CRÔNICA DO PEREGRINO
FACE MANCHADA DE TRAIÇÕES
A menina vende verduras com o carrinho de mão. Ele está só em casa. Ela bate no portão e entra. Leva alface. Como da última vez trocam olhares que não deviam.
Ele tem uma gráfica, uma microempresa, algo que durante anos com sacrifício construiu. O peito invadido pelo chumbo, o coração impresso em linotipos.Uma pequena gráfica que resiste aos tempos.O negócio está em decadência.Não dá para concorrer com o computador, mas sobrevive com convites de casamento, talões de nota fiscal, e vai assim levando.
A mulher de um cliente aparece com um frasco de perfume para vender.Está precisando de dinheiro.Ele pede que ela vá ao final do dia quando está fechando a gráfica. Ela concorda e vai.
Em casa dá flores para a mulher, trata-a com carinho e zelo.Ela jamais suspeitaria.
Mas há uma luta profunda dentro dele.A razão faz um esforço surpreendente para vencer a batalha, mas no domínio dos sentidos às vezes é difícil interferir.O corpo parece que tem as suas próprias leis e às vezes não é o cérebro que comanda.São argumentos que tentam justificar uma alma atormentada pela impossibilidade de se olhar no espelho, pois nele sempre estará refletida uma face manchada de traições.
Que frases seriam pronunciadas para justificar as traições? Mas ela, a traição, revela um egoísmo, um quadro de consciência imperfeita. A consciência é fruto de um treino, uma persistência.Não é fácil! Em alguns casos, a consciência, por mais bela que seja em alguns aspectos, revela a fera que protege e esconde em si.
Parece que há uma necessidade de trair, mas não é isso, é fraqueza, é a batalha cruel.
O homem precisa ter um suporte, uma fortaleza interior, ou então, amor.
Quem ousa de amor falar, corre o risco de citar o seu nome em vão.
A busca é essencial. Buscar o outro diariamente, nos pequenos gestos, nas palavras mais simples, afetuosas, desarmadas, mas ele, prisioneiro das ilusões, só pensa no seu desejo, na sua satisfação.Talvez isso signifique ser homem.
O habito é um mal, contra ele é difícil uma ponderação, uma atitude, uma interferência.
Já tentou em conversas com amigos argumentar que é a natureza do homem, não tem idéia do que seja herança cultural. Afinal, não é difícil preencher um bate-papo.
Seria bom se ele se afastasse um pouco e na solidão refizesse o pensamento, pegasse um espanador mental.Lucraria tanto com isso! Ou melhor, poderia olhar o rosto da companheira, o rosto claro, cristalino, sem uma mancha sequer de traições, mas por enquanto, a face com a qual convive é a que ele mesmo construiu.
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MARCIANO VASQUES
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