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Cronicas-->A DOR DE SER-QUASE NUM POEMA DE SÁ-CARNEIRO -- 30/09/2004 - 18:55 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A DOR DE SER QUASE
João Ferreira
30 de setembro de 2004

O sol rompia lindo e decidido nesta manhã, banhando os pinos da serra.
O beija-flor adejava vibrante na amoreira e descia folgado a bebericar água na garrafa plástica suspensa no ramo junto das flores.
Em minha cabeça viviam reflexões. Tudo fluía entre o pensar e o sentir.
As coisas teimavam em aparecer em minha volta. Filosofando, lembrava-me do "umstand" dos alemães. A circunstància. Parecia na verdade que tudo decorria como se fosse ligado a uma circunstància. No circuito da evidência, pululava em mim o pensamento de Ortega y Gasset: "Yo soy yo y mi circunstancia".Nada mais sou do que eu e a minha circunstància.
Ligando coisa com coisa, irrompiam doutrinas de filósofos. Por aqui, nos meus sentidos, o "Dasein" existencial crescia vívido como se estivesse ouvindo uma lição de Heidegger. Mais ali, eu ouvia Malraux que anunciava a verdade da tese da "condição humana" que a todos atinge.
Estava na serra. Sozinho. No meu cantinho. Não estava na academia de Platão, mas ouvia as lições que o mestre sempre me deu. Não estava no Liceu de Aristóteles, mas havia resguardos de sua metafísica em meus flutuantes pensamentos. Sabia que não estava nas salas sapienciais dos Pórticos de Zenon, mas chegavam-me as doutrinas de prazer e de dor. Minha realidade aqui era eu mesmo, mas à volta havia algo de belo, de diverso, de circunstancial. Era a amoreira cheia de pássaros irrequietos e a figura do beija-flor. Era a esplendência do sol banhando a terra. Isto e muito mais. Interessante é que no meio de tudo nasciam todas estas figurações que iam se multiplicando na minha cabeça como se fossem personalizações ou criaturas ambulantes em evidência. Estava assim mexendo com súmulas de pensamentos e de compêndios. Revirando o céu e a terra e o que os homens deixaram pelo caminho da reflexão. Tentava alimentar meu espírito e entender melhor a peregrinação humana pelo Planeta Terra. Era filosofia demais para esta clareza e para esta beleza da Primavera aqui no alto de uma serra do Planalto brasileiro. Demais para um paraíso tropical onde há coisas bem imediatas que não sugerem tantas filosofias. Era isto um discurso direto. Mas como vamos deter um discurso vivencial tão direto? Para muitos, seria apenas um discurso inútil, já que, como dado mais imediato eu tinha ali a realidade e a apetência de uma piscina que me tentava na hora em que o calor apertava e sufocava demais.
Mas se eu estava pensando com tanta seriedade era porque tinha comigo a minha humanidade. E em razão dela, na superfície da banqueta havia as Poesias completas do poeta Mário de Sá Carneiro, "um gajo porreiro" e uma das estrelas de "Orpheu". Valia a pena dar a ele esta atenção? Claro que valia. Não podia deixar de aproveitar.
Algo interessava, essencialmente. A piscina estava tentadora e diante dessa realidade parece evidente para muitos que a filosofia sobra... Havia que resolver por isso essa aparente dualidade entre filosofia e piscina. O que era verdade era que eu não podia em rigor me desprender de mim. O que em mim clamava era o poema "Quase" e a "dor de ser quase" de Sá-Carneiro. Queria voltar a ler e tentar entender mais profundamente o drama deste jovem suicida. Queria acompanhar a descrição paulatina da falência da sua personalidade. Isso era uma questão importante, agora.
Viera para junto de mim, neste poema, o menino que ficou órfão aos dois anos. O Menino que não teve o colo de uma mãe que o embalasse. O Menino que poetava agora sobre a Dor de ser só e sobre a Dor de ser-quase. Entre os milhares de motivos com que me solidarizo com os outros, a solidariedade humana pela poesia me tocava de verdade.
Em minha mente passava a idéia de que na construção da personalidade, todo o ser humano corre em direção à sua identidade. Não só em direção à sua identidade. Também em direção à sua segurança, ou seja, em direção à descoberta de si mesmo.
Sá-Carneiro nunca construiu esta segurança, esta sua identidade no mundo. Sempre tentou construir a certeza ontológica de si mesmo sem o conseguir. Seus abandonos, o levaram uma teorização poética da fragmentação.O que sobrava em termos estéticos em sua poesia, faltava-lhe em termos psicológicos como amparo existencial de sua pessoa humana e civil. Deslumbrado com tanta coisa valiosa da cultura francesa e internacional, e tão embebido em escrever para Fernando Pessoa o que se passava em Paris, Sá-Carneiro debatia-se na solidão e na "dor de ser-quase". Era um jovem que desejava descobrir o mundo, algo que o satisfizesse, que o apaziguasse. Na solidão, frágil, sucumbiu.
Esta realidade histórica e estética chegou a mim, neste dia, por escrito, nos trópicos. Na paz burguesa deste dia cheio de sol e de primavera busco a compreensão humana da identidade de Sá-Carneiro. Não preciso de ser filósofo neste momento. Preciso,sim, de ser leitor de poesia.
Sá-Carneiro, grande nome da vanguarda modernista portuguesa se me revelava como alguém que escrevia poesia ligada à vida. Poesia dramática,sobretudo. Eu li a obra completa, com acento especial para Nossa Senhora de Paris, Indícios de ouro, Manucure, Caranguejola e outros poemas. De momento, o poema "Quase" tornava-se peremptório.
"Um pouco mais de sol - eu era brasa/ Um pouco mais de azul-eu era além/ Para atingir faltou-me um golpe de asa/ Se ao menos eu permanecesse aquém.../ Assombro ou paz? Em vão...Tudo esvaído[...]/ Quase o amor, quase o triunfo e a chama[...]/De tudo houve um começo...e tudo errou...- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim.../Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim/ Asa que se elançou, mas não voou.../Momentos de alma que desbaratei[...]Se me vagueio encontro só indícios...[...]Num ímpeto difuso de quebranto/ Tudo encetei e nada possuí...[...].Paris 13 de maio de 1913.
O que mais chama a atenção neste poema é a sensação de falência do sujeito-lírico e a vivência aguda que restou dessa falência, que é, dramaticamente, a "dor de ser quase".

João Ferreira
30 de setembro de 2004
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