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Contos-->Vida (quase) privada -- 24/07/2007 - 18:21 (Sandra Daher) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



Sentiu a presença das trepadeiras na janela, com suas flores miúdas e tons que iam do rosa ao encarnado, exibindo uma sutileza natural de cores próximas, reunidas em nichos arranjados, cada um, com duas ou três delas. O azul de tinta a óleo que cobria a madeira da folha da janela rústica, o quadro e a taramela, já meio fosco, indicava que o tempo havia passado, levando ainda consigo outros brilhos: o do assoalho, o dos móveis e o de sua própria identidade, não reagente, mimetizada com os materiais da casa. Apesar disso, sempre apreciou largamente o toque de ar fresco e, assim que percebeu, festivas, as árvores balançarem-se ao vento, dirigiu-se para levantar a vidraça e prendê-la nas presilhas do tipo “borboleta”, quando se deparou com grandes vidros sustentados por esquadrias aluminizadas, delimitando espaços inesperados!...

Surpreendeu-se então com a realidade que à sua frente se afigurava e ponderou que o vento seria enquadrado por um vão maior que o imaginado. Deslizou uma parte da janela no sentido horizontal e ofereceu seu rosto à fresca manhã com o pescoço alçado para a frente, antes de dirigir o olhar para um e outro lado. À esquerda, ainda atordoado com o constatado, mal observou o quanto de construção contígua ao espaço de sua propriedade havia daquele lado: umas duas ou três janelas mais, até o seu término. No entanto, quando virou-se à direita, do ponto em que estava até o mais distante, onde supôs tratar-se do limite da edificação, viu a parede alta reduzindo-se em perspectiva até estreitar-se muito e “apertar” as tantas janelas iguais à sua, de onde olhava. Num relance, “enxergou” aquelas suas flores, transferidas para mais adiante, misturadas com o azul da madeira pintada, formando um ambiente particular num conjunto avançado para fora, um oásis ali criado quando tudo o mais, antes e depois dele, era matéria repetida em tons acinzentados, originada por um sem fim de gestos que instalaram, em série, esquadrias e vidros padronizados – todas elas, por uma única escolha e todos eles, por uma outra.

Constrangeu-se com o achado, depois de ainda vislumbrar, curioso, antes de voltar à sala, um pássaro bicando algo naquele habitat propício. Sentou-se e pôs–se a pensar na pequena e impessoal quadratura que ele ocupava na proporção de toda a edificação, ao imaginar o desenho dessa, e localizando aquela no segundo quadradinho superior à esquerda, de um total de quarenta e oito. Ato contínuo, ocorreu-lhe que não deliberara na escolha do revestimento da parede externa e, o resultado, ainda recente, acabara por lhe causar desgosto e desconforto por sentir-se “vestido” sem qualidade e discrição, que eram a sua marca.
E sem se dar conta, entregou-se mais a esses novos pensares, desdobrando-os e concedendo-lhes espaço antes inexistente. Ainda há pouco, recordou-se, fora despertado por um habitual aroma de banho vindo de janela alheia que, embora agradável, maculara o desfrute de um seu eleito - com filigrana de odor previamente aprovado pelo sensível olfato – reservado para ocasião que iria experimentar a seguir . O mesmo compartilhamento se aplicou ao cheiro de café coado, que fez em seguida igual percurso, roçando-lhe as narinas, apetitoso, porém deslocado no tempo, antecipando em quase hora o início de seu dia. Isso sem mencionar com detalhes as melodias por vezes a ele impostas em altos decibéis, o toque do salto de um certo sapato passeando, frenético, acima de sua cabeça, além do latido insistente e incômodo de um cão aprisionado, rasgando o silêncio regenerador das tardes de domingo.

Formulou então precisa e definitiva a percepção de que seu mundo privado sofria de uma elasticidade permissiva, que facilitava a outros “viverem” a sua vida. Botou os pés no assoalho como quem se dirige para uma decisão, porém não sentiu firmeza ao perceber que estava acima do chão: acabara de sentir, forte, a vontade de “fincar-se na terra para plantar-se e crescer em frondes”. Nesse ponto, nenhuma evidência mais seria necessária para somar-se a essas que já constituíam um convincente arrazoado para si próprio; nada mais para frear-lhe as visões do paraíso imaginado que se multiplicavam , desmedidas, pois seu corpo já era todo desejo...
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Brasília, maio de 2007
Sandra Daher



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