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Contos-->A TESOURA DO ALFAIATE -- 16/07/2007 - 00:30 (JOSÉ RICARDO ZANI ) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Por alguns anos, vivi bem próximo de Augusto. Freqüentava sua casa, ligava-me em seus assuntos e tinha certa curiosidade pra entender como e por que alguém haveria de viver como ele.



Mas pouco falava sobre si e, assim, eu sempre soube menos do que gostaria. Não creio que tivesse nada a esconder. Mas era o tipo de pessoa que evitava ficar no centro das atenções. Gostava de conversar sobre outros assuntos, alguns bem interessantes. O que eu sabia, com certeza, é que o cigarro, o cafezinho e o velho rádio eram suas companhias. Esses amigos ajudavam-no a seguir fazendo o que precisava ser feito: trabalhar. Geralmente, de domingo a domingo.



Ascendência germânica, atestada pelo sobrenome alemão na certidão de nascimento e confirmada pela típica inflexibilidade em certos modos pessoais. As veias salientes também indicavam o sangue teimoso e persistente que por elas corria, o que fazia sua face ficar avermelhada ou arroxeada, conforme a natureza dos transtornos ou o resultado do futebol.



Filho de pastor dotado de estudos religiosos, que também gostava de conhecer idiomas, música e pintura, Augusto tinha raízes e berço que o permitiriam imaginar-se algum ramo perdido de legítima estirpe alemã.



Entretanto, uma das coisas que chamavam a atenção dos mais íntimos era o fato de ele ter dois nomes completos, como se tivesse duas identidades. Para mim, o motivo nunca ficou claro. Alguns dizem que a mãe queria que se chamasse Lázaro e, no batismo, fez valer sua vontade, desprezando o nome que o pai registrara em cartório. Outros explicam que alguma coisa em seu nome (em Augusto ou Lázaro, não estou certo) poderia expô-lo a equívocos e criar-lhe problemas, o que teria levado a família a chamá-lo por outro nome.



Mas não tinha dupla identidade. Nos documentos civis, permaneceu apenas com uma. Eu, com o faro aguçado pela mania de devorar contos policiais e desvendá-los antes do próprio autor, nunca vi nada nos nomes dele que pudesse expô-lo, mesmo porque não era homem de se envolver em encrencas nem de enganar as pessoas.



O fato é que, no dia-a-dia, ficou valendo Lázaro, o que também acabaria se simplificando no diminutivo, porque, para os mais próximos, logo passaria a ser simplesmente Lazinho. Penso que, em algum momento da vida, ele deve ter desprezado de vez a suposta altivez do Augusto e de seus ancestrais, para assumir a modéstia e humildade implícitas no apelido. Realmente, Lazinho não sugere muitas grandezas. Tampouco parece nome de alemão.



Contudo, se a vida lhe foi generosa nos nomes, as regalias ficaram por aí. Sobrariam nomes, mas faltaria, principalmente, o que pôr no bolso.



Estive por perto dele durante minha primeira infância e não me lembro de tê-lo visto longe de sua cadeira mais do que umas poucas vezes. Não que fosse uma cadeira de rodas. Tampouco se tratava de uma confortável cadeira de descanso. Era uma cadeira velha e rústica, talvez feita por um marceneiro que nada sabia de ergonomia.



Sentado ali, Lazinho cumpria aquilo que parecia ser uma sentença por toda a vida: manusear uma agulha, recortar linho, casimira ou às vezes brim e operar uma surrada máquina de costura, para transformar tecidos em paletós, calças e coletes sob medida. Talhadas por mãos hábeis, essas peças saíam de sua sala singela para glamorosos ambientes, onde iriam ostentar a elegância dos fregueses durante casamentos, formaturas e mais algumas poucas – e especiais – ocasiões de certa solenidade na região interiorana.



As ferramentas do alfaiate tinham visíveis marcas de muito uso. Trabalhavam até o limite do desgaste antes de serem substituídas. Ele, no entanto, tinha de resistir mais, pois nem a idade nem o tempo de serviço jamais lhe realizariam o sonho de descansar em vida. Muito trabalho, pouco rendimento, nenhuma aposentadoria.



