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Contos-->O Deus da Caça -- 05/06/2007 - 00:42 (cumpadri) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Vivi e vivo numa aldeia muito pequena, não tem mais de mil habitantes, um sitio que me parece ter sido esquecido por Deus nalgumas ocasiões, mas uma certeza tenho: nós não nos esquecemos de Deus.
Desde sempre acreditei, assim como todos à minha volta, que descendíamos de Adão e Eva, que a Terra era um planeta de tenra idade, que tudo o que tem vida era imutável, porque enquanto criação de Deus tinha de ser perfeito, e que os homens Têm alma, a qual irá um dia para o Céu ou para o inferno de acordo com as acções que praticarmos durante a nossa vida Terrena.
Quando fui para a escola; sim a minha aldeia também tem escola e uma professora de fora, considerada por muitos dos meus conterrâneos como a maior das hereges de todos os tempos, alguns chegaram a afirmar que se fosse homem só podia ser o anticristo, mas como é mulher e até é bem bonita nas suas costas chamavam-lhe, as mulheres em tom jocoso e os homens de forma carinhosa, A Bruxinha da Aldeia; antes da nova professora ter chegado à aldeia quem dava as aulas era o padre, aliás o padre era quase tudo na aldeia, era o professor, o médico, o policia, o juiz e em geral o director da aldeia; a nova professora tinha acabado de chegar à aldeia e ensinou aos seus alunos e a toda a aldeia coisas que revolucionaram a nossa até então quase pacata aldeia, vivemos tempos muito difíceis... Ela ensinou-nos que a Terra afinal era uma senhora de terceira idade e não uma linda, apetitosa e quase virgem menina; as especies eram afinal imperfeitas e por isso estavam sujeitas a uma quase constante evolução regulada essencialmente pela lei do mais forte, também falou sobre mutações, mas como estava doente faltei a essa aula; Adão e Eva afinal nunca tinha existido eram apenas uma metáfora literária e não uma realidade, mas depois disse que descendíamos todos de uma só mãe e eu fiquei um pouco confuso. Antes de continuar quero acrescentar que a aldeia reagiu até de uma forma bastante positiva a todos estes novos conhecimentos, o pior sucedeu quando numa atitude um tanto Feuerbachiana, sim, vivo numa pequena aldeia, não sou muito culto mas conheço Feuerbach, nós já temos internet, lembrou-se de matar a nossa alma e por conseguinte Deus, fez isso ensinando que nós somos apenas a soma de umas quantas reacções físicas e químicas e que os nossos pensamentos e as nossas emoções são apenas filhos de outras tantas descargas eléctricas de umas coisas minusculas que habitam os nossos cérebros chamadas neurónios... Nos dias que se seguiram a esta aula na nossa aldeia viveu-se o Apocalipse, o fim do Mundo, pelo menos do Mundo como o conhecíamos até então. O padre foi a primeira vítima, a sua autoridade deixou de ser reconhecida e como não havia ninguém que não tivesse pelo menos uma razão de queixa dele foi julgado, condenado e queimado vivo na praça da aldeia num verdadeiro auto de fé à moda antiga, mas outras vítimas houve pois todas as sentenças do padre foram revogadas e muitos quiseram fazer justiça pelas próprias mãos. Após a morte do padre uma revolução sangrenta inciou-se na nossa aldeia, durante três dias cometeram-se aqui todo o tipo de atrocidades: agressões, violações, assassinatos, canibalismo, patricídios, matricídios,..., acredito que Deus se esqueceu de nós durante esses dias, só a intervenção conjunta da guarda e do exército pôs um termo a toda a loucura que vivemos nessas agitadas 72 horas.
*
Falando um pouco do vosso narrador, nunca conheci os meus pais, sou órfão desde sempre, isto é desde que me lembro, disseram-me que os meus pais eram boas pessoas, gostavam muito de mim e que não me deixaram sozinho neste mundo por vontade própria, morreram tinha eu 6 meses num desastre de carroça, parece que os cavalos se espantaram com uma cobra e acabaram por cair num precipício, sendo assim quis que eles, estivessem lá onde estivessem, se orgulhassem de mim e não sentissem qualquer culpa por terem morrido antes da hora, estes desejos tornaram-me uma pessoa muito activa desde tenra idade, muito cedo quis ganhar o meu sustento e não depender de ninguém, por isso aprendi muitos ofícios para que nunca me faltasse trabalho, foi pastor, agricultor, ferreiro, albardeiro, ajudante de enfermeiro, vendedor e mais umas quantas coisas, aos vinte anos sentia-me um profissional apto a desempenhar qualquer tarefa técnica que me fosse incumbida, no entanto não me sentia uma pessoa completa, faltava-me qualquer coisa, por exemplo se me convidavam para ir a uma festa declinava o convite pois não sabia, nem imaginava, o que esperavam de mim nesse evento social, por outras palavras socialmente era um verdadeiro nabo; assim, como toda a gente que tinha algum problema fazia nessa altura, fui falar com o padre e ele deu-me a Bíblia e disse: tudo o que precisas de saber está aí, se achares que não chega vem falar comigo, e foi assim que com a ajuda do padre e da Bíblia aprendi o básico da convivência social, mas não aprendi apenas isso ao ler o Livro sagrado, também comecei a sentir a presença de Deus ou de alguém a seu mandado em todas as coisas, esta sensação é muito difícil de explicar a quem nunca a conheceu, descobri isso por experiência própria. Mas durante e a seguir àqueles 3 dias infames deixei de sentir essa presença Divina, pelo menos de forma tão evidente, devo acrescentar que ainda hoje sinto-O de uma forma muito mais ténue do que sentia antes desse tempo sangrento. Por agora chega de falar de mim, mas para matar a curiosidade do leitor chamo-me Francisco.
