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Contos-->LÁ PRÁS BANDAS DO NABILEQUE -- 05/04/2007 - 20:17 (Daniel Viveiros) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Estava já há seis dias em Nabileque, uma pequena vila-ilha que não foi inundada na grande cheia de 1974 no Pantanal, por situar-se no sopé do Morro do Bugio.
No centro-sul da região do Negro-Miranda, ao vilarejo só se chegava embarcado, distante cerca de quatro dias da cidade mais próxima, Corumbá.
Seus casebres de pau-a-pique e barro escuro espalhavam-se desordenadamente pela encosta, com quase uma centena de moradores, na maioria descendente dos quase extintos índios Guatós e caboclos vaqueiros, conhecidos por bugres, que ficaram após a falência das fazendas da região, inundadas grande parte do ano.
Eu prestava serviço de guia e segurança a uma turma de topógrafos que fora refazer uns marcos divisórios, deixados por Rondon lá pelos idos de 1905, quando levantou linhas telegráficas em postes de aroeira para ligar Cuiabá à Corumbá.
Sem ter o que fazer no domingo de folga, peguei um dos barcos com motor de popa 25 Hp e fui conhecer o cemitério dos extintos Paiaguás, acuados e exterminados por terem se aliado aos Guaikurus contra os primeiros portugueses.
Como fazia um sol de 40 graus e ninguém mais se animou na empreitada, fui sozinho cortando corixos do Taquari Velho por uns cinco quilômetros, conforme orientação do Nhô Timico, velho de idade milenar nascido e escarrado no local.
Amarrei o barco num galho de nhambi e andei uns mil e quinhentos metros mata adentro, ora terra ora com água até os tornozelos, característica comum da estiagem pantaneira, em direção ao sul do Bugio e sempre atento à tocaia de alguma sucuri faminta ou onça-pintada.
Com meu recém adquirido facão guatemalteca Solinger fui abrindo picadas e marcando o caminho da volta; sou matuto mas não sou trouxa, pois já dizia o poeta Braun “em bruxas não acredito, pero que las hay, las hay”.
A curiosidade que me picava não era propriamente o cemitério, pois índio não deixa cruz nem lápide de mármore com epitáfios prá ser lido; o que me movia era a história há muito falada de que um casal de velhinhos morava no campo-santo, ao pé de um jatobá secular.
E foi pela tal árvore que me guiei, as vistas postas na copa que se erguia majestosa em meio à vegetação típica do cerrado.
Fui recebido por um vira-lata raquítico, que mal percebendo minha aproximação começou a latir como se visse fantasma, o que não seria de estranhar, dadas as circunstâncias onde fora levantada a pequena choça de varas justapostas com telhado de folhas trançadas de bacuri.
Com os latidos, uma velhinha, já curvada pelos anos que trazia nos ombros, saiu prá me receber e pude perceber pela surpresa em seus olhos que há tempos não via viv´alma naquelas bandas, que não fosse seu velhinho.
- `Tarde! Falei com um sorriso amarelo de quem se sente intruso.
- `Tarde! Respondeu abrindo um sorriso de poucos dentes. Se abanque, seu moço;
disse-me apontando uns troncos de madeira cortados e enterrados na vertical, fazendo às vezes de banco, outras de mesa para destrinçar peixe e caça, pelo que percebi pelas marcas de machetadas e sangue seco.
Enquanto me apresentava como da paz, bati os pés no chão e percebi que em todo aquele local a terra era fofa, como se sob os meus pés houvesse mais espaço que terra.
- E o véio, foi pescá? Perguntei desinteressadamente estropiando meu português.
- Ôxi, morreu faiz mutcho. Disse enquanto secava as mãos em um trapo encardido
com o cão já deitando próximo aos seus pés.
- Toma um tereré? Perguntou, após ter analisado com o olho do tempo meu caráter bisbilhoteiro.
- Num carece de incomodá, vim pelo cemitério. Menti tentando naturalidade.
Percebendo meu desconforto pela falta de chão, informou-me que todo aquele sítio, num raio de duzentos metros, era o que sobrara dos Paiaguás, e a impressão que eu tivera era verdadeira, sob meus pés estavam enterrados em rasas valas coletivas centenas de guerreiros, velhos, mulheres e crianças.
Não quis ou não soube me dizer se morreram por epidemia ou em combate, pois a verdadeira história havia ido para o túmulo com sua avó, uma índia Guató que fora laçada prá amasiamento por um peão que chegou à região com a primeira leva de gado.
Enquanto a velha arrumava a erva-mate na cuia de chifre de boi, com o subnutrido cão em meu calcanhar fui dar uma olhada no terreno, com um medo medonho de afundar na ossada que se fazia de terra ou terra que se fazia de ossaria.
O terreno era incomum, diferente do barro preto e vermelho da região; com pouca vegetação e de cor cinza clara, dominava grande porção de terra e aqui e ali, no meu andar sem rumo, identificava alguma parte de esqueleto humano aflorando, um pedaço de fêmur, a metade de uma bacia, uma ripa de costela, um maxilar teimando dentes intercalados...
A terra parecia cuspir gente desencarnada, até de certo modo compreensível, pois muitas são indigestas nesta vida andeja.
Voltei para junto da velha meia hora depois, buscando o refúgio de quem está acostumada a dormir com defuntos, pois a sensação de tropeçar em ossos de gente era novidade para mim.
- Não se incomoda de morar sozinha? Perguntei com curiosidade verdadeira.
- Ála! Vôti! Tô só não. Meu véio mais o pajé Nhandipá-y e a índia Tibira-ê vêm tirar um dedo de prosa com eu todo atardecer, quando nóis toma a úrtima cuiada de tereré do dia.
Enquanto sugava a água quente com limão galego pela bomba de latão, tão velha que parecia disputar idade com a dona, pensei com meus botões já com o cabelo da nuca arrepiado, “Putz! Os defuntos tomam tereré nesta mesma cuia!
A tarde já ia morrendo pelas bandas do Passo da Lontra e as mosquitadas e borrachudos começavam a acordar nas guanxumas com o mesmo entusiasmo de meu desconforto; agradeci após cinco cuiadas de tereré, catei minha cartucheira e o Solinger, não sem antes recusar com um amistoso “carece não” um saco de bocaiúva que a velha me oferecia.
Saí a passos rápidos, com a sensação de que era escoltado por uma tribo, e com a impressão que me sopravam os cabelos da nuca; juro, acho que ouvi um tambor de couro de jaguatirica soando ao longe, e que o som cada vez se aproximava mais.
A volta foi rápida, como não poderia deixar de ser, e enquanto amarrava o barco numa espinheira defronte ao pequeno porto da vila, já quase refeito, dei-me conta do velho Timico, acocorado e pescando pacu com fruta de jenipapo no barranco.
- `Noite, Nhô Timico!
- `Noite, fío, incontrô o tar sumitério?
- Encontrei, agradecido; inté tomei umas cuiadas de tereré com a véia Mirtinha.
- Ála! Vôti! Qui ocê tá falano, ómi! A véia Mirtinha e Nhô Méru já morreram faiz uns vinte e tantos anos!
Passei o resto da noite com os olhos abertos, colados no teto da lona verde da minha barraca.
Fiquei atento, os olhos esbugalhados e abraçado ao meu Solinger, pois vai que durmo justo na hora que decidam, a véia, o véio, o pajé e a índia me retribuir a visita...

Daniel Viveiros®
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