MURO CAIADO
Ainda me lembro daquele tempo como se fosse hoje. Aliás, sequer estaria contando esta história.
Eu morava com minha avó numa cidadezinha onde não aconteciam coisas muito interessantes. Mas havia naquela cidade, algo que me intrigava. Contudo, minha avó não criava oportunidade para uma informação mais palpável ao nível de meu entendimento. Então eu insistia:
-“Vo´, o que tem por detrás daquele muro?”
- Nada que você possa presenciar. Um mundo triste e ‘perigoso’, responde-lhe a senhora, procurando distanciar a menina que não mais parecia tão criança, desse despertar fora de hora.
-“Mas é extenso e branco demais aquele muro. Deve ter muita vida lá!”. Retruca com inquietação.
-“Não sei se é vida que tem lá dentro. Talvez, muito ‘castigo’. Diz a lenda, uma história que vem sendo contada há muitos e muitos anos, que a doença segregada entre esses muros é capaz de atravessar sete paredes. Por este motivo, quero-a distante desta aparência branca capaz de iludir olhos inocentes,” concluiu a avó.
Arquivei minha bisbilhotice nas gavetas dos brinquedos para não importunar mais minha avó. Contudo, considerando meu hábito de brincar todos os dias, a curiosidade foi tomando um vulto maior e mais consistente. Tão consistente, que assim que me vi com feição de adulta, saí em busca de meus próprios sonhos. Debrucei-me sobre a arte de ver, ouvir e ‘criar’.
Nessa estrada, com o espírito ainda inquieto, porém, com os olhos voltados para conquistas, dei inicio à produção de documentários de curta e longa metragem apesar dos irrisórios patrocínios.
Revolvi avelhantadas ferramentas, vestimentas e brinquedos. Extrai do fundo os não ditos e não vistos e dei início à pesquisa sobre os vários e velhos muros brancos espalhados pelas terras desse Estado, à semelhança ao da minha infância.
Essa minha busca desvendou eucaliptos, rastros de cidade traçada na terra vermelha, em torno de vidas quase secas. Cenários fantásticos foram desenhados na névoa que encerrava as madrugadas. Auscultei corações e registrei histórias de isolamento compulsório e famílias desmanteladas. Uma realidade ainda não vista por eles em curta ou longa-metragem. Uma volta ao passado, onde todos se transformaram em atores das próprias vidas. Vidas nunca sentidas de forma tão veemente.
A imagem foi lançada com muita precisão. A dor que transpareceu na tela quase dilacerou a cena. Mas a vida continuava pulsando, e era o que importava. Conforme a imagem guardada na minha gaveta de brinquedos, tinha muita vida do lado de dentro do muro.
No decorrer dos depoimentos e filmagens, os movimentos foram surgindo de forma tão suave e espontânea , que o vôo dos pássaros parecia se assentar a cada fala e cada gesto. Era possível, sem precisar colar o ouvido, apreender no coração, o batuque dos batimentos nos peitos agastados.
A primeira mostra do filme, evidentemente, foi apresentada à minha avó, já idosa, mas perfeitamente lúcida, na mesma cidade, onde há tempos, já não existia aquele muro de imensos e assustadores tijolos caiados, enfileirados em direção ao céu, que trancafiavam homens, mulheres e crianças, todos acometidos pela mesma doença. Ele havia se esvaído, tal qual água em pote rachado, levando consigo fragmentos de incontáveis lembranças amargas.
Enquanto o filme se desvelava lentamente, em idêntica proporção, rasas gotas começaram a rolar pela face rugosa que me abraçava com os olhos e pedia perdão.
revisado, Heleida, 2004
(conto fantasiado a partir do documentário: "Os melhores aos de nossas vidas", que ganhou Prêmio Especial do Júri no Festival É Tudo Verdade de 2003 e de Melhor Vídeo na IV Mostra Nacional de Vídeo Saúde. O documentário fala sobre preconceito, abandono e superação, em histórias contadas pelos moradores do Santo Ângelo, uma cidade erguida para o tratamento dos hansenianos - autoria de Andréa Pasquini)
Por ocasião da apresentação do documentário no Encontro Estadual do Programa de Hanseníase/ São Paulo, em 2004, Andréa falou do início de sua vida como cineasta a partir do desafio do extenso muro que havia acompanhado sua infância. |