Usina de Letras
Usina de Letras
129 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62208 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10356)

Erótico (13568)

Frases (50604)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140795)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Liberdade -- 16/05/2007 - 16:27 (Antonio Jurandir Pinoti) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Liberdade









Na primeira curva da estrada Mariane pôs o rosto para fora da janelinha do caminhão. Olhou para trás displicentemente, deu um leve suspiro e olhou as copas das araucárias nas colinas da cidadezinha. Ela odiava aquele lugarejo de Santa Catarina. Por isso, embora um pouco assustada com a partida, estava feliz. Não lhe saía da cabeça a frase que havia lido numa revista: “Eu adoro as putinhas loiras do sul. Aquele sotaque... Pago qualquer preço!”. Esse “Pago qualquer preço” a inibia de ralhar com o motorista que lhe passava a mão nos seios. Ela apenas dava uns gritinhos e dizia sem muita convicção: “Pára, meu, pára.”
*
A viagem até São Paulo levou 2 dias de sol a sol. A noite eles passaram juntos num motel vagabundo da BR 116. Chegaram ao mercadão central numa quinta-feira de noitinha. O motorista deu a ela três notas de cinqüenta reais e indicou-lhe o endereço de um hotel perto da estação Luz do metrô. “Lá só tem gente fina”, encorajou-a. Mariane seguiu para o hotel. Ela não sentia raiva do caminhoneiro por ele tê-la desvirginado. No fundo, até gostou do jeito extrovertido do motorista, das gargalhadas que ele dava após contar uma piada.
*
O gerente do hotel, com os olhos avermelhados e mordiscando um palito de fósforo, insistia nas perguntas: “Cê é gaúcha?” “Cê tem mesmo dezenove anos?”, ao que ela respondia com a carteira de identidade na mão: “Sou catarina. Tenho quase dezenove anos.” Entre os dois nasceu uma estranha cumplicidade, embora Mariane tenha sentido uma pontinha de ódio do gerente assim que bateu os olhos nele. Ela deixou claro que não pretendia fazer programas no próprio hotel. Queria trabalhar nas ruas, conhecer bem a cidade. O gerente concordou, mas advertiu-a dos perigos que ela iria correr. Por toda parte havia traficantes, ladrões, assassinos, policiais corruptos. Sem mais nem menos, o homem segurou-a pelo braço e impôs-lhe como preço da segurança pessoal metade do dinheiro que ela trouxesse no fim do “expediente”, como ele disse com certa ironia. “Conheço os home, a vida, a malandrage. Não tente me enganá, senão... Cê sabe como é, né?”.
*
No dia seguinte, ansiosa, Mariane entrou na estação Luz e comprou um bilhete múltiplo de 10. “É mais barato”, aconselhara-a um travesti na portaria do hotel. O anúncio das estações do metrô em direção ao centro provocava um estranho fascínio na cabeça da garota. “São Bento, Sé, Liberdade”. Deve ter sido o desejo de liberdade que a fez descer na última estação anunciada.
*
Sexta-feira, onze horas da manhã, o movimento de pessoas era intenso perto do Fórum, na Praça João Mendes. Um rapaz vestindo paletó de couro sobre a camisa semi-aberta, cabelos compridos, óculos escuros, cheio de anéis e com uma enorme corrente no pescoço aproximou-se de Mariane e disse-lhe secamente:
― Cê tá com quem?
A moça não entendeu a pergunta e respondeu que estava sozinha.
― Sozinha a puta que a pariu! Nenhuma aqui é sozinha, porra! Ou cê entrega o cara ou passa a ser minha, a me respeitá, sacou?!
Assustada, Mariane percebeu a enrascada em que se metera. O travesti do hotel a havia advertido sobre a barra-pesada que são os cafetões. O homem foi duro ao fixar o preço que ela teria que lhe pagar ― metade do valor dos michês, pago no fim dos programas. Em seguida, ele lhe entregou um celular e avisou-a que ficaria entre a banca de jornal e a floricultura vendo tudo. Ela que não tentasse enganá-lo. “Quanto mais cê trabalhá e cobrá dos otários, mais nós dois ganha”, disse o rapaz. Um ódio mais intenso do que aquele que sentira pelo gerente do hotel tomou conta da moça. “Menos de um dia em São Paulo e já tou nas mãos de dois pilantras, merda!”, ela pensou.
