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Contos-->O Fontes -- 23/02/2001 - 11:17 (Carla de Castro Maia) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Quando alguém lembrava que o Fontes fora um homem elegante, fatalmente se escutava pelo menos uma voz espantada “Quem, o Fontes?”. E realmente quem visse aquele tamanho de homem tentando equilibrar a gordura, numa cadeira do restaurante do Mané, teria dificuldade em associar a imagem à de alguém elegante.
A bem da verdade o Fontes não comia, ele devorava, vorazmente. Certa vez, no restaurante do Mané, cuja especialidade era a feijoada, um garçom novato, o José, servia as mesas, distribuindo sorrisos por todo o lado. Quando colocou as travessas na mesa do Fontes, seu sorriso se apagou. O olhar do Fontes foi da travessa ao rosto do José e ali se manteve estático. José não sabia para onde olhar, nem o que fazer, até que, em tom titubeante, perguntou se faltava alguma coisa. Fontes vociferou que ele era um incompetente e exigiu a presença do Mané. Logo, o infeliz garçom aprenderia que para seu Fontes se servia na panela.
Como em cidade pequena, pouco ou nada acontece, qualquer tema era destrinchado em minúcias. Estava-se em pleno inverno e na pequena cidade praiana, pouco havia a se fazer, a não ser esperar o verão e com ele, o trabalho grosso. Foi assim que surgiu, numa roda de comadres, não uma, mas duas novas pautas. Faziam-se os preparativos para a quermesse e as fiéis beatas estavam entregues aos crochés e bordados. A conversa no salão da igreja seguia insossa, quando a certa altura D. Adelaide, que até ali se mantivera silenciosa, soltou a bomba: “O Fontes e a Léia vão se separar.” Todo mundo silenciou. Escutou-se um arrastar de cadeiras. Todos os rostos, agora mais próximos, aguardavam ansiosos. Mas antes que D. Adelaide continuasse, D. Emília, que sempre fora a autora das novidades perguntou, sem esconder o despeito, como ela soubera. D. Adelaide, nervosa, se embaralhou nas palavras.
D. Adelaide – Na igreja. A empregada da Léia estava contando para padre Nilo.
D. Emília – Mas ela contou assim, pra todo o mundo escutar?
D. Adelaide ficou mais aflita com o tom de voz de D. Emília e pediu com gestos aflitivos que ela falasse mais baixo.
D. Adelaide – Eu fui falar pro padre Nilo que tem um lugar no chão da igreja que faz as pessoas escorregarem, mas as portas do escritório estavam abertas e aí eu tive que escutar. Padre Nilo falou que ia dar um jeito naquilo.
D Emília – Já era sem tempo. O último a passar vergonha foi o coitado do seu Pedro, que além de tudo ficou lá de quatro, mostrando pra todo o mundo e pros santos o que não devia.
D. Adelaide – Não, no chão não. Padre Nilo vai dar um jeito no casamento. Ele vai falar com os dois. Ficou bravo com a Léia.
D. Conceição – Mas isso é porque ele não sabe das coisas. Padre, né?! Coitada da Léia! E lá tem jeito de agüentar um elefante do tamanho do Fontes? É o mesmo que não ter marido.
D. Adelaide – Eles dormem em quartos separados. Ali não tem mais nada.
D. Mariana – Mas nem tem como ter. Já imaginaram aquele tamanho de homem pelado?
D. Vitória – Cruz credo. Deve ser a coisa mais feia de se ver.
D. Mariana – E o homem nem ‘coisa’ mais tem. Aliás, nem ele vê a ‘coisa’. A barriga não deixa ele ver.
D. Mariana, uma piadista nata, parecia estar olhando algo que só ela enxergava. Não parava de dar risada. As amigas riam no embalo. Com a fala entrecortada, ela foi descrevendo o cenário.
“Imaginem o Fontes peladão, na frente do espelho querendo ver a “coisa”. Ele bem que tenta. Mas a banha é tamanha que ele levanta aqui, cai ali e nada, nem a ponta do “negocinho”. Faz tempo que ele não usa, então o “negócio” tá lá, pequenininho, pequenininho. E homem pra sentir que é homem tem que ver, senão fica preocupado.”
Foi assim que D. Mariana inventou o tal do “peniscópio” para felicidade dos gordos. A história se espalhou, e toda a vez que o Fontes passava, naquele passo que a gordura permitia, a gargalhada era geral. Depois as pessoas iam espiar os pecados junto ao padre Nilo, que também não deixava de tirar sua casquinha, entre pedidos de perdão e benzeduras.
A história da separação do casal deu muitas e frutíferas matérias. Logo souberam que a conselho do padre Nilo, D. Léia decidira dar mais uma oportunidade ao marido, com a condição dele ir ao médico para iniciar um regime. E lá foi o Fontes. Ele escutou atento o discurso - colesterol, veias entupidas, problemas do coração -, mas foi só quando o Dr. Alcides lhe mostrou a lista de alimentos proibidos que o Fontes sentiu o tamanho do drama.
É preciso que se diga que o Fontes tinha chegado a um momento da vida, ou melhor, da gula, em que tudo em torno dele funcionava em função da comida, até mesmo nomes e rostos. Quando encontrava D. Emília, via na frente a sua moqueca de peixe; com D. Candinha ele se desfazia em sorrisos, ah, aquela torta de atum, cuja massa se derretia na boca... um tempero, mas um tempero e o Fontes se derretia pra ela, sentindo na salivação o gosto. E o Melo? Que fazia um molho de pimenta para acompanhar o churrasco que era de chorar de emoção. A feijoada do restaurante do Mané então... Mas que feijoada! Agora o melhor leitãozinho assado era da sua Léia. O leitãozinho assado da Léia era inigualável. E o Doutor vinha com aquela, que ele tinha que parar de comer comida condimentada, diminuir a quantidade e nada de panelões de feijoada?! Como viver desse jeito? Mas ele fizera promessas a Léia.