Torcedor ferrenho do clube de futebol da cidade, no esporte seu sonho também ficava distante. Os desapontamentos eram maiores que os momentos de alegria, com exceção de uma ou outra temporada de bons resultados do time. Mas não desistia de acompanhar as campanhas do clube.



Nas tardes de domingo, ficava calado e quase imóvel ao lado do rádio por muitos momentos. Para compreender que ali, naquela atitude, ele torcia apaixonadamente, só mesmo observando-se o pulsar de artérias e mudanças na tonalidade da pele. Para o futebol, assim como para todos que o cercavam no dia-a-dia, jamais resmungou um xingamento ou dirigiu uma hostilidade. Nem contra a mãe do juiz ou para fazer coro à torcida furiosa. Aliás, nem poderia, porque não frequentava estádios e nem mesmo tenho notícia de que, alguma vez, tenha saído de casa com a finalidade de passear ou se divertir.



Mas gostava de relembrar partidas memoráveis ali mesmo, em sua cadeira, com a tesoura nas mãos e as pernas cruzadas naquele modo estranho, em que uma serpenteia a outra, num duplo cruzamento. Devia ser confortável para ele, mas um inexplicável contorcionismo aos olhos dos outros. Assim, com seu modo manso e suave de falar, descrevia lances espetaculares a que sua imaginação “assistira” na voz dos locutores. E falava da genialidade de algum centro-avante, beque ou guarda-meta, na linguagem esportiva usual à época.



Eu era menino e costumava passar horas na casa dele. Quando não me mandavam dar comida às galinhas, ir à padaria ou fazer coisas menos divertidas, eu ficava por ali, distraindo-me com carretéis, botões e réguas profissionais que, por mais longas que fossem, jamais mediriam a exata extensão das angústias que rondavam a casa.



Contudo, percebia certos detalhes. Achava curioso, por exemplo, que sua intimidade com o aço pontiagudo da agulha de costura era inversamente proporcional à intimidade com agulha de injeção. Não se afligiria tanto sob o risco de ter o dedo picotado pela máquina como na mira de uma agulha de injeção... Decididamente, preferia a doença no leito à injeção no braço.



Certa vez, acometido por um súbito sangramento no nariz, passou horas tentando conter a hemorragia. A família já em desespero e a vizinhança correndo de um lado para o outro, receitando todas as soluções caseiras conhecidas. Afligia-me ver o sangue brotando de seu corpo magro e frágil, dando a impressão de que só lhe restavam as últimas gotas.



Em meio à correria, se alguém falasse em farmácia ou pronto-socorro, ele sumia pela casa, mais tenso ficava e ainda mais sangrava... A agonia só tomou outro curso quando apareceu alguém que falou grosso, impondo sua remoção para um hospital, sem chances de questionamentos.



Atendido e internado no hospital, o problema logo se resolveu. E então, quando a enfermeira retornou ao quarto para confirmar sua melhora, não encontrou nem vestígios dele, porque já havia achado um jeito de sair de fininho, direto pra casa.



Remédio bom era uma conversa de compadres, uma piada sem maldade ou a presença de uns e outros, principalmente antigos moradores do bairro que, ao passarem à porta da alfaiataria, por curiosidade ou solidariedade, paravam para cumprimentar, contar novidades ou então, o que parecia mania daquela gente: reabrir divergências religiosas com intermináveis polêmicas.



Ainda que estivesse em apuros para concluir uma confecção com hora marcada, ele era incapaz de arrematar o assunto com um “Amém” para encerrar a conversa, ou de faltar com atenção e receptividade ao visitante sem pressa.



Por esses motivos ou por tantas horas dedicadas aos problemas de saúde do filho, eram freqüentes os atrasos no serviço. Então, chulear, casear, pregar botões, pedalar a velha máquina ou dar acabamento a ferro quente eram tarefas que avançavam pela noite extenuante.



O dia misturava-se à noite e, às vezes, o ciclo se invertia, quando a noite avançava até o amanhecer, para a conclusão de mais uma encomenda no prazo prometido. Geralmente, o revezamento entre Sol e Lua só se fazia notar por uma lâmpada ofuscante e quente como brasa, que descia do teto até quase tocar os cabelos brancos do artesão. Sua luz se duplicava nas grossas lentes dos óculos e guiava a fumaça do cigarro e os insetos insones, que disputavam a lâmpada naquele jogo demente.