*
Mariane não fazia questão de transar com office boys, drogados, estagiários de Direito, advogados, bêbados. Um cliente chegou até a confessar-lhe que era promotor público e que odiava a esposa. Mas ela sentia nojo dos velhos. Logo dos velhos que lhe pagavam mais, que eram carinhosos. O cheiro azedo de suor e cigarro que eles exalavam, os rostos enrugados, a falta de dentes, faziam-na se lembrar dos colonos lá de Santa Catarina, daqueles homens pobres, iguais ao seu avô, aos seus tios, que à tarde voltavam para casa com as botas embarreadas. Os velhos a enojavam porque lhe traziam à mente um futuro que ela bem conhecia, e que por isso jamais quis para si. Uma vida apertada, sem graça, cheia de humilhações, sem roupas bonitas, sem geladeira, sem terra, sem nada. E as cantadas que lhe dava o filho mais velho do feitor? “Um dia eu volto e mato aquele piá filho-da-puta”, quase ela gritou.
*
Mariane não trabalhava à noite. Essa condição lhe fora imposta pelo gerente do hotel. “De dia é mais fácil de vigiá.” Ela se lembrava bem das palavras do homem. Uma semana após sua chegada a São Paulo, Mariane estava em seu quarto vendo novela quando bateram à porta.
― Quem é?
― Eu ― disse o gerente. ― Abre. Hoje temo que acertá as conta. São 7 diária. Tirando a segurança que cê já pagô ainda farta cento e vinte pau.
Ela bem que tentou argumentar que não tinha dinheiro, que havia gasto tudo que lhe sobrara. Comida, perfumes, condução, preservativos, o cafetão. Um soco no rosto atirou-a sobre a cama. Antes de cair ela esbarrou o braço nos controles da TV e a transmissão foi afetada. O aparelho começou a fazer um tshiiiiiiiiiiiiiiiiiii que abafava os gritos do gerente.
― Vagabunda, piranha! Se no outro sábado cê não acertá eu chamo os home. Eles vão te suicidá, vagabunda!
*
Na manhã seguinte, com um olho roxo, Mariane encontrou o travesti na portaria e recebeu outros conselhos dele: “Menina, te cuida. Credo, nem te conto. Cê precisa saber da história da Samanta. Toma esse creme pra tirar o roxo.”
No metrô ela nem ouvia o anúncio das estações. O “Vagabunda” não lhe saía da memória. Desceu na Liberdade, caminhou até a esquina do sebo do Messias, dobrou à esquerda e encostou-se numa árvore na praça em frente à padaria Santa Tereza. Acendeu um cigarro e fingiu não perceber os olhares enciumados das outras meninas que por lá também batiam bolsa.
Barriguinha de fora, uma língua vermelha tatuada no ombro esquerdo nu, loira, bonita, celular na cintura, Mariane chamava atenção, tanto que 2 rapazes logo a convidaram para um programa coletivo. O cafetão, perto da banca de jornal, “vendo tudo”, fez sinal de positivo.
Enquanto subia a escada de madeira em espiral do hotelzinho da rua Quintino Bocaiúva, Mariane ouvia os rapazes atrás dela dizendo repetidamente um ao outro entre risadas: “Tem ou não tem?”.
― Você faz striptease? ― perguntou um deles.
― Tá, mas eu desconto do tempo. O programa combinado é de meia hora.
Ela estava em cima da cama, de pé, só de calcinha, quando a curra começou. Eles a espancavam e ao mesmo tempo gritavam “Tem ou não tem?”. O cafetão a encontrou desmaiada no banheiro, sangrando pela boca, ânus, nariz. No espelho do quarto os rapazes deixaram escrito com batom: “A Gisele Bundchen bunda não tem. A Mariane bunda tinha.”
No caminho para o pronto-socorro o cafetão, como um alucinado, repetia: “Estúpida, idiota, cadê a grana?! Veja o que cê fez!”.
*
O travesti a visitou todos os dias em que ela esteve internada. Ele dava uma batida na porta e entrava no quarto. “Marianeeeeeeeeeeee, como cê tá hojeeeeeeeeeee?”. Uma semana de hospital e ela voltou às ruas. Encostada na árvore de sempre pensava na infância pobre que tivera. Lembrava-se do irmão paralítico que a bolinava, do cachorro cego de um olho, do cheiro de querosene das lamparinas. No sítio em Santa Catarina morava um velho que contava uma história pra criançada: “O pinhero que dá pinhão é muié. E perto dele tem que te pinhero home pra dá pinhão...”.
