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cronicas-->COVARDIA -- 15/10/2004 - 01:26 (José Renato Cação Cambraia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
COVARDIA

Existem coisas que nos arrependemos muito rápido de tê-las feito - na verdade praticamente instantaneamente depois. Comer um cachorro quente é um exemplo dessas coisas. Antes, aquele pacote quentinho e cheiroso que desperta a fome nos parece uma iguaria dos deuses. Na metade, pensamos "que meleca" e, no final, "meu Deus, o que foi que eu fiz?".
Não sou muito de me arrepender nas coisas que faço. Principalmente quando se trata de comida. Afinal, nada pode ser tão ruim que um chocolatinho de sobremesa não resolva. Quando o assunto é comida, aliás, tento sempre expandir meus sensores, experimentando novas sensações sem medo.
Claro, já tive minha fase de rejeitar cebolas "porque me davam a impressão de estar comendo insetos" e de reclamar, com voz desafinada, que "odeio bacalhau". Tsc, tsc... típico do gosto culinário de um adolescente. Graças a Deus (ou talvez a Baco, sei lá), aos dezesseis anos, comecei a entrar no grande universo da glutonice e das suas maravilhas pecaminosas, como as carnes gordurosas, a pimenta-do-reino, as frituras, os doces com excesso de leite condensado e creme de leite, etc.
Desde então, não rejeito experimentar nada. Carnes exóticas, frutas estranhas, vísceras, músculos inusitados, embutidos de carne ou de sangue, bichos esquisitos do mar, répteis, mamíferos, qualquer coisa.
Vejam algumas das coisas diferentes que me lembro de ter comido: um cozido de tatu, que me pareceu uma mistura de lombo de porco com peito de frango; bochechas de porco na brasa, uma carne escura, macia e suculenta; uma enigmática caldeirada de enguias, um prato complicado e esteticamente não muito agradável - mas delicioso; no mesmo dia, enguias à milanesa, que me lembrou lambari frito; murcelas, um tipo de linguiça com sangue de porco e pão; sarrabulho, que é um dos meus pratos favoritos - vísceras de porco cozidas no sangue e vinho - o pulmão é algo realmente especial, uma vez que os alvéolos se enchem de molho... demais!; sarrabulho de cabrito, que é equivalente ao de porco. Fora os mais tradicinais, como língua de boi com purê de batatas, dobradinha (oh, yeah!!), chouriço, fígado, rabada...
Mas, na minha tentativa de eliminar completamente meus escrúpulos gastronómicos, eu já cometi uma horrível falha. Um erro pelo qual me arrependo amargamente, o qual nunca serei capaz de reparar. Uma mancha na minha reputação de desbravador de sabores, uma mácula no fundo da minha consciência que me sinto obrigado a revelar agora. Alguns dirão que isso é uma terrível confissão, outros que não passa de uma jogada de marketing para levantar a audiência. A verdade é que não posso mais conviver sozinho com isso. Espero que vocês me compreendam e não me atirem pedras.
Aconteceu na Bahia. Mais precisamente no Arraial d´Ajuda, ao sul do estado. Eu e meus camaradas estávamos acampando (coisa terrível!) na praia. Um francês colhia ouriços do mar como se fossem preciosidades (um ouriço do mar é uma bolinha preta cheia de espinhos, que machucam muito quando se enfiam na nossa carne).
Conversando com o sujeito, descobrimos que aquilo era uma das iguarias mais caras da França. Tipo uns 30 dólares cada um. Jogou a sacola cheia de ouriços vivos (bom, aquele bicho vivo ou morto tem a mesma animação de uma pedra). Sacou um canivete e abriu um deles no meio. Jogou limão e mandou o recheio goela abaixo diante de nossos olhos estupefatos.
Então ele nos ofereceu um. Eu, que já havia iniciado minha carreira gastronómica e adquirido uma certa fama, peguei o meio ouriço animado e olhei dentro do bicho. Imagine o seguinte: uma meia esfera escura e espinhenta com uma gosma amarelo-limão, verde e linhas pretas. As linhas pareciam minhoquinhas negras no meio de - desculpe - catarro. Joguei o limão e tentei pensar em outra coisa (cavalos selvagens correndo na relva - um avião fazendo acrobacias - uma dama de companhia refresca sua senhora numa tórrida tarde de Veneza, enquanto seu amante adormece deitado sobre suas coxas - prova de resistência dos materiais...). Mas não consegui. Aproximei o ouriço da boca, mas a gosma foi mais forte. Voltei a provavelmente deliciosa iguaria pro monte, cabisbaixo e derrotado.
Eu confesso, me acovardei. Não sei o que me aconteceu. Talvez o francês tenha me assustado, pois fazia muito barulho ao comer, chupando exageradamente as melecas. Ou talvez eu ainda não estivesse pronto mesmo, e hoje a história seria diferente. De qualquer forma, percebi que esse seria o meu destino, carregar essa vergonha e esse arrependimento por toda a minha vida. E desde então venho trazendo comigo essa maldição, da qual não consigo me livrar.
Essa é minha cruz. Carregarei até o fim da minha vida o remorso pelo infame dia em que não tive coragem de experimentar ouriços vivos com limão...
Ou até eu viajar pro Arraial d´Ajuda de novo, claro.

Renato Cação Cambraia é glutão profissional, mas odeia cerveja, alface e amendoim torrado.
(BECO 57 - sei lá a data)
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