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Contos-->A qualquer preço -- 23/07/2007 - 16:58 (Antonio Alfredo Matthiesen) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A qualquer preço


— Boa noite a todos! Estamos iniciando mais um programa “Você faz o Show”! Como de costume, para o deleite de nosso querido auditório e dos telespectadores de todo o Brasil, teremos, esta noite, três entrevistas sensacionais. Trata-se de pessoas que vêm ocupando grande destaque na mídia nacional. E, como constatarão, não é por menos que estamos liderando a audiência nos últimos anos. Tudo isso graças à qualidade e ao profissionalismo de nossa equipe de produção, que procura selecionar, sempre, o melhor para você! Entrevistados de notória projeção nos cenários político, artístico, cultural, esportivo e também no próprio cotidiano. Aguardem dois minutinhos. Após o intervalo comercial, voltaremos com a primeira entrevista de hoje. Não saiam daí!

***

Carregando um pesado saco de estopa com uma das mãos e uma mala na outra, Doralice entrou esbaforida em seu pequeno quarto de hotel, se é que se poderia chamar de hotel aquela espelunca. Abandonou a carga junto à porta de entrada, tirou os sapatos e desabou em uma surrada e encardida poltrona, descansando os pés sobre a beirada da cama. Talvez não fosse somente sua mudança que acabara naquele momento, mas também sua carreira. “Onde haverá trabalho para uma artista circense de minha especialidade?”, pensou. A reunião daquela tarde tinha sido dolorosa. Por estar esperando tal desfecho há muito tempo, não ficou tão surpresa com a notícia. O mesmo não ocorreu com seus colegas, dos quais muitos chegaram às lágrimas ao ouvir, do dono do circo, o comunicado de encerramento de suas atividades. Afinal, a convivência diária numa atmosfera aventureira e fantasiosa criou, naquelas pessoas, laços de profundo afeto, tornando-as uma grande família. O glamour dos majestosos espetáculos estava ainda vivo na memória, mas a realidade era outra. Os anos de ouro haviam passado. Ninguém poderia censurar a recém tomada decisão. Não havia mais público suficiente para a manutenção da folha de pagamento dos artistas e a alimentação dos animais, que agora quase morriam de fome.

***

― Prezado Senador Juan Cavalheiros: desculpe-me o atrevimento, mas a pergunta que não quer calar é: de onde vem o dinheiro da pensão paga à mãe de seu filho? Todos sabem que o valor pensionado é superior aos vencimentos de V. Excelência.
― Ora meu caro Jorge, você sabe muito bem que eu sou um pecuarista e, portanto, tenho recursos para isso. Já apresentei às autoridades competentes, as notas fiscais de venda de gado que comprovam esta afirmação.
― Mas há um indício muito forte de que as notas foram forjadas, isto é, são “frias”.
― É uma tremenda calúnia. Querem macular o meu nome. Atirar à lama uma história de sacrifícios, trabalho e honradez. O que estão pretendendo fazer comigo é uma verdadeira barbárie. Estou sendo vítima de pessoas com pensamentos fascistas e nazistas, mas a justiça triunfará, pode ter certeza!

***

Não acontecia com freqüência, mas naquela terça-feira Lucerda foi obrigada a trabalhar até muito além de seu horário. Ela era balconista de uma loja de roupas no Brás e às terças e quintas-feiras, freqüentava o curso de corte e costura em uma escolinha próxima à Catedral da Sé. Como dispunha apenas de quinze minutos para chegar à escola antes do início da aula, resolveu afrontar as suas economias tomando um táxi. Por nada nesse mundo faltaria àquelas aulas. Teve a sorte de encontrar disponível o primeiro carro que avistou. Acomodava-se no banco de trás, enquanto o simpático e falante motorista se desculpava pelo possível incômodo que seus apetrechos, recém adquiridos no supermercado e ajeitados debaixo dos bancos, pudessem lhe causar. Dizia que aquele era um dia muito especial, pois tinha pago a última prestação de seu automóvel, o que merecia uma comemoração. Por isso estava levando para casa todas as compras necessárias para oferecer um churrasco à família e aos amigos. Não obstante a alegria e o entusiasmo do condutor, Lucerda fechou-se em seus pensamentos buscando, no curto tempo do trajeto, aliviar as tensões provocadas pelo estafante dia de trabalho. Deitou a cabeça no canto formado pelo encosto de seu banco com a porta, esticou as pernas, retirou os sapatos e, cuidadosamente, posicionou os pés inchados e doloridos em meio às sacolas de plástico do supermercado, sob o banco dianteiro.

