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Contos-->Quando o gato miau -- 18/05/2007 - 18:01 (Jefferson Cassiano) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Sente-se um tantinho nesse tamborete. É coisa rápida a história que tenho para contar. Vossa mercê não corre risco algum dando crédito a ela, pois o acontecido se deu com amigo meu, gente correta, cabra bom, dono de palavra. Não foi com ele, de fato, mas com um compadre dele que não conheci. Quando botei ouvido no dito, fiquei com um pé aqui e outro lá antontem, de modo que, se for o caso, a desconfiança pode minar aí na cabeça sua que ninguém há de esquisitar. Se eu mesmo custo a crer - eu que, se preciso, boto meus poucos pertences sob a custódia do meu amigo, sem suspirar -, seu cuidado é esperado. Registro esse “senão” para antecipar que o caso tem um jeitão de fantástico; mais pelo que esconde do que pelo que escancara.
Esse meu amigo, ou o compadre dele, tinha um bichano-gato que nem nome trazia. Um gatão amarelo quase dourado, cor de melado da laranjeira. Ele não sabia donde tinha vindo esse bicho. Era até de estranhar que um homem sozinho no mundo, vivente de casa avulsa no meio do pasto grande da região de Campo Seco, cuidasse de gato. O tal compadre votava mais no partido dos cachorros brabos e babões, mordedores de ladrão de quintal. Sei que, até aquela época, ele já tinha cuidado bem de uns cinco perdigueiros, todos mortos por peçonha ou doideira. De felino, sempre guardara distância, cismado com o mole-mole da ossatura por baixo daqueles pêlos. Gato era agourento, além de tudo. Mas o bicho foi presente e foi ficando até ficar de vez. Também era da paz aquele homem e não tentou nada além de uns xô-xôs para espantar os ron-rons da sala e dos quartinhos. Gato e ele partilhavam a casa, então.
Indiferença, senhoria, é castigo além do cruel para seres respiradores que sejam. Não varia nada se a respiração é de homem, mulher, bode, porco, cão ou gato. Bastou fazer sombra sob o sol e a criatura quer um pouco do olhar de outro para dar sentido à vida própria. Só pedras não pedem mimos, como se sabe. Desconhecedor dessas regras de viver, o homem dava atenção para o gato tanto quanto dava para o quadro com a imagem do moleque que chora pendurado na parede. Não aposte que o pequeno caçador de ratazanas não se fazia perceber. A cada chegada daquele que era tido como dono dele, rezava um ritual sempre repetido: o homem pisava no chão de vermelhão da sala e o gato miador se enroscava naquelas pernas afinadas, trançando em zig-zag, xis de pelagem e ossos entre direita e esquerda das calças de lona. Fosse na sala, fosse no quartinho de dormir, fosse no quartinho de tralha, ou na casinha, seguia o roça-roça com miado fino e esganiçado. E o compadre do meu amigo? Nem tchum, nem tcham. Não soltava um bitate qualquer para adoçar a boquinha do ouvido do animal e economizava afagos para coçar o próprio bicho-de-pé. Mas não brincava com o gato, de dia ou de noite, assim parecendo que não existia gente de rabo além do homem naquele casebre.
Isso foi assim assim até certa tarde de agosto frio e seco. Voltava o meu amigo da lida com uma trouxinha de restos embaixo do braço. O vento era valente e balangava a paineira perto da entrada. Bolas de paina encardida e pêlos dourados giravam pelo terreiro em rodamoinhos de sacis. Como aq uele nunca tinha sido lugar de safados, a porta de entrada dormia, acordava e vivia só na tramelinha de madeira amarrada em fio de sacaria que, puxão, abria o caminho da varandinha para a sala. Empurrado pela ventania, o homem se pôs dentro de casa e já deu começo ao ouvir do miau-miau entre suas pernas, como de costume era. Foi até o quarto catar um velho cobertor para enrolar o corpo e enganar a friagem que era tamanha para anestesiar cada membro dele. Tão frio que nem dava para sentir o bichano a riscar oitos nas botinas. Na cozinha, requentou um café preto na caneca amassada e resolveu encher a latinha de sardinha com os restoios da comida do dia. O banquete não serviu para atrair o gatinho, ainda miando aos pés do dono.
