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Ângela
Passei na calçada com pressa. Alí estava ela, de cera, mostrando sua boca vermelha.A vi rebolando,num jogo de quadrís espetacular só para mim, atrás da vitrine.
O frio poderia ter congelado meus neurônios? O cigarro assim, tão cedo, poderia ter produzido um efeito alucinógeno...Ou não? Eu sabia o que vira.
Repetiu-se o fato diariamente.
Inverno congelante e meus problemas. Como fazer para fugir da tremenda ilusão, com tantos motivos para fugir da realidade?
Sabia que a encrenca seria gigantesca. Dizer à minha mulher, e aos meus amigos, que me apaixonara pela manequim- vitrine à frente da avenida?
Anos passaram-se. Dois, três, sei lá.
Procurava razão para aquilo. Busquei nos antepassados alguém que tivesse história de esquizofrenia.Algum parente longínquo que se suicidara por não agüentar a pressão...Não achei nada. Nada que justificasse aquela aparente loucura, ao menos geneticamente.
Eu a apelidara de Ângela.Nem sei por quê.Continuava a me atormentar. Cruzava a rua onde deixava o carro para pegar o metrô, e tinha obrigatoriamente que passar pela calçada da vitrine.
Um dia, fiz de conta que não ia olhar.Antes de acabar a vitrine, fui obrigado a olhar : ela aproximara - se do vidro e colara o rosto nele, fitando-me com tanto afinco que não acreditei. Seus olhos brilhantes penetraram-me por horas, pelo dia inteiro.Você não teria olhado?
Entre a vontade de vê-la e a curiosidade de descobrir se estava alucinando, olhava-a todo dia. Naquele dia, aí estava ela : tinha saído do seu lugar habitual e colado o rosto no vidro,para que eu a olhasse. Ninguém passava nunca nessas horas, ninguém via o que eu via...
Nos dias em que não passava por lá, a coisa piorava. Eu ficava avoado o dia inteiro, só torcendo para que o tempo passasse rápido, me encontrava de repente escrevendo "Angela" nos papéis, como na época adolescente. Só pensava em chegar a hora de vê-la, na manhã seguinte. Passar noutro horário?
Improvável. Era como trair o nosso encontro. Era arriscar numa questão complicada : a calçada cheia de gente, as funcionárias da loja vestindo-a para o dia seguinte, outros olhos olhando-a. Não saberia o que fazer. Nunca arrisquei. Não fazia parte de nosso código.
No dia fatídico de vinte e quatro de dezembro, eu já separado da Vivian há meses, e ainda apaixonado pela Ângela, passei de manhã, como sempre, pela calçada (adorava ver os modelos diferentes que usava). Ultimamente a gente só acenava com a mão e ela sempre sorria para mim: assim eu tinha certeza de que estávamos juntos, e de que a nossa loucura continuava.Mas naquele fatídico vinte e quatro de dezembro, eu passei e ela não estava. Fiquei como um louco, voltei várias vezes antes de ir à estação : não conseguia acreditar.O calor agora levaria a culpa se eu, num ataque de raiva, quebrasse o vidro. Colei o meu rosto no vidro da vitrine, pensando que ainda a acharia, mas... nada! Havia outra, que nada tinha a ver com ela, e que não me via.
Sabia que tinha que tentar manter a racionalidade.Como? Perguntaria na loja? Estava fechada. Eu tinha horário rigoroso para chegar à redação. Fiquei como anestesiado a manhã inteira. Não entendia o que estava acontecendo.
O diretor me chamou, e fui à sua sala.Entregou-me um cartão que nem olhei, e disse: "ligue. Você trabalhará desde hoje com um fotógrafo, para que possa somente se dedicar a escrever as reportagens". Relutei um pouco : além de gostar de trabalhar sozinho, eu adorava fotografar também.
"Você acha que minhas fotos são ruins, é isso", eu disse.
-Não é isso,apenas você é profissional da escrita. E muito bom.Quero o mesmo nas fotos e o jornal tem condições de bancar- disse o Abelardo.
"E vai logo, que começam hoje", acrescentou. "Aliás, talvez nem precise ligar, porque já marquei para que viesse te conhecer. E você demorou, então acho que já está por aí".
Saí da sala. Confesso que não gostei. Mas estava anestesiado, e quem mandava era ele.
Ao chegar à minha mesa, não acreditei. Paulo, o colega da mesa ao lado, disse: "aí está ele!"- apontando para mim.
"Ésta é a sua nova parceira, Edú, ela vai trabalhar com você!"
Virou-se. Fez um "sim" com a cabeça. Era idêntica. Era ela. Estendeu a mão : "Oi, muito prazer. Sou Ângela, a fotógrafa".