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Artigos-->Sou eu, Tubi, o teu tubérculo! -- 24/03/2001 - 19:58 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Pestes são não apenas o outro lado da moeda, mas também os motores da civilização



Por Rudolf Stöber

Trad.: zé pedro antunes



"Explicação para a peste que insistia em acometer o gado. Aos bovinos, Apolo apresentou um problema que eles não conseguem resolver."

Georg Christoph Lichtenberg



Nos dias que correm, falta-nos sem dúvida um Lichtenberg, que espetasse o desamparo do gado, dos homens do campo e da política ante a epidemia de febre aftosa e outras calamidades. O que não teria escrito o velho gozador sobre um vírus como o "I Love You" ou a doença da vaca louca? Talvez: "Heróstrato escreve cartas de amor" ou "Doença da Vaca Louca: esponjosos subsídios para esponjosas higienes animais"?

Até os tempos de Lichtenberg, tudo era tão simples. As pestes faziam sentido. Eram sentenças divinas. Pestes constavam do repertório habitual de cenários para finais dos tempos: "Vêde, hei de lançá-los no leito dos enfermos, e àqueles que convosco praticam imoralidades, eu os precipitarei em grande sofrimento ... seus filhos, eu os haverei de matar por meio de uma peste", ameaçava – em alusão à décima praga sobre o Egito – a pregação de João de Pátmos.

Então, as pestes não eram senão um dos flagelos da humanidade. O Senhor podia escolher entre várias sanções. Apenas a quinta das dez pragas do Egito, com as quais Javé punia o faraó, era uma peste bovina. Mas o coração do dominador continuava ainda empedernido em relação à elevada cultura egípcia. Foi somente depois da última provação, a morte do primogênito – por trás da qual sempre se pode supor uma peste que teria acometido os humanos – que o faraó deu liberdade de movimentos aos israelitas.

As pestes eram os flagelos de Deus. Aquele, em cuja memória as pestes não reavivavam a idéia da conversão, pensava no mínimo em fuga. No melhor dos casos, para fora das cidades estreitas, de ar pestilento, emporcalhadas, em direção ao campo.

Para a maior parte dos homens, entre a Idade Média e a Era Moderna, peste e epidemias eram sinônimos. O “Decamerone” de Boccaccio tem como pano de fundo a peste numa propriedade rural nas proximidades de Florença. Mas, indo em contra às interpretações pias, a jeunesse dorée não praticava a renúncia, nela, antes, intensificava-se o apetite pelos prazeres mundanos. E os pobres não possuíam propriedades rurais, para as quais pudessem transferir-se de volta. Em 1561, Etienne Ferrieres, um cidadão de Toulouse, escreveu que a peste teria “acometido sempre tão-somente as pessoas pobres ... Deus, em sua misericórdia, teria se comprazido com isso ... Os ricos se precavêem."

A última epidemia de procedência divina - a princípio parecia sê-lo -, foi a Aids. Tranqüilizavam-se tementes a Deus e os auto-complacentes, há não mais que década e meia, com a idéia de que só os homossexuais seriam castigados. Foi positivo. Desde então, muita coisa mudou. Os heterossexuais são acometidos da mesma forma que os homossexuais, e os antes de mais nada auto-complacentes são duplamente atingidos. E como se poderia juntar a explicação da Aids como sentença divina ao fato de que, sobretudo os mais miseráveis dentre os pobres da África, sejam os que passaram a merecer um máximo em sofrimento – por não poderem pagar os altos custos dos medicamentos?

Quando, em novembro de 1776, Lichtenberg ironizou os bovinos, a humanidade começava a se libertar das garras das epidemias, tomadas como de procedência divina. Ao final do século XVIII, com as primeiras vacinas, buscava-se deter enfermidades cujas causas ainda não haviam sido localizadas. Nos séculos XIX e XX, a medicina especializada fez progressos velozes no combate às epidemias. Com as teorias relativas a emanações pestilenciais e miasmas não podendo mais ser sustentadas por muito tempo, a olhos vistos, os agentes passaram a acometer os seus descobridores. Em um de seus sketchs, o humorista Otto [N. do T.: artista/cabaretista bastante popular na Alemanha nos últimos 30 anos] pespegou-lhe um tom de infantilidade: “Oi, Robi, sou eu, Tubi, o teu tubérculo!", gritava um boneco sob o microscópio.