Depois de alguns espancamentos, prisões completamente aleatórias, assim acontece com a justiça dos homens, e três meses de recolher obrigatório a situação acalmou, as pessoas regressaram para as suas casas e para os seus afazeres, criaram-se na aldeia um posto guarda, um tribunal, uma junta de freguesia e um hospital; a igreja durante alguns anos não funcionou porque todos os padres tinham medo de vir à nossa terra, mas a nunca foi deixada completamente ao abandono, uns quantos de nós responsabilizaram-se pela sua manutenção. Muita coisa mudou na aldeia mas ninguém falava disso nem dos dias que provocaram tal revolução, todos nos envergonhávamos desse nosso passado, mesmo aqueles que nada tinham feito sentiam-se culpados por omissão.
Durante vários anos a seguir aos tumultos muita tristeza correu pelos nossos olhos e falava de culpa e abandono, culpa pelas faltas, abandono porque nos sentíamos órfãos. O nosso Pai do Céu tinha morrido, sem dúvida que o vosso narrador sabe do que está a falar, porque nós não chorámos a morte de Deus, é natural um pai morrer antes do filho, chorámos sim a morte das suas palavras, da sua mensagem, dos seus ensinamentos, mas de vez em vez um pequeno diamante de esperança fazia-se notar no meio de tanta escuridão, alguns de nós, embora poucos, ainda se lembravam de Deus e dos seus ensinamentos, e num acto de rebeldia consciente voltámos a acreditar em Adão e Eva, na tenra idade do nosso planeta, na imutabilidade das espécies e em muitas outras coisas, alguns chamaram-nos inocentes, outros fanáticos, mas não nos importamos com isso, nessa altura voltei a sentir de uma forma menos ténue a presença de Deus e um pouco de tristeza partiu e um pouco de alegria voltou. Numa noite de insónia, devido a ter sido invadido por recordações daqueles 3 dias malditos, levantei-me da cama, abri a janela, ajoelhei-me fitando o céu, benzi-me e humildemente disse: Meu Deus por favor ouve-me. Sei que pequei naqueles dias por nada ter feito para impedir tamanhas atrocidades, por isso peço o teu perdão. Meu Deus sempre acreditei em Ti, embora todas as adversidades, peço-Te, não somente por mim, mas também pelos outros, dá-me um sinal palpável da tua existência, uma prova, para que tente evitar que noutros lugares se viva a carnificina que presenciei na minha aldeia. Depois destas palavras voltei a deitar-me e instantaneamente adormeci, a resposta veio em sonho.
*
O sonho não foi tipo um filme, pareceu-se mais com uma banda desenha, foi uma série de imagens desligadas umas das outras, não vale apena descrever cada uma delas em separado pois só fazem sentido quanto tomadas em conjunto, por tal vou escrever apenas a história que o conjunto de imagens me contou.
Um grupo de homens pré-históricos andava à caça numa noite de lua cheia, embora tivessem concretizado o seu propósito, um deles embora não falecendo imediatamente foi ferido de forma mortal, ao chegarem à gruta onde as mulheres e filhos os aguardavam, o que estava ferido dirigiu-se para um recanto da gruta para poder morrer sossegado e longe dos olhares dos seus companheiros. Com o passar dos dias os companheiros e familiares do falecido notaram que o cadáver começava a ser uma ameaça para a sua sobrevivência, chegaram assim à conclusão que tinham de se livrarem do corpo, como não queriam deixá-lo ao relento para que os animais selvagens não se habituassem a comer carne humana, decidiram enterra-lo no local onde o seu amigo tinha escolhido morrer, desta forma nasceu o uso de se enterrarem os cadáveres dentro dos locais de habitação ( selecção natural?, ou será selecção cultural?, não interessa, também não sou muito entendido nessas coisas da biologia...) certo é que aqueles grupos pré-históricos que não enterravam os seus cadáveres não devem ter tido muita sorte por uma ou outra razão. Mas um dia um enterro dentro da gruta não correu como o esperado, a leve sensação de frio que sentiam após a morte de um companheiro não desapareceu depois do enterro como era usual, desta vez essa sensação desagradável manteve-se e qual não foi o espanto deles quanto voltaram a ver o companheiro novamente vivo, assustados com o morto que voltou da tumba correram todos para fora da gruta, mas o medo dos animais ferozes fez com que regressassem para o interior da gruta, afinal já tinham presenciado o mesmo fenómeno só que ao ar livre. O morto apercebendo-se que era persona non grata tratou de se tornar útil ao grupo e começou a indicar os melhores locais de caça.