Entretanto, seria engano supor que aquilo lhe fosse penoso. Seria mais correto pensar que ele estaria ali em plena paz, com uma condição: desde que o filho estivesse com a saúde sob controle. Ocorre que isso se tornava cada vez mais raro. Já em idade adulta, o “menino” sequer conseguia comer, banhar-se ou subir um degrau sozinho. A missão do casal junto ao filho, que duraria perto de 30 anos, também não foi bastante para esgotar a paciência e a dedicação de Lazinho.



Mas há um detalhe que nunca esquecerei: ele não costurou em todas as noites. Uma delas foi muito diferente.



Eu estava no início da adolescência quando, repentinamente, a cidade passou a ser palco de estranhos acontecimentos. Coisas incomuns começaram a acontecer à noite, em lugares ermos. A gente ouvia depoimentos no rádio, sobre ocorrências durante a noite lá pros lados da estação de trem. Também teria acontecido algo parecido nas imediações de um hospital público fora da cidade, outro caso nas proximidades do cemitério ao amanhecer e outros mais em diferentes lugares. Certa vez, numa fazenda, caso semelhante foi visto por pessoas conhecidas da minha família. Os que estavam na fazenda naquela noite pensaram que o clarão no pasto fosse algum caminhão de estranhos tentando roubar gado. Correram pra lá, mas não chegaram a tempo. A luz fugiu “para cima”, segundo contaram assustados.



Bem, foi voz corrente que eram aparições de naves luminosas, como discos voadores. Algo como os tais objetos não identificados. Em questão de meses, foram dezenas de relatos de moradores.



Enfim, coisas dessa natureza estavam deixando a população perplexa e, pelo jeito, amedrontada... Não se passava uma semana sem que surgisse na imprensa alguma notícia de um novo episódio, cada vez em um ponto diferente da região. As notícias correram o Brasil, principalmente depois que a principal emissora de TV no país mandou uma equipe de reportagem fazer plantão na cidade.



Nessa época, uma das filhas de Lazinho se casou e teve de acompanhar o marido. Foi morar no sítio administrado por ele, uma propriedade contígua à fazenda onde, numa noite, aparecera a estranha luz. O sítio para onde o casal se mudou não tinha rede elétrica, água encanada, telefone nem acesso asfaltado. Para os recém-casados, nada disso fazia muita falta. Não buscavam conforto, mas fundar as bases do futuro e constituir uma família harmoniosa.



Eis então que, numa noite, ao se aproximar da janela para fechá-la antes de dormir, a filha de Lazinho deparou-se com algo muito luminoso no quintal, a poucos metros da casa, emitindo uma luz tão forte a ponto de apavorá-la. Foi questão de segundos, pois o objeto desapareceu sem ruídos nem rastros. Sabiam ser improvável que fosse algum carro de visitante ou veículo de passagem por ali, porque o sítio era bem cercado e o acesso estava fechado a cadeado.



Desnecessário dizer que houve sobressaltos. Fácil presumir como ficaram a cabeça e o estado emocional do casal. O jeito foi deixarem a casa, ao menos por uns dias. Mas não poderia ser para sempre. Havia vacas pra ordenhar, leite pra entregar, animais pra alimentar...



Passado algum tempo, a filha tentava retornar para casa, mas o anoitecer naquele lugar afastado, à luz de lampião, sem carro nem vizinhos próximos, sem ter como sair do sítio às pressas em caso de alguma emergência noturna, tudo isso levava insegurança. Qualquer ruído era um susto, qualquer movimento lá fora era o pânico ali dentro.



Foi em meio a essa angústia que, na clausura do seu ofício, Lazinho interrompeu os movimentos do pedal da máquina. Esmagou o toco de cigarro no cinzeiro e se levantou. No limite da resignação e no auge do compadecimento pela filha, eis que, de dentro do sexagenário cansado, parece ressurgir um destemido Augusto, decidido a entrar em ação.



Lazinho, ou melhor, Augusto confabulou escassas palavras com pessoas próximas e anunciou que tinha uma tarefa a fazer no sítio. Marcou a data e pediu que aguardassem.



