver que a promessa fora cumprida.

Depois, quando se fez novamente ao caminho, entre um e outro vôo de pássaros noturnos, que lhe causavam singulares vibrações de nervos, e ao pensar naquela criança pequenina e querida, para quem levava o cavalinho adestro, uma inefável piedade de si mesmo quase o fez soluçar e carpir-se; via-se repudiado de todos, porque o negro mal de Lázaro iria de mal a pior, não duvidava, e o José lhe seria companheiro de sempre, apesar do imenso infortúnio, porque tinha uma alma afetuosa e cheia de bondade. E a mulher, Sá Januária, que fora o anjo da guarda de sua mocidade turbulenta e rixosa, ia-se-lhe apresentando à memória vagamente, aureolada de uma luz admirável, como as santas das oleografias.

A marcha troteada da mula soava pela estrada clara, num ritmo acelerado e uniforme. E era tão sagaz, tão esperta, tão valente, que mal o sol apontava da multidão de montanhas distantes, quando o Zeca Estevo abriu a porteira do pátio, onde a criação renhia pelo milho atirado de pouco. Sá Januária surgiu espantada da varanda, trouxe logo o café com rapadura, e não chegou a perguntar-lhe a razão da volta tão apressada e o que dissera o Cabeludo, porque logo o Zeca Estevo lhe foi contando:

– O home’ lá me disse que ’tou sofrendo do mal.
Mas a Januária também não quis acreditar:

– Não é capaz, isso é poaiage sua!

– Verdade, mulher: o diabo inté me receitou capivara e onça.

Sá Januária duvidava sempre: olhou-o, remirou-o com todo o sossego, convencida de que tudo aquilo não passava de uma cuca que o Cabeludo lhe botara no marido, para ganhar molhadura melhor. E o Zeca Estevo, banzativo, escorara-se a um catre desmantelado, donde olhava para a mulher com ares muito alheios e remotos; por fim, como já pelos vãos das telhas coasse no chão a claridade crua do sol, disse a modo de distraído, como quem não quer:

– Só se ele cuida que é por causa deste inchaço que eu tenho há tantos dias nas orelhas.

Foi como se todo o mundo viesse abaixo!

Ela reparou-lhe então nas orelhas, que se haviam tornado intensamente escarlates, como queimadas do sol, empipocadas e grossas, pendentes para as faces num reviramento assustador dos bordos. Sá Januária teve um arrepio de terror e um estremecimento fundo de compaixão; mas conteve-se logo, desviando a conversa com pedir ao Zeca Estevo a ajudasse em passar pelo pescoço de uns franguinhos pipuiruçus uma pena de galinha, por livrá-los da pigarra.

Vieram daí por diante os dias negros da tristeza e da desconfiança. O Zeca mandava a lugares longes, por mantas de capivara e carne fresca de pintada, tomava chá de raiz de inhame, todos os dias, fugia do sal, corria da chuva e do sereno, mas cada vez piorava mais. Deram de retirar-se os vizinhos; apenas algum mais corajudo ainda aparecia, de quando em quando, a bater u’a mão de truque ou pontear uns toques novos na viola paranista. E, por mal de pecados, chegara o tempo das águas, com uma ventania nunca vista e um poder de tempestade todo santo dia.

Agora, com um bandão de desculpas aumentativamente apertadas, Sá Januária mudara de cama, dormindo com o José num quarto pegado ao do Zeca Estevo, donde, noites inteiras, o ouvia roncar e queixar-se de mil apoquentações e outras tantas dores. Fizera-se ele irritadiço e mau de gênio, esbordoava os pevinhas à toa, botava chumbo nos leitõezinhos-tatus mais estimados, que se aventuravam até a varanda. Um dia que matara um de brinco, e Sá Januária lho censurava entristecida, ele respondeu rindo num riso rasgado e amargo:

– Ora, eu também tenho brinco, se eu morrer, ninguém não sente!

Ao ver que todos, pouco a pouco, o iam abandonando ou, quando nada, deixando, também um poderoso desejo de absoluta solidão o tomava, mesclado de raiva dos homens e desamor aos seus. Chegou a dizer a Sá Januária, quando ela lhe explicava certo dia, por palavras travessas, o motivo da separação:

– Eu aqui já não valho nada, todos me largam ao deus-dará, como se eu fosse um trapo velho. Há de chegar tempo de eu romper sem rumo por esse desespero de mundo! Você verá!

E voltava-lhe um calor de valentia da mocidade:

– Hei de sair, inda que seja pedindo esmola de casa em casa, p’r’essas barrocas e serras. Quem não me der esmola eu quebro de manguara, porque ninguém não tem coragem de me ponhar a mão, e o chumbo em mim já não pega. Cama, eu faço em qualquer fundo de mato, em qualquer beirada de corgo, inda que a força das inxorradas me carregue co escuro da noite!

A chuva estiara de todo, certa manhã de dezembro. O Zeca Estevo mandou que o Candinho lhe ensilhasse a besta picaça quatrolha, u’a mula velhaca e arengueira, para dar uma volta pelos arredores. Disseram-lhe que, doente assim, não devia montar naquele inferno de mula: foi tempo perdido, quis porque quis, e fez o que resolvera. Antes, porém, de montar a cavalo, chamou o José com todo o carinho:

– Venha cá, meu filho, quero lhe dizer uma coisa.

O José refugava-o desajeitadamente, com os olhos baixos, de respeito e de medo. Não se lhe chegou para ao pé:

– Pois antão inté você, meu filho, tá me pondo de banda?

O José custou a responder, mas por último falou com voz sumida e trêmula:

– Diz que vancê tá macotena, nhô pai.

– Era isso mesmo que eu esperava. Ai! meu São Bom Jesus do Pirapora, já não tenho mais ninguém por mim neste mundo! Fique pra lá pro seu canto, José, que eu já não lhe digo mais nada, não tenha susto.

Montou a cavalo:

– Agora falta só as purungas e a baciinha, pra mim cumprir o meu fadário!

Sá Januária chamava-o, chorando desesperada. E ele perguntou-lhe de repente:

– Eu volto, sim, eu volto: você quer que eu deite na sua cama? Ah! não quer, pois antão? O mundo é mesmo ansim!

Recomeçara a chover miudamente, o sol passava frouxo e sem quentura pelas cordinhas-d’água, quando o Zeca Estevo bateu a tala nas ancas da mula e disse com voz em que havia uma tristeza infinita e um desespero inenarrável:

– Adeus, antão meu povo dalgum tempo!

Voltou a ventania, primeiro quase mansa, depois furiosa e uivante. E enquanto ele se sumia na reviravolta do caminho, a chuva engrossava, pouco a pouco, até se fazer outra vez um poder de tempestade.

– ...Ai! meu São Bom Jesus do Pirapora!





postado por Heleida Nobrega Metello, 2007

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