Mas agentes, por si sós, não fazem uma epidemia. Ou eles têm de chegar até o ser humano, ou o ser humano tem de chegar até eles. No ano de 1348, foi de um navio procedente do Mar Negro que a peste desembarcou no porto de Gênova. Ao longo das rotas do comércio, ela passou a se disseminar. Assassinato e morte por espancamento aos presumíveis culpados, os judeus, acompanharam a epidemia em todos os seus passos. Colunas de fumaça fizeram escurecer o céu.

Importação e exportação ativas marcaram a época dos descobrimentos. Em suas expedições de conquista, os europeus não trouxeram para casa apenas tesouros de terras longínquas, antes empestearam continentes inteiros com os presentinhos trazidos da viagem. Contra a gripe, é verdade que os europeus não estavam imunes, mas suficientemente municiados. Com ela, supõe-se, morreram muito mais nativos americanos do que todos os conquistadores juntos teriam pretendido matar. Mas não seria essa a punição do Deus dos cristãos para a prática da idolatria? Ou não estaria o Senhor sentenciando antes os colonizadores, entre outras enfermidades, com variantes agudas da sífilis, que foram rebocadas do novo mundo, e contra as quais os europeus não dispunham de nenhuma resistência? Podem-se observar ainda, em doenças altamente patogênicas como a febre do Lassa- ou do dengue, o vírus ebola ou outros agentes tropicais, os mesmos padrões. Humanos e bovinos, os conquistadores das últimas intocadas florestas virgens, dão de cara com agentes de há muito isolados e não dispõem de meios para lidar com eles. Das férias, o viajante traz então, na bagagem, os seus presentes, que passam sem serem percebidos pelos fiscais aduaneiros.

Num sentido metafórico, o mesmo se pode dizer dos vírus de computador: não podem contaminar-se os aparelhos isoladamente (stand-alone computers). Carece-se, pois, da comunicação, e de um vacilo da vigilância sanitária, no caso, da troca de dados, velhos programas de proteção antivírus e firewalls esburacadas. Mas, diferentemente dos vírus e das bactérias do meio-ambiente biológico, os parasitas computacionais (ainda) precisam ser conscientemente lançados em viagem. E tem mais, não há computadores subnutridos, sem uma casa de campo à disposição na Toscana. Por isso, os paralelos entre os universos animado e inanimado não nos podem fazer avançar tanto.

Se tão pouco mudou, o que fazer contra as epidemias? De novo, notavelmente, os motivos básicos, desde a peste até a Aids, se igualam. As epidemias são lidas como chamados à conversão. O que, nestes nossos tempos racionais, já não quer dizer mais agir de acordo com a vontade divina, significando, muito mais, mudança de comportamento sexual. “Sexo seguro”, diz a divisa, sendo mais segura a renúncia total. O que já seria mais amargo.

No caso da epidemia da vaca louca, as advertências são semelhantes. É verdade que o Ministério de Proteção ao Consumidor não exortou ninguém à renúncia aos alimentos. Mas já faz um bom tempo que o Ministério da Agricultura deixou de se sentir no dever de oferecer proteção aos consumidores. Além do que, anos de propaganda nos ensinaram, a carne é “um pedaço de energia vital” [N. do T.: conhecido slogan publicitário alemão]. As epidemias da febre aftosa e da vaca louca vêm justamente corroborar as falas dos portadores de advertências. Agora a conversão pode ser pregada com facilidade: Da indústria agrária teria de surgir uma agricultura ecológica. Qualidade em vez de quantidade.

A argumentação é, no caso, esclarecedora, enquanto os progressos da pesquisa não alcançaram mais que um alívio temporário. Com os meios de combate disponíveis no século XX, dos antibióticos ao DDT, a humanidade tentou assumir o controle sobre os agentes e seus transmissores. Os êxitos de tais estratégias, inicialmente pronunciados, pouco a pouco foram compondo um panorama de insucessos. Tanto na medicina veterinária como na humana, o que se tem é o surgimento de uma enorme quantidade de gérmens multi-resistentes. Nisso igualmente, quem o quiser, poderá ver uma condenação divina. Quem o formula de um ponto de vista neutro, tem a dizer: a natureza contra-ataca.

Mas as respostas às epidemias têm sido, até aqui, desmesuradas e arcaicas. Com os pogroms contra o gado, uma vez mais, não se atingem senão os inocentes. Tampouco foram capazes de deter a peste os pogroms contra os judeus, por mais que suas medidas saneadoras acompanhassem a disseminação da calamidade. Portanto, também hoje: “Aos bovinos, Apolo apresentou um problema que eles não conseguem resolver.”



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Rudolf Stöber é historiador e cientista da comunicação na Universidade Livre de Berlim.



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