Fontes saiu do consultório com a imagem de todos os pratos bailando em sua mente, enquanto sentia o mundo desabar. Ele se arrastou pelas ruas como se ao invés de dois panelões de feijoada, tivesse comido três. Chegou ao restaurante do Mané e fez seu pedido -, o derradeiro. Fontes olhou o prato, puxou a panela pra mais perto e comeu em meio ao sofrimento. Pela primeira vez na vida, ele se preocupava em comer devagar. Cada vez que se servia, olhava o interior da panela, receando ser aquele o último prato. Olhava a comida com olhar já de saudade. Chorava entre garfadas, erguia o copo de cerveja e o beijava antes de cada trago. Os amigos em volta mantiveram-se silenciosos, solidários com sua tristeza. Em meio às lágrimas, Fontes lhes perguntava como poderia viver sem o leitãozinho da Léia? Ele “precisava fazer o regime, precisava resistir à tentação”. No final, Fontes deitou a cabeça na mesa e chorou. Quando José foi pegar as louças, Fontes se abraçou à panela e soluçou como uma criança. Os amigos, comovidos, prometeram então que o ajudariam na empreitada. Ninguém falaria de comida na frente do Fontes, nada de patuscadas nem cervejadas. Agradinho ao Fontes só na base do peixinho cozido com batatas e brócolis, temperado com azeite.
Foi um Fontes corajoso, empenhado em vencer a luta contra a gordura que passou a desfilar pela praia em caminhadas lentas mas obstinadas. Todo o mundo na cidade elogiava. As pessoas o paravam e o cumprimentavam por sua coragem, como se o Fontes fosse um herói da guerra. No restaurante do Mané, todo o mundo aplaudiu quando o Fontes fez o pedido alto e bom som “Grelhado de peixe com brócolis”. José, o garçom, coitado, não entendeu nada. Ainda na dúvida, já tendo dado uns passos, voltou e arriscou “Seu Fontes, é pra trazer a panela da feijoada?”. Foi um herói injuriado que se levantou para perguntar ao infeliz garçom se ele era surdo.
Todas as notícias corriam a cidade e chegavam até D. Léia, que aguardava ansiosa o dia, em que se notariam os efeitos do regime. Ela voltara a paparicá-lo com os mimos de antigamente. O prato quentinho na mesa, com todos os floreios que Léinha gostava, a toalha bordada, as taças de cristal, os talheres de prata... Para completar enchera a casa com fotos do homem com quem se casara. Ela mesma, uma das grandes beldades da cidade, conservava sua beleza, agora madura. Fontes era a imagem da felicidade.
Todos os dias na Prefeitura, no mesmo horário, Silas, o guardinha pretinho, abria a porta da sala do Fontes, que era chefe do departamento de pessoal, e gritava com sua voz esganiçada: “Seu Fontes, o peixinho fresco já chegou”. Um dia Tereza, a chefe do arquivo, foi comentar com seu colega, o Vieira “Mas onde o Fontes consegue peixinho fresco nessa época do ano, todo o santo dia?” Todos ficaram curiosos. O Fontes respondeu que não havia segredo, o peixinho vinha de fora, era muito caro mas “Regime nunca foi barato”. Eis que a esposa do Vieira pede um quinhão do famoso peixinho. Mais tarde, quando o Vieira escutou a voz do pretinho, saiu disparado da sala e tentou um arranjo com o rapaz. Com uma nota na mão, pediu para Silas afanar um pouco do bendito. Silas mostrou-se admirado: “O senhor também, seu Vieira?”. Entenda-se que o espanto do pretinho tinha fundamento. Afinal, em termos de elegância, Vieira estava bem mais próximo das ‘macrobanhas’ do Fontes que do corpinho do Bianchinni. Foi então, com aprazível surpresa, que o Vieira escutou Silas dizer que poderia “quebrar o seu galho”. Silas voltou em seguida, anunciando o segundo peixinho fresco do dia. O Vieira foi correndo apreciar seu tesouro. E foi tamanho o espanto quando abriu a caixa, que todo o mundo veio correndo.
E, como sempre acontecia, a cidade inteira ficou sabendo porque razão o Fontes não diminuía uma grama. A indignação se estendeu a seus dois cúmplices, Silas e, pasmem, José, o garçom, que quisera, pelo menos uma vez, acertar a bola na rede. Receberam a devida descompostura. Quanto ao Fontes, coitado, foi afogar a vergonha numa baciada de torresminho e chope num botequinho escondido. Quando voltou para casa sua Léia havia partido.
Um dia recebeu a intimação, para comparecer na vara de família. Quando o juiz viu aquele tamanho de homem entrando com dificuldade pela sua porta, não pode deixar de dar razão a D. Léia. Mas cumpriu seu papel, tentando uma reconciliação. D. Léia não falou nada, limitou-se a negar com a cabeça. Na hora de assinar, o Fontes caíu em prantos, levantou-se de sua cadeira e ajoelhou, com assombrosa agilidade, aos pés de D. Léia “Não me deixes, Léinha, eu te amo, como que eu vou viver sem ti, sem os leitõezinhos que preparavas com tanto amor pra mim?”. D. Léia abriu muito os olhos, como se só agora desse conta no que seu marido se transformara. Lentamente ela se levantou e saiu triste da sala, sentindo pena daquele monstro disforme, em quem não reconhecia o homem bonito com quem casara.
Dois anos e infinitas patuscadas depois, o Fontes se foi, fulminado por um ataque de coração na banheira, enquanto emborcava cerveja atrás de cerveja como era seu costume.
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