Durante algum tempo tudo parecia correr às mil maravilhas tanto ao vivos como ao morto, até que Ozuzi o chefe do grupo reparou que o morto não trazia apenas vantagens aos vivos, aquela constante sensação de frio que sentiam por causa dele estava a enfraquecer todos os elementos do grupo, principalmente os mais jovens, e desta forma ponha em causa a sobrevivência deles. Como Ozuzi já tinha visto a alma de um outro seu companheiro seguir o animal que levava o seu corpo na boca e era uma pessoa extremamente pragmática pensou numa forma de evitar os malefícios mas mantendo os beneficios, criou a primeira anta da história da humanidade. Assim a alma do morto ficava afastada dos vivos e os mais fortes do grupo continuavam a poder consultá-la sobre a caça, o que sem dúvida facilitava e muito a sobrevivência.
Ozuzi e os seus, sendo nómadas, durante alguns períodos da sua vida estiveram demasiado longe do seu oráculo e também por essa razão experimentaram grandes dificuldades, um dia durante o mais negro desses períodos de privação recordou-se que ele e alguns dos seus companheiros ao ouvirem barulhos suspeitos no exterior da gruta onde se tinham recolhido para passarem a noite eram capazes de sair dos seus corpos e assim em segurança iam verificar se realmente existia lá fora alguma ameaça ou não, algo que lhe pareceu muito importante é que para se mover nessas alturas bastava-lhe apenas pensar no local de onde vinham os sons ameaçadores e logo se encontrava lá; durante todo esse dia tentou sair do seu corpo mas todos os seus esforços foram em vão, assim que se deu o pôr do sol dirigiu-se ao recanto mais calmo da primeira caverna desabitada que encontrou, deitou-se e imaginou que ruídos perigosos se faziam ouvir lá fora e o seu esforço foi recompensado, a sua alma ou pelo menos uma parte dela abandonou o seu corpo, no mesmo instante em que a separação se deu pensou no local onde o corpo do seu antigo companheiro estava enterrado e rapidamente se encontrou em condições de o poder consultar, mas este disse-lhe que estes eram tempos difíceis e que não o podia ajudar, porque a caça assim como outros alimentos escasseavam por aquelas paragens. Ozuzi ficou desapontado, mas não desistiu, como conseguia obter informação tanto do sitio onde estava o seu corpo como de onde se encontrava a sua alma pensou que talvez fosse possível dividir-se em vários, logo o tentou e o conseguiu, uma das partes da sua alma foi ter com um oráculo de um outro grupo e pediu-lhe ajuda. A alma responsável por esse oráculo ao perceber o seu sofrimento apiedou-se dele e decidiu ajudá-lo, disse-lhe: durante a minha existência aprendi a controlar os animais, como vivemos um período de escassez enviei-os quase todos para junto dos meus antigos companheiros, caminha durante 3 luas em direcção à grande montanha, providenciarei que quando chegares ao teu destino encontres toda a caça que necessitas. Ozuzi como é claro aceitou a ajuda, mas não achou correcto que uns tivessem abundância enquanto outros morriam à fome. Quando morreu ficou na sua anta a qual se transformou num novo oráculo, só que um pouco diferente dos anteriores. A alma de Ozuzi demorou algum tempo a manifestar-se porque primeiro quis aprender a dominar os animais, na altura em que houve o primeiro pedido de ajuda sobre caça disse: vão, pintem nas paredes das vossas grutas as vossas necessidades e dizei três vezes o meu nome. Todos os dias visitarei os locais onde fizerem o que vos disse informando-me assim dos vossos desejos, no dia seguinte encontrarão o que precisam se tal for possível, espalhai esta boa notícia por todo o sitio.
Assim nasceu o primeiro deus da caça Ozuzi.
A moral desta história é que a religião afinal não é fruto apenas de fraquezas, ignorância e ou ganância, mas também de factos concretos. Factos que até os incultos homens da pré-história conseguiram observar e usar em seu favor.
Depois da aldeia ter tido conhecimento do meu sonho algumas coisas voltaram à normalidade, até já temos um padre para tomar conta da igreja e do rebanho do Senhor; quanto à professora quando passa por nós já não lhe chamamos A Bruxinha da Aldeia, mas A Ceguinha da Aldeia, simplesmente porque o maior cego é aquele que não quer ver.

P.S. Esta é uma ficção não baseada em factos reais.
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