*
Depois da curra ela se assumiu como prostituta. Mariane fazia de tudo nos programas, só não conseguia beijar os clientes na boca. Antes, ela achava que a palavra “puta” , que ouvia quase o dia inteiro, jamais lhe serviria. Agora não. Resignada, ela não se constrangia em pensar “Nós somos que nem lagartixa, que perde o rabo e não liga porque sabe que ele cresce de novo”, como um dia o travesti filosofara. E o freguês misterioso? Três bolas no saco e um pau pequenininho. Depois da foda ele sempre falava “Aquela maldita ainda vai ver só” e pagava o programa com cheque. O gerente do hotel odiava cheques e não deixava passar em branco: “Outro cheque, vagabunda?”. Ela já devia a ele quase mil reais.
*
O celular tocou. Era o cafetão.
― Vai passá um chegado meu. De carro. Cê vai com ele pra Santos. Cobra grosso. O cara tem grana.
Durante a viagem o homem ligou várias vezes do celular. Mariane o achou estranho porque ele não tocou no assunto do programa. No barzinho em frente à praia ele pediu uísque com gelo e ela suco de laranja. Bebiam em silêncio, quando se aproximou um japonês de motocicleta e entregou ao homem uma sacola azul, estampada com o logotipo de uma companhia de turismo. O japonês foi embora sem dizer sequer uma palavra.
― Olha ― disse o homem a Mariane ―, eu vou te levar até a rodoviária. Lá você pega um ônibus e volta pra São Paulo com a sacola e me espere no hotel. Desculpe, não é por nada, não. Eu preciso resolver uns negócios aqui, lembrei agora. Essa cabeça...
Mariane percebeu tudo. O homem era traficante de drogas e a estava usando como mula. Ela já ouvira essa história, mas fingiu-se de ingênua diante do pacote de notas de cinqüenta reais que o homem lhe deu. “Na próxima vez eu te dou mais”, disse ele sorridente antes de ligar o carro.
*
Ela desembarcou do ônibus na estação Jabaquara. Durante a viagem até a Luz Mariane pensou com ternura no travesti, nos seus olhos verdes, meigos. No hospital ele confessara que a amava, que estava cheio daquela vida, e que se ela topasse podiam viver juntos na Bahia, onde o pai dele tinha uma fazendinha de cacau. Um sorriso emoldurou a idéia que nasceu na cabeça da moça.
*
Mariane chegou ao hotel e fingiu não ouvir a grosseria do gerente: “E aí, vagabunda, quando cê vai me pagá?”. Ela pediu ao homem que guardasse a sacola embaixo do balcão. “Vou ao banheiro e volto já”, ela disse, e quase correndo subiu até o quarto do travesti.
― Depressa! ― nervosa ela ordenou. ― Não precisa levar mais nada, só um par de tênis e uma roupa de homem. Eu estou com uma grana preta. A gente se manda e fala pro gerente que vamos comprar cigarro.
*
Pegaram o metrô e em poucos minutos estavam na estação Tietê. Antes do embarque para Ilhéus, enquanto o travesti trocava de roupa no banheiro da estação, ela telefonou para a polícia.
― Sim, certeza. O gerente é traficante. Ele vendeu cocaína pro meu irmão menor de idade. O piá disse que o gerente guarda a droga na portaria do hotel. É, uma sacola azul. Quem passa o bagulho pro gerente é um cafetão que fica na praça João Mendes. É, entre a banca de jornal e a floricultura. Anéis... Paletó de couro... E uma corrente grande no pescoço.
― O.K., já estamos indo para lá. Esses desgraçados!...
Mariane desligou o celular e aliviada jogou-o no lixo.
*
O ônibus fez a primeira parada na rodovia Presidente Dutra, perto de Lorena. Eles compraram um frango assado, desses que ficam girando numa assadeira a gás, e uma Coca de 1 litro e meio. Bem que estavam a fim de uma cerveja, mas no posto não vendiam bebidas alcoólicas.
― Vou te contar uma coisa. Meu nome não é Mariane. A carteira de identidade que eu usava é falsa. Ninguém vai achar a gente.
― Danadinha... ― ele disse. ― Meu documento é fajuto também.
― Como é lá em Ilhéus?
― Cê vai gostar. Minha avó faz uma canjiquinha...
O motorista apagou as luzes do ônibus. Eles continuaram a conversa baixinho, de mãos dadas.


oooOOOooo
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui