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Contos-->ROSA...A DITADURA...O SORVETE -- 28/06/2007 - 21:21 (SALETI HARTMANN) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Número do Registro de Direito Autoral:131103324052817100
Lá pelos idos de 1964 - hoje conhecidos como anos de chumbo - Santa Rosa era uma cidade em pleno florescimento, ainda no início da construção de prédios de pequeno porte, e do calçamento das ruas barrentas, onde, em dias de chuva, acontecia um verdadeiro caos, com os carros usando enormes correntes nas rodas, e os pedestres usando galochas e botas pesadas, para se proteger do clima úmido.
Na rua que passava diante da casa nº 604, da Euclides da Cunha, o calçamento havia sido feito, recentemente. Nesta casa, de estilo italiano, muito alta, e de madeira bem forte, habitava a família barulhenta e alegre do casal de origem alemã, José e Elisabeth, que vieram há pouco tempo de mudança para a cidade, com seus cinco filhos: três meninas e dois meninos. A menorzinha de todos, Rosa, com seis anos de idade, gostava de ficar à janela nos dias de chuva, vendo as pessoas passar com seus guarda-chuvas, e a água rolando nas valetas da rua, formando poças e pequenos riachos cantantes.
A impressão da vida,dizia que tudo era maravilhoso, ainda, pois brincava bastante com seus quatro irmãos, que faziam escadinha na idade: 8, 9 (as meninas) e 10 e 11 anos (os meninos). O pai trabalhava no Banco da cidade, e a mãe cuidava da casa, das crianças, e do orçamento doméstico. Tudo parecia estar no seu devido lugar.
Mas, havia um porém...
Naquela época, as pessoas falavam baixo nas esquinas, procurando se dispersar o mais breve possível, porque eram os anos da ditadura militar, e estavam proibidos os agrupamentos dos cidadãos em toda a cidade e no interior. Rosa estava matriculada no Pré, no Colégio Normal Santa Rosa de Lima - o Liminha, e, quando voltava para casa com seus irmãos, ouvia conversas dispersas dos irmãos e amiguinhos, sobre a revolução e sobre a tomada, pelos militares, do Poder no Brasil. Rosa corria atrás dos irmãos, para não perdê-los, pois era a caçula, e andava muito devagar, e, quando via as viaturas do exército circulando pelas ruas da cidade, seu coração enchia-se de pânico, pois não entendia nada do que se estava dizendo ao seu redor, mas sabia que era algo ruim, e aqueles carros de cor verde pareciam ter algo a ver com os comentários dos irmãos. O mais velho até falava em violência, agitando braços e pernas, erguendo a voz num tom de quem sabe tudo.
Rosa, pelo pouco que entendeu, ficou com medo de que o País entrasse em guerra civil, e que seu pai tivesse que sair pelas ruas, lutando contra outras pessoas. Correndo, Para alcançar os irmãos, ofegava e segurava nas roupas do irmão mais velho, puxando-o e gritando, quase em pânico:
- Tonico, vai ter guerra no Brasil? Diga que não, por favor!
Ao que Tonico, do alto da sua sabedoria, respondia:
- Maninha, não precisa ter medo, o país é grande, e, se tiver guerra, vai ser longe de nós. E, além de tudo, criança não precisa ter medo, pois a guerra é só dos adultos...
Suspirando, Rosa segurava forte a maleta de colégio, e continuava tentando emparelhar com seus irmãos e irmãs, que esqueciam logo dela, e falavam entre si, "coisas de gente grande". Para atravessar a rua, todos davam-se as mãos e corriam, juntos, quando não havia carros à vista. Rosa sempre lembrava, enquanto corria, dos conselhos do pai e da mãe:
"- Crianças, antes de atravessar a rua, olhem bem para os dois lados, para ver se não vem vindo nenhum carro. Não queremos ver vocês atropelados e indo parar no hospital. Não se descuidem."
Com o passar do tempo, atravessar a rua, tornou-se uma aventura alegre, pois Rosa ria muito daquela situação, ao mesmo tempo de pânico e de felicidade por estar correndo de mãos dadas com seus irmãos, no meio da cidade, grande demais, para ela.
As viaturas do quartel iam e vinham, cheias de soldados, e a menina olhava com muito medo para aqueles que pareciam ser os responsáveis pelas conversas sobre guerra e violência, que escutava dos seus irmãos.
Para que as crianças se acostumassem com a situação dos militares nas ruas, as professoras haviam ensinado uma brincadeira muito alegre, que todos gostavam de brincar e de cantar, na escola e em casa. Assim, quando queriam se divertir, formavam uma pequena fila dos seis irmãos, mais as crianças da vizinhança, faziam chapéus de papel (de preferência, jornal), colocavam na cabeça, seguravam um pedaço de pau, e cantavam, marchando todos juntos:
"- Marcha, soldado,
Cabeça de papel,
Quem não marcha direito,
Vai preso pro quartel!"
"-O quartel pegou fogo,
a polícia deu sinal,
Alô! Alô! Alô!
À Bandeira Nacional!".
Lá se ia o pequeno batalhão, tentando libertar os seus medos, brincando com uma situação que parecia apavorar os adultos, que era o início da ditadura militar.
No entanto, apesar dos medos, a vida seguia quase normalmente.
Aos poucos, as crianças se acostumavam ao vaivém dos soldados nas ruas. Eles iam a pé, de bicicleta ou com viaturas. Aliás, a menina percebia como os soldados faziam sucesso junto às meninas mais velhas até 15 anos, pois cada uma "escolhia" um para si: "Este é meu" - dizia fulana - "Aquele lá, guiando a viatura, é meu!" - dizia siclana. E Rosa não entendia como elas suspiravam perdidamente por aqueles rapazes vestidos de farda, mas olhava o seu sorvete derretendo na mão direita, a mochila pesando na mão esquerda, ria-se sozinha, e continuava ruminando os seus pensamentos de criança, enquanto percorriam o longo caminho da casa para o colégio, e, de novo, do colégio para casa.
Rosa adorava ir junto com os pais e os irmãos, nas missas de domingo, bem cedinho, às seis horas da manhã. Gostava dos preparativos, pois usariam suas melhores roupas e seus melhores calçados, e, como dizia a mãe, precisavam rezar bastante para o Brasil permanecer em paz. A agitação sempre era muito grande, e a menina observava, curiosa, seus irmãos passando uma flanela nos calçados, para fazê-los brilhar, pois era moda os calçados brilharem, naquela época longínqua.
Na saída para a igreja, Rosa corria para segurar na mão do pai e da mãe, porque sentia-se protegida, e não queria se perder no caminho, onde encontravam todo o povo da cidade dirigindo-se, também, para as suas preces dominicais. A menina já conhecia todos os rostos e até o modo de caminhar de algumas pessoas. Notava que nem todas cumprimentavam seus pais, mas sentia-se num ambiente amistoso e calmo.
Na igreja, o silêncio era muito denso, ninguém podia falar alto. Aqui e ali, ouviam-se alguns cochichos e sussurros, que logo se calavam e se aquietavam. Rosa sentava-se ao lado de sua mãe e de suas irmãs, Inês e Maria. Seu pai e seus dois irmãos, sentavam-se na ala direita da igreja, pois naquela época, era costume os homens e os meninos sentarem-se separados das mulheres e das meninas.
A mãe abria o missal, colocava o véu sobre a cabeça, e fazia suas orações antes da missa começar. A menina olhava para o véu, pensando porque não podia usar um também, pois achava bonito. Olhava para suas irmãs, muito quieta, observava a multidão, reunida em completo silêncio, e lembrava de fazer também a sua oração para o "Brasil ter paz", como a mãe sempre dizia.
Na saída da igreja, o coração da menina Rosa batia forte, porque, quando passavam na frente do Bar Odeon, o pai e a mãe costumavam comprar sorvetes - ela adorava sorvetes!! - para os filhos, e ela batia palmas, de tanta alegria! Nenhuma preocupação mais existia no seu coração de criança, nem soldados, nem viaturas, nem guerras: - apenas o sorvete, e o momento único vivido junto com a família, e esse momento sempre parecia tão eterno!
Era sempre perto do Bar Odeon, que ela via uma menina muito linda, de mãos dadas com sua avó, que chamava atenção pelos cabelos loiros, e pelas botas que costumava usar nos pés. As duas faziam uma figura muito elegante, e Rosa gostava de olhar para elas de um jeito especial: achava muito lindo a menina gostar tanto de sua avó, ir rezar com ela, e andar ao seu lado como uma adulta fazia. A imagem das duas ficou gravada em sua memória familiar, pois encontravam-nas todos os domingos, depois da missa,e tudo já fazia parte da rotina da garota. Mais tarde, enquanto Rosa e a família viveriam a normalidade de uma vida pequenina, a menina que sempre andava com a avó, viria a se tornar uma apresentadora famosa, alegrando o mundo de crianças que, como ela, se encantavam ao ver aquela loira bonita.
Rosa andava devagar ao lado de sua mãe e de seu pai, cuidando para não derramar o sorvete, que representava um momento mágico em sua vida. As irmãs iam um pouco mais adiante, fazendo de conta que eram adultas, e Rosa quase podia afirmar que elas também já cochichavam sobre qual o soldado mais bonito daquele dia. Os meninos gostavam de andar com seus amiguinhos, mais além, sempre conversando sobre assuntos de que Rosa não gostava.
O sorvete começou a derreter mais depressa, e a menina sorvia com gosto os respingos que iam se soltando do mesmo. Jurava que, um dia, entenderia o que é uma ditadura, mas, como era muito criança, achava que o sorvete estava muito bom, e que o passeio do dia fôra alegre, apesar do nervosismo que notava nos adultos, ao seu redor.
Somente muito mais tarde, Rosa viria a compreender o verdadeiro significado daquela palavra horrenda - ditadura - e saberia também, que as crianças são as maiores vítimas da violência cometida pelos adultos.
Rosa cresceu.
A ditadura, acabou.
As ruas e a cidade já não estavam mais cheias do vaivém de soldados, nem as meninas já não gostavam mais deles, como antigamente.
Caminhando devagar pela avenida principal, Rosa lembra da menina apaixonada por sorvetes, e ri-se de si mesma, pois fôra uma criança feliz, apesar da ditadura. A menina e o seu sorvete inundaram a lembrança da adulta Rosa. Um suspiro de saudade e Rosa já estava em casa, novamente, agora com seus filhos, seu marido e uma situação totalmente diferente daquela que vivera quando criança.
Rosa cresceu.
O sorvete, derreteu através dos anos.
A ditadura? Parece que sempre existe alguém querendo dominar a mente e as ações do povo, em proveito próprio.
O Sol da Liberdade precisa ser conquistado e reconquistado diariamente, para que nenhuma ditadura se apodere da Nação Brasileira. Enquanto este Sol brilhar para todos, a paz também é feita daquela criança longínqua, do seu sorvete, e das lembranças que ficam a povoar a mente de todos os que sabem o verdadeiro VALOR da palavra LIBERDADE.

Saleti Hartmann

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