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Cronicas-->UMA ESFINGE NO PINO DO PLANALTO -- 02/10/2004 - 19:52 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


UMA ESFINGE PLANTADA NO PINO DO PLANALTO

Jan Muá
2 de outubro De 2004

Todas as tardes encontrava ali aquela dama.Sempre no período das doze às quatorze. Na subida. Não sei quem é. Nunca parei para a observar. Não sei se mora por ali num daqueles condomínios. Não sei se é casada, se solteira, se desquitada ou viúva. Parece uma senhora de quarenta anos, pelo perfil indireto. Fica ereta, de costas voltadas para quem ouse identificá-la ou desafiá-la. Jamais mostra o rosto.Permanece ali, indefinidamente, como estátua. Por vezes me lembro da história da esfinge egípcia. Na minha cabeça ela também me aparece figurada em esfinge. Penso comigo que a esfinge sempre tem um rosto dúbio e não dá certezas a ninguém. Hoje não sei mais do que sabia há um mês sobre essa criatura. Tenho a mesma informação, a mesma impressão, a mesma imagem.Passo por ali mas não paro. Ela continua imóvel e não muda de atitude. Um segredo na pista para quem sobe. Acredito que não seja uma pitonisa móvel de verdade, daquelas que adivinham os segredos dos homens. Quero crer que não seja também uma vidente. Porque se fosse teria de consultar as cartas ou o taró. Também julgo que não está ali para atrapalhar ninguém. O que presumo é que espera alguém. Ou então está porque tem um objetivo. Nós os transeuntes da estrada temos o vício de sempre querermos decodificar os sinais. É um bom hábito, aliás. Estar no mundo e fazer a leitura do mundo é processo de alfabetização. Este sinal porém é meio enigmático. Acho que vou começar a fazer um diário e anotar as horas exatas em que a vejo. Vou tomar notas sobre seu estilo de roupa, sobre suas cores. Acho que vou ter pano para muita manga.Mas para isso terei de parar ali por perto. Discretamente, é claro, sem chamar a atenção. Parar a uns metros dela, como quem gosta de ficar olhando o deslizar dos carros. E aproveitar para olhá-la no detalhe. Primeiro, de soslaio. Depois, ir-me habituando a seu rosto, para colher seus traços, tentar descobrir seus olhos em relance. E ficar ali algum tempo. Saber mais coisas. Talvez perguntar que horas são para ver como ela se desdobra nas respostas. Um dia vou travar um papo com ela, até. Vou perguntar, por exemplo, se espera alguém. Aí terei oportunidade de fitar seu rosto, de examinar se tem tiques de rosto. Saber como é. Filmá-la com meus olhos para derrubar em mim a idéia de esfinge que me deixou.
Se eu pensasse a sério, veria que a culpa é só minha. Passo sempre a 60 à hora e só vejo ela de relance, além do asfalto. Não imagino se ela alguma vez me viu, se gravou as linhas de meu rosto, se arquivou em sua mente a cor e o modelo de meu carro. Eu e todos os que diariamente por ali passamos poderemos fazer parte já do arquivo dela. Embora imóvel, seus neurónios devem ser velozes e rápidos e mais valiosos do que os neurónios de um grou coroado que fica horas e horas em cima de uma perna só.
A ladeira é íngreme, sim senhor. É uma subida suada. Exige pulmão e valentia. E ela, espera o quê??? Porque não dá o rosto? Está fugindo daqueles homens curiosos, por vezes sádicos, que por tudo e por nada oferecem uma carona embaraçante a ela que zela ferozmente a moldura pública de sua figura moral num meio moralista que marca a soberania e autonomia do comportamento das mulheres
Desta vez, aqui vou eu... na estrada...de carro...subindo a linha serpenteada do Grande Colorado. Estou disposto, desta vez a parar para decifrar o rosto da Esfinge... Lá está ela...Deixo meu carro no estacionamento do Revelação. Discretamente me apeio. Caminho a pé por algum tempo. E vou ficar bem pertinho da minha enigmática criatura. Da minha Esfinge. Quero vê-la de perto.
Apesar de seu ar rígido, pude aproximar-me e olhá-la. Fingindo ser um repórter, quebrei sua aparente distància com uma pergunta:
-Perdão, minha senhora. Sou repórter de um jornal Planalto Central e estou entrevistando pessoas sobre horários de ónibus e vans nesta zona do Colorado.
Para me atender, tirou seus óculos escuros e gentilmente me disse:
-Não sou daqui, senhor.Temo que não possa responder ao que o senhor deseja. Estou há pouco tempo por aqui. Tenho um pequeno atelier na Comercial e aguardo minha filha para almoçar. Ela poderá esclarecer o senhor. Está no horário de ela chegar, pois todos os dias me pega neste horário para almoçarmos em casa dela no Condomínio Colorado I.
-Oh! Peço muitas desculpas pelo incómodo, minha senhora. E obrigado pela gentileza.
Aquela resposta bastou para destruir em mim todo o rosto esfíngico que fora construído ali, na ladeira do Grande Colorado, por olhos que a viam de longe enigmaticamente.
Na verdade, era uma criatura comum. Enigmática, só de longe. Como tantos rostos até que sejam decifrados pela palavra, pelo gesto ou pelo comportamento.

Jan Muá
2 de outubro de 2004
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