Como fosse um homem de métodos discretos, cabia à imaginação da gente inferir o que se passava. Eu sabia que ele conhecia pessoas das áreas de segurança, pois costurava farda para militares, tinha amizade com o Coronel e com um antigo delegado de polícia. Para mim, foi fácil conjecturar sobre o que planejava: ele teria articulado alguma ação com seus conhecidos. Enfim, as expectativas no ambiente familiar se transferiram dos mistérios extraterrestres para os passos de Augusto.



Eu acompanhava tudo, lance por lance: “O que meu avô terá planejado contra os discos voadores?”, pensava eu o tempo todo.



Em meio a essa expectativa, eis que ele manda alguém me chamar. Vou correndo, hipnotizado pela curiosidade. E ele, gesticulando o indicador e olhando-me por cima dos aros tartaruga, passa a me confidenciar:



– Amanhã! Amanhã vamos lá cuidar disso – começa a dizer.



Minha curiosidade vai às nuvens e, de curioso, passo a ansioso. Qual seria o plano que a meticulosidade alemã do vovô havia engendrado?



– Vou lá no sítio, no mesmo horário e no mesmo dia da semana em que eles dizem ter visto “aquilo”. É preciso pôr fim a esse tormento – explica ele.



– Mas como, vovô? O que o senhor vai fazer? Todo mundo tem medo dessas coisas! – respondo.



– Não, não tenho medo.



“É claro”, penso comigo. “Posso até ver o batalhão da segurança que ele arregimentou.”



Ele interrompe meus pensamentos para concluir sua explicação:



– É o seguinte: vou precisar da sua ajuda. Quero que você vá comigo. Nós vamos lá amanhã à noite. Eu e você. Até já falei com sua mãe.



Fico mudo por longos minutos, sem saber onde me enfiar. Em um segundo, desaparecem do campo da minha visão os soldados, legiões e as altas patentes que o ajudariam, segundo as secretas expectativas que alimentei, assim como também não vejo a noite passar, embora permaneça com os olhos abertos e os pensamentos borbulhando. E o pior: amanhece sem que eu encontre alguma alternativa para me livrar da convocação do meu avô.



Na verdade, acho que não tenho saída. Não tenho escolha e a explicação é simples. Primeiro, porque estou certo de que ele tem juízo e ainda não caducou. Se resolveu ir e concluiu que eu devo acompanhá-lo, sabe bem o que está fazendo. Segundo: se um homem idoso e despreparado para missões de risco levanta-se decidido a enfrentar os mistérios do aparente perigo, o que cabe fazer a mim, que estou a plena vitalidade, invicto na queda-de-braço e ávido por ação? Não serei eu que vou fugir da raia para deixá-lo só.



Tudo bem, mas aqui dentro algo não cala. Essas aptidões juvenis me habilitam para tal missão? Não consigo pensar na resposta, pois algum efeito mais sutil parece ocorrer. Não sabendo explicar de que se trata, contento-me em supor que, em algum momento, talvez quando eu também viesse a ostentar fios brancos, o futuro e o passado se encontrariam num paradoxal malabarismo, para me ensinar que, já naqueles tempos idos, sua sabedoria me guiava e sua coragem me contagiava.



Às oito da noite, estou no portão de casa, armado com um farolete e duas pilhas usadas. Olho para a rua de baixo e reconheço o vulto arqueado, aproximando-se a passos apressados. De sua casa até ali, caminhou quase dois quilômetros. Agora, marcharemos uma distância bem maior, sendo metade do percurso em região desabitada, algumas áreas rurais e muita escuridão.



Percebo que ele traz algo volumoso num dos bolsos do paletó. Não me atrevo a perguntar nem me perco em imaginar o que seja, pois não consigo me desviar dos enigmas que me esperam.



Seguimos sem demora e marchamos em silêncio. Enquanto avançamos, percebo que sob o véu da noite a distância é infinita. Seja porque se equipara ao tamanho do desafio ou porque, ao contrário do farolete com pilhas fracas, é forte a tensão que me domina. Se pudesse, naquele momento eu daria dois dentes frontais por duas pilhas novinhas. Talvez, uma arcada inteira para abortar a missão imediatamente.