É aqui que vossa mercê me perdoe para introduzir um revertério na acontecência toda. Porque foi aqui, nesse ponto exato, que o compadre do meu amigo tentou dar um empurrão no gato, afastando o incômodo com pé direito. Errou o alvo, mas como ainda ouvisse os miados, tentou outra vez e outra vez errou. A falta de pontaria levou os olhos do homem ao vermelho do chão, buscando os pêlos para espantar. Viu nenhum pêlo, rabo nenhum e pata nenhuma. Mas ainda ouvia as súplicas miadas ali bem perto. Nada de gato. Isso não tinha jeito! O bicho devia estar escondido numa caixa daquelas, não estava, no armarinho amarelo, não estava, no balaio de gato, não estava, em lugar qualquer, não estava. Mas miava! Gato sem miado já tinha visto. Miado sem gato era coisa nova.
As crenças daquele homem eram as que vossa mercê conhece bem: um terço na cabeceira, um santinho milagreiro enfiado na botina, uma bíblia empoeirada deixada pela Vó Véia e umas rezas espantadoras de assombração na memória curta. No catecismo, nunca botara reparo em história de bicho sumido que largava para trás a voz que tinha. Se na bíblia existia rastro de caso assim, só era possível no Apocalipse e, assim fosse, melhor continuar ignorante do assunto, que o fim do mundo não é boa solução para problema algum.
Sem fé que fosse socorro, tentou seguir como se miado não houvesse. Comeu um toco de pão sovado com banha, puxou de um tamborete de sentar igual em tudo a esses que sustentam nossa prosa e picou fumo de paciência bem do fino para fazer um pito longo. Ficou vigiando a porta, nem te ligo para o berreiro do gato sem gato.
Tragado todo o cigarro, foi-se com o fumacê a pouca calma do compadre do meu amigo. É que o miado teimoso seguia mais fortalecido como se ofendido pelo desprezo do dono ingrato. Miado que já era quase falatório de gente com palavra ardida:
- Num é? Num é? Num é? Num é?
Quando os nervos não têm querer contra o inexplicável e o homem não consegue aceitar o que não tem aceite, é caso em que pode ocorrer o que se chama quiprocó na cabeça. De tanto fingir que não ligava e de, de verdade, ligar muito, aconteceu que o pobre do moço da história do meu amigo explodiu e deu princípio a um quebra-quebra de inveja dar ao Jesus no templo. Cuidou de arrastar a mobília parca que tinha para o terreiro fazendo um monte entulhado. Gato nenhum no monte. Só o Num é? Num é? que crescia e, com a casa pelada, ecoava pelas paredes de pedra sem caiar. Armou-se o homem de marreta e deu no piso da sala, do quartinho, da cozinha até ver terra brotando de todos os cantos e gato nenhum. Num é? Num é? Subiu no tamborete e nas latas de querosene e alcançou o teto e o forro de ripinha certo de que aquele era – que clareza! – a toca ideal para bicho-bichano-sem-vergonho. Forração abaixo. Gato nenhum. Num é? Num é?
A casa já era um furdúncio quando o primeiro lumiê do sol entrou pelos buracos abertos nas paredes e encontrou o autor dos estragos largado no meio do que já tinha sido salinha. Uma pena de homem derrotado mais pela loucura daquela fala de felino sem felino do que pelo cansaço muito. Quem lá estivesse veria com olhos de tristeza o corpo curvado do homem olhando sem fim para o mesmo lugar vazio da sala. Olhava, mas ver, não via. Olhava apenas o miado como se miado fosse coisa de ser visto. É que o gato sumido já tinha um falar tão verdadeiro que quase se deixava mesmo ver: Num é? Num é?
O compadre do meu amigo tinha de ir para a lida, mas a lida não viu o homem naquele dia. Também não viu no dia seguinte e no outro. Dá um dó grande contar isso a vossa mercê, mas fique sabendo que o homem do gato que sumiu prosseguiu sentado entre os restos da casinha por dias. Não ponha dúvida nisto: ele ficou parado e duro, feito estátua de pedra, mirando o vazio que miava. Foi uma tocaia de muitas manhãs, tardes e noites até que também o homem sumiu sem deixar rastro ou pista além das paredes em demolição. Talvez um amigo seu em viagem pelas bandas do Campo Seco já tenha visto e testemunhe sobre o que sobrou da casinha no terreiro ao lado da paineira. Sei de gente que por lá esteve e confirmou a existência de mobiliário podre espalhado no entorno. Outros, mais corajosos, encostaram o ouvido na porta de madeira e juram, pés e mãos juntos, que de dentro da construção desconstruída saltam duas vozes em coro. Uma de quase-gato e outra de quase-homem:
- Num é? Num é?
- Num sô! Num sô!
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