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Contos-->Guiu-Guiu -- 27/06/2007 - 08:59 (Antonio Alfredo Matthiesen) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
GUIU-GUIU


Antonio Alfredo Matthiesen


Os dias eram difíceis de suportar, mas aquele, em especial, era o pior deles. Não podia imaginar que a reta final de sua trajetória teria um sabor tão amargo; mistura de solidão e saudade.
Parado defronte a uma das janelas do grande salão, contemplava o céu carregado de estrelas, banhado, naquela noite, pela prateada claridade da lua cheia. Uma noite que outrora simbolizava família reunida, risos, abraços, crianças correndo e votos de saúde e paz à luz dos sentimentos emanados pela comemoração do nascimento do menino Jesus.
Ao longe, além dos muros que cercavam o asilo, podia divisar parte da cidade: um manto negro crivado de pedras preciosas, estendido por sobre as colinas da região. De quando em quando, o espocar de um foguete acrescentava, por um breve momento, mais uma estrela àquele céu fulgurante.
A agitação, a música alta e a alegria desafortunada dos internos ao redor de uma gigantesca árvore de Natal instalada no centro do salão, não conseguiam demovê-lo de sua introspecção. A janela à sua frente era agora uma tela de cinema que descortinava o filme de sua vida com as recordações que escorriam silenciosamente dos recantos empoeirados da mente.
Nascido na Itália, chegou ao Brasil como imigrante no final do século XIX, aos nove anos de idade. Ainda era vívida a lembrança de quando pisou pela primeira vez em solo brasileiro, no porto de Santos, conduzido pelas mãos dos pais, às quais, como as amarras daquele navio, agarrava-se com firmeza buscando a devida proteção em meio à visão de um futuro incerto. Iniciava-se uma jornada de coragem, apreensões e esperanças numa terra promissora. A agricultura, no interior do Estado de São Paulo, foi a opção da família, e a cidade de Santa Bárbara d‘Oeste, o local para o início do sonho. Passada uma década, seus pais já eram proprietários de um pequeno sítio e, a despeito da vida de sacrifícios e trabalho árduo, a paz e a felicidade reinavam em sua casa.
Certo dia o destino apresentou-lhe, em uma festa, uma bonita morena, também filha de italianos. Desposou-a e constituiu, ao longo dos anos, uma família numerosa de doze filhos; seis homens e seis mulheres. De acordo com a idade, cada um tinha uma atividade no sítio e, a seu tempo, todos estudaram na cidade; o que exigia uma caminhada diária em torno de dez quilômetros. Com simplicidade e muita luta os filhos cresceram, e alguns deles, já com diplomas de cursos superiores, passaram a morar e trabalhar em outras cidades.
Com o desenvolvimento das indústrias têxteis, as cidades de Santa Bárbara e Americana se expandiram, fazendo com que o progresso valorizasse suas terras. Assim, cedendo à especulação imobiliária e com a família já bastante reduzida, arrendou o sítio à usina açucareira local e lançou mão de suas economias para adquirir uma casa na cidade de Americana. Embora estivesse vivendo, na ocasião, somente com a mulher e uma filha ainda solteira, fez questão de uma casa espaçosa com um grande quintal, pois a sua maior alegria a partir de então, se resumiria a receber os filhos e netos nos finais de semana e nas datas comemorativas do ano. Vibrava de emoção com o sucesso dos filhos e cada neto que nascia era motivo de grande festejo. Amava a todos e, em seu íntimo, esforçava-se em acreditar que não havia preferência de sua parte em relação a qualquer membro de sua família. No entanto, via-se freqüentemente traído pelos sentimentos quando aparecia para visitá-lo o neto a quem carinhosamente chamava de Gemeio. Essa recordação abriu-lhe um sorriso nos lábios. Aquela criança, com o rosto sempre rosado, era o seu adorado “Vermelho” que, na linguagem simples das pessoas humildes do interior do Estado, recebia a pronúncia de “Vermeio”. Cheio de orgulho pelo netinho no colo articulando suas primeiras palavras, provocava-o com freqüência, diante de amigos, perguntando-lhe sempre sobre o nome que o chamavam, e para sua satisfação recebia de pronto a resposta: Gemeio.
Com o intuito de agradar aquela pequena criatura construiu, certa vez, uma carretilha para empinar pipas. Consistia o brinquedo de um grande carretel de madeira, utilizado em fábricas de tecidos, o qual foi adaptado a um quadro também de madeira, mediante um eixo metálico em forma de manivela. Ao girar tal manivela, o artefato emitia um som agudo provocado pelo atrito do eixo com a madeira do quadro que fazia lembrar uma cantilena monótona, o lamento triste de um carro de bois em miniatura. Quando recebeu o presente das mãos do avô, a criança, com os olhinhos brilhando de emoção, disse ao ouvir o som da carretilha:
― Guiu-guiu!
Estava então batizado o brinquedo que, a partir daí, passaria a ser a materialização do elo entre o avô e o neto. Sempre que pressentia a visita do menino, tratava logo de fazer maravilhosas pipas coloridas para esperá-lo. Era como se tivessem firmado um pacto. Ao avô cabia a tarefa de construir as pipas, e, ao garoto, a de trazer o guiu-guiu para empiná-las.
A vida naquele tempo parecia retribuir-lhe, a cada momento, todos os sacrifícios pelos quais passara. Percebia tal reconhecimento nas coisas mais simples do cotidiano. Era prazerosa a sensação de ter constituído, com dignidade e trabalho, uma família admirável e honrada. Jamais poderia assim, imaginar o revés que sua vida sofreria nos três anos seguintes. A última filha se casou e deixou a casa para morar com o marido em outro Estado, e, logo em seguida, a esposa querida, companheira inseparável e mãe abnegada, veio a falecer. Mergulhado em profunda depressão, não demorou muito para que um tribunal de família o sentenciasse a morar em um asilo de luxo, com a alegação de que poderia ter companhia, conforto e assistência médica em tempo integral. Aquele veredicto, aparentemente carregado de boas intenções, nada mais fez do que dilacerar seu coração, findando o pouco de ilusão que ainda lhe restava àquela altura da vida. Era muito difícil encarar a dura realidade. De nada mais servia para os adultos a quem tanto se dedicara. De certa forma, no entanto, vislumbrava uma consolação: as crianças que o mundo ainda não contaminara e que tanto o amavam. Na pureza de seus gestos encontrava o combustível que lhe abastecia a alma para continuar vivendo. Isso era tão importante para ele que quando saiu de casa para o asilo, fez com que os filhos prometessem não comentar com os netos sobre o seu real paradeiro. Não por vaidade, mas para não permitir que os mesmos, quando tivessem idade suficiente para entender aquela atitude de seus pais, sentissem piedade dele. Queria ser sempre lembrado como o avô brincalhão, companheiro e forte e não como o homem fraco e impotente no qual o haviam transformado. Assim, recomendou aos filhos, como que um último pedido de um condenado à morte, que dissessem aos seus netos que o avô tinha resolvido, de repente, morar em uma fazenda distante na companhia de amigos, e, para não ficar triste, evitou se despedir de todos eles. Dessa forma deveria ser contada a sua retirada do mundo, assim deveria...
― Senhor Francesco! Senhor Francesco, venha comigo, por favor. – chamou a assistente social, tomando-lhe a mão direita – Vamos abrir os presentes!
Aquele convite mais lhe pareceu uma ironia do destino. Como poderia esperar um presente de alguém se há dois anos não recebia uma visita sequer de seus filhos? Mesmo os telefonemas foram rareando com o tempo. Este ano ninguém havia ligado. Mas isso não o preocupava mais. Os últimos anos endureceram seu coração e agora tinha plena consciência da situação: não era útil a mais ninguém.
Enquanto era conduzido em direção à árvore de Natal, como que anestesiado e pisando a esmo em seus próprios pensamentos, pôde perceber que continuava sensível ao cheiro das carnes que foram preparadas para a ceia daquela noite. Uma ceia que não lhe despertara nenhum apetite, pois não poderia, mesmo que se esforçasse, engolir ainda mais recordações.
Em meio àquela agitação, tomou um lugar entre os internos e fixou o olhar nas luzes que serpenteavam pelo imponente pinheiro, todo decorado com bolas coloridas e salpicado de algodão imitando neve; a neve que jamais vira no Brasil, mas que ainda estava presente nas lembranças dos tempos de menino no velho continente. A música havia parado dando lugar à voz da diretora da casa, que emanava através dos alto-falantes. Todos os agraciados eram chamados à frente para pegar seus presentes, ruidosamente acompanhados de gritos, assobios e palmas.
De repente, seu nome foi anunciado. Continuou com os olhos paralisados no pisca-pisca das luzes, como se aquilo não fosse com ele. Só poderia ser mais um de seus sonhos. Mas a voz insistia e a assistente ao lado o despertou delicadamente, afagando sua mão e pedindo que apanhasse o presente. Era um pacote com o formato de uma caixa de sapatos, cuidadosamente embrulhado com papel metálico verde, envolvido por uma fita vermelha disposta em cruz, cujas extremidades se juntavam formando um bonito laço em seu topo. Pegou o presente das mãos da diretora e pediu à assistente que o deixasse sozinho por um momento, pois gostaria de verificar o conteúdo daquela caixa num local sossegado, distante do barulho do salão.
Acatando seu pedido, ela ainda o acompanhou até a porta de saída para o jardim, enquanto a atmosfera era novamente invadida por música, agora com a clássica canção White Christmas, na voz de Bing Crosby. A assistente ficou parada junto à soleira observando seus passos lentos alcançarem um banco de pedra sob uma árvore frondosa, toda abraçada por lâmpadas que emitiam luzes intermitentes, dando a impressão de uma cascata desabando sobre o gramado.
Atendendo a um chamado da diretora, a assistente voltou sua atenção para dentro do salão a fim de organizar uma brincadeira com os internos.
Depois de algum tempo, entretida com as atividades, ela teve um sobressalto, lembrando-se do sr. Francesco. Dirigiu-se rapidamente à janela e o viu deitado de bruços sobre o banco, com o braço direito caído na lateral e os pés no chão. Suplicou aos gritos pela ajuda dos colegas enquanto corria desesperadamente em direção ao local. Ao levantarem aquele corpo inerte, constataram de imediato que ele estava morto. Agarrava junto ao peito com o braço esquerdo, uma estranha carretilha de madeira e com a mão direita segurava um bilhete com a seguinte mensagem:

Querido Nono,

Eu fiquei triste quando você foi embora. Mamãe falou que você foi morar em uma fazenda muito bonita, mas eu não sei por que não veio me dar um beijo quando saiu.
A Maria é a empregada que cuida de mim e ela descobriu onde você está. Nós não falamos nada para a mamãe para ela não ficar brava. E nem para o papai.
Estou mandando o Guiu-guiu de presente porque nós estamos morando numa cidade grande e eu não posso mais empinar pipas. Como você está em uma fazenda, acho que ele será bom para você brincar com seus amigos.
Eu rezo por você todas as noites antes de dormir. Venha me visitar, Nono.

Feliz Natal,

Gemeio
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