Os alarmes interiores vão-se inquietando à medida que chega o eco de cães latindo ao ermo e irrompe o coaxar de sapos que zombam de perto, além da estridência dos grilos sombrios, anunciando que há muita escuridão pela frente. De pontos inesperados, ouve-se também um ou outro farfalhar do capim, que se remexe rápido, certamente sob a ação de criaturas insondáveis... Meu avô parece não se dar conta de nada disso e segue calado, em passadas firmes.



Enfim, depois de longa caminhada, chegamos ao destino. Entramos na casa, que ainda cheira a tinta fresca e móveis novos. Ele cumprimenta o casal, mas não se estende. Nada pergunta, nada investiga.



Com gestos seguros, procura um ponto onde se colocar no meio da casa. Posiciona-se com a propriedade de um mestre tibetano pronto para conectar-se a energias transcendentais. Ajeita a mesa e afasta cuidadosamente o vaso de porcelana, um dos bonitos presentes de casamento, que adorna a pequena sala.



Do bolso do paletó, Augusto retira uma Bíblia, que abre em alguma página que não identifico. Coloca-a sobre a mesa e ergue os olhos para o infinito, ignorando o telhado sem forro que o separa do firmamento.



Sem ler, pronuncia salmos, versículos e declarações de confiança com a naturalidade de um sacerdote. A voz não é a de Lazinho. Talvez seja a de Augusto. Ou de ambos, em afinado dueto. Torna-se mais possante a cada trecho da oração e, aos poucos, amplifica-se e propaga-se com segurança imperativa, sem adicionar interjeições ou exclamações de efeito.



As palavras se encadeiam e as frases fluem com energia de orador iluminado, impondo-se e transformando a atmosfera à nossa volta. Evoca forças superiores e agradece pela proteção das pessoas, da casa e do lugar.



Terminada sua prece, segue-se um breve silêncio à luz fraca do lampião, que me deixa vislumbrar semblantes aliviados.



Depois de um lanche com café quente, despedimo-nos e partimos de volta, já tarde da noite. A sensação de missão cumprida e o nível de confiança ali compartilhada tornam mais leve o retorno e mais clara a compreensão do que se passa.



Ao contrário do que eu chegara a supor, meu avô não tratou de negar, questionar, enfrentar nem desvendar fenômeno algum. Apenas se ateve ao que sabia e podia. Com o tino de arquiteto das costuras e mãos treinadas na precisão do ofício, riscou o traçado mais sensato.



Pelo seu figurino, recortou e colocou em pé a premissa de que as pessoas não estavam desguarnecidas. Fortaleceu-lhes a confiança com seu próprio destemor e, sobretudo, empenhou-se para repor-lhes a certeza de que não havia motivos para temer ameaças, ainda que de supostos vizinhos interplanetários. Enfim, sem intenção de exorcizar coisa alguma, rompeu o ciclo de perturbações como se cortasse a milésima fazenda de linho.



Quanto a acreditar na oração e nos poderes da fé, a questão pertence a outro campo e melhor fica se entregue às convicções de cada um.



O fato é que não mais ouvi falar de novos episódios no sítio ou de novas crises de insegurança por lá. O casal permaneceu ainda por bom tempo morando no mesmo lugar. E para mim, em particular, o sítio continuou sendo o passeio preferido dos fins de semana e das férias escolares.



Depois de tanto tempo, revivendo essas lembranças, dou-me conta de que jamais lhe perguntei o que tanto queria saber: por que motivo, afinal, quis ele que eu o acompanhasse naquela noite? Bem, pra ser sincero, acho que não perguntei porque, no fundo, temia alguma resposta pouco lisonjeira, algo como: “Eu só precisava de alguém que carregasse o farolete.”



Hoje, o retrospecto de sua passagem por esta vida me traz reflexões sobre outro Lázaro, o de Betânia. Aquele a quem seu amigo de Nazaré acudiu, ainda que mais tarde do que esperavam os familiares. Se me for permitida alguma analogia sem despencar na heresia, direi que Lazinho também foi bem amparado, ainda que mais tarde do que esperava nossa vã premência humana. E conforta-me crer em sua recompensa com nova vida. Seja em planos evoluídos ou cá entre nós. Por certo, anônimo e humilde, como sempre preferiu ser.



“Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais."



Jo 11, 1-45.  


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