***

― Em nosso segundo bloco, vamos conversar com Rosalvinho do Bandolim que está liderando um movimento para resgatar a seresta no Rio de Janeiro.
― Boa noite, meu querido. Você não é muito jovem para esse tipo de música?
― Boa noite, Jorge. Eu acho que não há idade para a música. Conheço muitos jovens que gostam de músicas antigas, assim como idosos que gostam de rock.
― E você acha que há espaço para este tipo de música nos dias de hoje?
― Claro que sim! A título de ilustração, eu posso dizer que vem crescendo, ano a ano, o número de visitantes na cidade de Conservatória, no interior do Rio de Janeiro, conhecida como a capital brasileira da seresta.

***

As recordações invadiram-lhe a mente. Fixou o olhar na mala à sua frente e pôde vislumbrar claramente seu conteúdo. As esplendorosas roupas que tanto usara ganhavam vida novamente. Voltavam a brilhar, sob a luz dos refletores, as coloridas pedras de seu biquíni. Continuava sendo a atração principal. Ela e suas três serpentes. Ninguém a conhecia por Doralice. Seu nome artístico no mundo circense era La Nueva Luz Del Fuego. Via-se dançando no tablado do picadeiro ao som da orquestra, envolta pelas três companheiras. E o suave ritmo da música ia lentamente se agitando em sua fantasia. Podia sentir o suor escorrendo pelo corpo enquanto revivia aquele número. Dançara até os acordes finais. E então, segurando uma cobra em cada mão e a outra enrolada no pescoço, agradecia, inclinando o corpo em sinal de respeito, os calorosos aplausos do público. “Ah... os aplausos....” Aquilo lhe valia mais que seu cachê. Era o seu oxigênio. O som das palmas ainda vibrava em seus ouvidos...
Seu olhar desviou-se da mala e pousou no saco de estopa ao lado. E o sorriso que estampava nos lábios subitamente desapareceu. Notou um rasgo no fundo do saco. Levantou-se num sobressalto e correu até a embalagem. Com as mãos trêmulas, desatou a cordinha que fechava a boca do saco e constatou o que não queria: uma de suas amigas havia fugido.

***

A noite estava agradável e o cansaço de Lucerda parecia se aliviar com o frescor úmido sentido junto aos tornozelos, pelos pacotes de carne empilhados debaixo do banco. Com o olhar perdido, a jovem balconista acompanhava displicentemente o movimento das ruas através da janela lateral do automóvel. Alternavam em seus pensamentos momentos de intensa euforia e profunda angústia. Queria ser famosa de qualquer jeito e aquele curso de corte e costura era parte de seu plano. Talvez o primeiro degrau da escada pela qual atingiria a fama. Seria uma costureira conhecida em todo o país. Via seu rosto estampado nos jornais e revistas de grande circulação. Os talk-shows das principais redes de televisão do país disputariam uma entrevista sua. Mas, de repente, voltou à realidade. Começou por maldizer o próprio nome. “Como poderei me tornar uma celebridade com o nome de Lucerda?”, questionou-se. “Acho que meu pai estava bêbado quando fez aquela montagem: ’Luc’ de Lúcia, que era o nome de minha mãe e ’erda’ de Lacerda, que era o sobrenome da família. Com isso ganhara dois “erdas” para si, um no nome e outro no sobrenome. Como se já não bastasse um! Bem, dos males o menor. Pior se minha mãe se chamasse Amália”. Vez ou outra, quando lhe ocorria tal lembrança, chegava mesmo a sorrir falando com os seus botões: “O velho deveria ter recebido o prêmio Nobel de Química com essa composição!”. Consolava-se, no entanto, com a consciência de que eram tortuosos e acidentados os caminhos da fama. Na hora oportuna, trocaria o nome.
Já próxima ao destino, voltou o rosto e a atenção para o animado motorista. Aquele homem de modos simples irradiava humildade e bondade com suas palavras. Contou-lhe que apesar de estar contente com a quitação do financiamento do carro, sua felicidade poderia ter sido maior se não tivesse apanhado uma passageira logo depois de sair do supermercado. Tratava-se de uma artista que acabara de perder o emprego em conseqüência do fechamento, naquela mesma tarde, do circo no qual trabalhava. Cortou-lhe o coração vê-la carregando uma malinha e um saco de estopa com seus pertences.
Naquele instante, Lucerda teve a nítida impressão de que a carne do churrasco, ao redor de seus pés, estava se movimentando. Tentou com um impulso se desvencilhar, mas não obteve sucesso, pois o que pensava ser um pedaço de carne, agora sentia enrolar-se às suas pernas até a altura das panturrilhas. Movida por puro reflexo, agarrou e puxou o estranho objeto com as mãos e o soltou sobre o colo. Percebeu então, com um grito desesperado, que o objeto era uma cobra!

***

― E agora vamos apresentar nossa última entrevista de hoje. Depois de muito custo, nossa equipe de produção conseguiu trazer para o programa “Você faz o Show”, a pessoa mais requisitada do momento. Ela tornou-se uma celebridade da noite para o dia devido a uma corrida de táxi e irá nos contar direitinho esta sua incrível história. Por favor, venha até a mesa, Lucerda!


Antonio Alfredo Matthiesen


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