Usina de Letras
Usina de Letras
19 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62282 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10451)

Cronicas (22540)

Discursos (3239)

Ensaios - (10386)

Erótico (13574)

Frases (50671)

Humor (20040)

Infantil (5457)

Infanto Juvenil (4780)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140818)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6208)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Àquele que me auto-ajuda -- 11/05/2007 - 15:09 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Todo dia ele abria os olhos e via o buraco no teto. “Preciso consertar isso”. Todo dia ele virava para o lado e alcançava o notebook. Sempre, dias após dia, armava o circo tecnológico de sua caixinha biprocessada, apertava um botão, abria o drive e encaixava o mesmo DVD com as mesmas imagens gravadas. Na tela, em alta velocidade auto run, saltavam cenas lindas de crianças lindas, velhos lindos, gramados lindos, belezas lindas. Em inglês, uma voz madura, mas linda, carregada de vida vivida como a voz do avô que nunca se conheceu, falava sobre o que é importante na existência. E sobre o que não era nada importante. Versos que lembravam aquele poema que talvez seja, quem sabe?, de Jorge Luiz Borges “se eu tivesse mais tempo, andaria descalço”, ou algum comercial com pretensões filosóficas de margarina light com fibras. O homem ouvia, sorvia, vivia cada palavra. Depois escovava os dentes, sorria um arco fixo e saía do quarto para tentar ouvir, sorver, viver a realidade. À noite, voltava para o computador e gostava ainda mais do comercial pois lá fora era tudo muito cinza.
Sabe-se lá em que dia, coisa sinistra: o homem acordou, deu bom dia para o buraco no teto, virou para o lado e abraçou o computador. Abriu o bolsinho da maleta puxou o DVD. Puxou, mas o DVD não veio. Abriu outro bolso, e outro, e mais outro, e nem um bit de DVD. Nada embaixo da cama. No sofazinho, nem sinal. Vasculhou, revirou cada canto real e virtual do quartinho. Cena de filme B que o detetive invade a casa do bandido. Latas de guaraná, recortes de revista, rascunhos de cartas, roupas ressuscitadas do limbo das roupas perdidas, papéis de chocolate, elepês sem vitrola. Tudo voando. Tudo, menos o DVD.
Perdido no caos do quarto e tentando se achar no caos da cuca, o homem olhou para o teto. “Deus do cé... o buraco!” Quem sabe o DVD tivesse escalado as paredes e entrado no buraco para fazer um ninho de devedezinhos? Numa torre de cadeiras e livros velhos, o homem alcançou o buraco e, avestruz invertido, enfiou a cabeça no vão. Ratos, teias, poeira e revistas velhas. Tudo voando. DVD que é bom, nada.
Tentou escovar os dentes enquanto puxava da memória algumas frases do texto do comercial. Misturadas à pasta, as palavras viravam espuma e desciam cuspidas pelo ralo. Gosto de tormento e mentol. “O que eu faço sem o DVD?!”. Foi para a rua, munido de caneta e papel. Sentou no meio-fio, rabiscou palavras inseguras e fugitivas. “Quando você acreditar mais em si mesmo, se olhar para o pôr-do-sol e o mundo girar...e as pessoas se amarem... e os pássaros voando”. Talvez se fechasse os olhos pudesse enxergar cada letra na sua cabeça e abraçar as palavras certas com força para soltar nunca mais. Olhos cerrados, as imagens nasciam e também alguns verbos e substantivos, até os importantes e pomposos adjetivos. Nasciam, piscavam e morriam antes do abraço sintático do homem.
“Alguém deve lembrar do poema!”. Afinal era um comercial famoso, premiado, batido e surrado na TV há uns dez anos. “Sai pra lá, doido! Vai pentelhar a mãe! Vê se me erra, peixe! Não me enche! Polícia! Fidapu!”. Os xingamentos eram pesados demais para um ser enfraquecido e carente do alto-astral fácil de cada dia. Num banco da praça, ao lado do louco oficial que mantinha os olhos fixos numa TV portátil desligada, o homem ficou largado por tempo suficiente para ganhar barba e perder peso. Na televisão do indigente, o comercial do DVD não apareceu.
Quem sabe quantos dias depois, um ancião, com cara do avô que nunca se conheceu, tocado pela imagem triste de um jovem até lindo , até distinto, até normal e ali deitado no chão frio, aproximou-se e estendeu a mão da compaixão. O homem olhava para o céu pelo buraco entre as copas das árvores. Virou o rosto e viu a mão enrugada que esperava sem pressa. O ancião sentiu vontade de dizer algumas palavras de força para o moço sofrido. Agachou-se e contou um pouco sobre coisas que achava importante e sobre outras que não tinham a menor importância. Principalmente, contou como fez para vencer os muitos obstáculos de uma vida longa. “Tudo é pequeno diante da grandeza de um ser vivo, filho.”
Os olhos do homem brilharam. Enfiando a mão no bolso da calça, catou a caneta e o papel e suplicou para que o velho repetisse e anotasse cada uma daquelas frases tão sábias. Hesitante, mas movido pelo dó, o ancião escreveu o que pôde lembrar, e até fez um poeminha livre bem simpático. Depois de tirar uma foto no lambe-lambe, ele e o velho, o homem voltou feliz para casa. Na manhã seguinte, acordou, conferiu o buraco no teto e virou para o lado. Encontrou o papel com o poema escrito pelo ancião. Leu em voz alta até decorar. Escovou os dentes e sorriu um arco fixo para a foto do seu salvador pregada no espelhinho de moldura laranja.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui