No fim dos anos sessenta, início dos setenta, as festas dançantes de término de curso era a grande atração da cidade no mês de dezembro. Havia festas todos os dias. Do dia primeiro ao dia trinta e um de dezembro, de domingo a domingo, era festa por cima de festa. Os conjuntos, nome dado à época às bandas atuais, faturavam o mês inteiro. Às vezes, como o tempo era curso, com tantos colégios querendo festas, e sendo janeiro mês de férias, as festas se estendiam até janeiro.
Havia festa para cada curso que se terminava. Naquele tempo, os cursos eram: primário, ginásio, científico e superior. O primário não sei qual seu correspondente hoje. O ginásio e o científico, parece-me que correspondem aos ensinos médio e fundamental. Mas isso não interessa. O que interessa era que para todos os cursos terminados, exceto o primário, havia festas de formação. Patrocinadas pelos concludentes, como conhecidos os alunos que terminavam qualquer curso, com apoio dos colégios e das faculdades que se orgulhavam das comemorações.
Hoje em dia, parece que não existem mais tais comemorações, se existem é muito restrita, mas também pudera com o ensino brasileiro do jeito que vai, comemorar o quê? Mas deixa isso pra lá.
Quem gostava de festa podia escolher à vontade.Era só arranjar convite, depois de escolhida a festa, e estava quase tudo arranjado. Quase tudo, porque tinha apenas um ingrediente à parte; dor de cabeça de muitos. Um paletó. Como a maioria de nós, adolescentes, era lisa mesma, nem todos podiam comprar paletó, nos virávamos como podíamos. Pedia-se emprestado, comprando-se mais barato, de segunda mão, o importante era a festa. O traje, contanto que fosse paletó e gravata, era de somenos importância. Ninguém ligava. Alguns clubes mais exigentes só aceitavam passeio completo, ou seja, terno igual. Nada de blase, paletó e calça diferentes. Tinha um, o Clube de Regatas Barra do Ceará que, o mais exigente de todos, não aceitava paletó e calça da mesma cor com padrão diferente.
Na realidade, os convites era pura formalidade, como as festas era grátis, dava-se um jeito. Não havia aquela vigilância tão rígida. Na falta de convite, virávamos sócios atletas, ou seja, pulava-se o muro; quando não se conseguia convencer o porteiro a nos deixar entrar sem convite. Mas quase todo mundo entrava. Claro que tinha as exceções, ou seja, os clubes que eram mais rigorosos, mas sempre conseguíamos burlar a vigilância quando não estávamos dentro dos padrões exigidos, se a festa se pronunciava boa e valia a pena o sacrifício.
Dependendo do colégio, as festas eram umas mais concorridas que as outras. Claro. Isso porque, na época, na maioria dos colégios havia separação entre homens e mulheres. Poucos eram os colégios mistos, isto é, aqueles onde estudavam homens e mulheres num mesmo período, e esses eram sempre particulares. Os colégios públicos geralmente eram somente para homens, ou para mulheres. Digo geralmente, porque havia os colégios onde estudavam homens e mulheres, entretanto separados por turnos. Já os colégios religiosos eram específicos para homens, ou para mulheres, não havia nem mesmo divisão por turno.
O Colégio Justiniano de Serpa, hoje Escola de Ensino Fundamental e Médio Justiniano de Serpa, era conhecido por Escola Normal, colégio público somente estudava mulher. Diga-se de passagem, um dos melhores do Estado naquele tempo. Eram três turnos repletos de mulheres. Embora suas festas fossem divididas por turnos e turmas, ainda assim tinha mulher para dar no meio da canela. Imagine três turnos: manhã, tarde e noite, com no mínimo seis turmas por turno terminando o curso, e cada turma com aproximadamente cinqüenta mulheres, dava umas novecentas mulheres se formando. Por isso, era a festa de formatura mais concorrida da cidade. A juventude toda queria ir, só pensando na quantidade de mulheres na festa. Além das concludentes, as convidadas. A briga por um convite era feia, pois mesmo se dando um jeito como sempre dávamos quando não tínhamos convite, nas festas da Escola Normal isso se tornava mais difícil pela concorrência. Contrário das festas dos colégios masculinos, que poucos queriam ir, imaginando que só tinha macho. Às vezes a lógica se invertia, justamente pela imaginação sa concorrência. Mas vamos em frente com o nosso assunto principal.
Mas devido à badalação da festa, aconteceu esta história. Pois bem, certo domingo à noite me encontrava em casa sem nenhuma pretensão de ir a festas, não sei bem o motivo do desânimo, mas não estava a fim de sair, coisa rara, pois não era muito do meu feitio passar o fim de semana dentro de casa. Invariavelmente, sábado, domingo e segunda-feira só chegava quase de manhã, vindo das festas. Normalmente, a não ser quando muito promissoras, não ia a festas de meio de semana.
Entretanto, naquele domingo estava sem ânimo, quando chegaram dois amigos de farra: Paulo e Carlos. O Paulo adolescente com eu, mais velho apenas um ano; o Carlos já maduro de uns vinte e dois a vinte e cinco anos. Farrista, tocador de violão, companheiro de vários anos de farra; o Paulo amigo de muitos anos, com que até hoje mantenho contato, também farrista, mas daqueles amigos que sempre tira proveito de uma oportunidade para se livrar de um bronca. Não mau caráter; esperto. Não é aquele cara que vai te meter numa fria, mas nunca em situação que não tenha maiores conseqüências. Contundo, se surgir um problema, e ele pudesse tirar o corpo de fora e deixar o teu, ele fazia na maior. Na realidade, a expressão correta para ele é “entregão”, como se diz na gíria, ou melhor, dedo-duro. O Carlos já faleceu há alguns anos.
Todavia, voltando aos meus amigos, eles me convidaram para ir à festa da Escola Normal que se realizaria no Clube Iracema. Aqui um aparte. O Iracema era um clube fechado, que funcionou em Fortaleza até meados dos anos setenta, hoje fica lá a Receita Federal. Muito bem freqüentado, que às sextas-feiras promovia uma tertúlia maravilhosa. Tertúlia era o nome dado aqui no Ceará às festas dançantes, sem cunho formal, ou seja, num término de curso, chamávamos a comemoração de festa, já uma festa sem qualquer finalidade específica, chamávamos tertúlia.
Porém, como não estava muito disposto a ir à festa, disse aos meus amigos que não ia por não ter convite. Sem perda de tempo, e como sempre gostávamos de sair numa turminha, eles perguntaram desde quando falta de convite era empecilho. E não era mesmo. E de mais a mais acrescentaram: nós temos aqui um convite e uma carteira da imprensa. O Carlos fora ou era funcionário de um jornal aqui do Estado e tinha carteira de jornalista, era apresentar e entrava. Assim, só faltava um convite, o meu. E isso não seria tão difícil de se resolver. Lá a gente se virava. Convenceram-me, e fomos.
Quando chegamos ao Iracema, havia um carro parado e uns sujeitos se preparando para pular o muro. Aproveitei o embalo, e nem fomos atrás de outro convite, e pulei também. Cai num monte de cal. Não precisa explicar, paletó e calças pretas, como ficaram. Brancos totalmente. Do monte de cal, fui direto para o banheiro tentar me arrumar melhor; limpar as calças e o paletó.
Depois de dar um jeito na aparência, fui à luta. Procurar alguém para dançar. Arranjei logo uma concludente. Depois de dançar um pouco, e começar um namoro foi rápido.Assim, saímos para o lado da piscina. De vez em quando aparecíamos na mesa da família dela. Família, eram todos os parentes e aderentes reunidos numa imensa mesa para comemorar a formatura da garota, de quem sinceramente não lembro o nome, uma falha imperdoável, mesmo já fazendo tanto tempo.
Mas fazer o quê? A memória é assim mesmo, nos prega peças imperdoáveis.
Depois de passando algum tempo, bem tranqüilos, um namora gostoso, num local propício, longe dos olhares vigilantes da família, alguém bate nas minhas costas. Virei-me e dou de cara com uma garota. Estranhei, pois não a conhecia. Mas ela foi logo perguntando:
- “Teu nome é Henrique?”
- Sim, respondi.
- “ A Mazé mandou chamar você para dançar com ela, disse a garota.”
- Mazé? Quem é Mazé? Não conheço nenhuma Mazé.
- “Aquela que mandou um convite para você.”.
- Piorou. Convite? Não recebi convite nenhuma!
Como já tinha tomado umas, disse-lhe que para entrar no clube tive de pular o muro.
A menina se desculpou e foi embora.
Mais tarde, minha namorada também foi embora com os pais e eu fiquei só e, novamente, fui atrás de um par para dançar. Nisso dou de cara com uma velha conhecida das tertúlias no São João do Tauape, um bairro de Fortaleza, com quem tinha costume de dançar, de quem, entretanto, não sabia o nome. Mas isso eu explico: naquele tempo já havia o fico das tertúlias, mas um fico somente de se dançar, diferente do atual. Era muito comum nas tertúlias se encontrar as mesmas pessoas, e muitas vezes nos identificávamos dançando, e ficava somente naquilo de dançar. Às vezes, dançávamos com o mesmo par até terminar a tertúlia, sem conversa, somente dançando. No fim da tertúlia, era cada qual para seu lado, sem compromisso. Até o próximo encontro, ou melhor, à próxima tertúlia. E essa menina era uma das minhas companheiras de festa.
- Vamos dançar, convidei-a?
- Não, respondeu bem abusada.
- Porquê?
- Tu disseste há pouco que não me conhecias, mesmo eu tendo mandando um convite pra ti, e queres agora dançar comigo? Nada feito. Não vou.
- Ah! Tu és, a Mazé? Como poderia saber, se não sei teu nome e não recebi convite nenhum para esta festa? Como disse à tua amiga pulei o muro para poder entrar. Falar assim era a coisa mais natural naquela época, pois todo jovem se vangloriava de ter entrado em um clube qualquer pulando o muro. Era uma aventura.
- Mesmo assim, não vou dançar contigo, respondeu mais emburrada ainda...
Do lado, estava uma irmã mais velha dela, e nós nos conhecíamos, mesmo sem que eu soubesse o nome dela também. Contei-lhe a história e os detalhes. Ela olhou para a irmã e disse:
- Vai dançar com o rapaz. Ele tem razão. Como ia saber quem tu eras, se não recebeu convite para a festa?
Em obediência à irmã, ela foi. Dançamos o restante da festa. Depois foi cada um para seu lado.
Com Mazé morava perto da casa da namorada do Paulo, e tinha mandado o convite pra mim por ela, no dia seguinte, foi procurar o Paulo para tirar a limpo aquele assunto. E o motivo dele não haver me entregue o convite, e nisso contou o acontecido. Paulo, como disse antes, esperto, procurou logo uma saída, e saiu com essa:
- Quando tu mandaste chamar o Henrique, ele estava com alguma mulher?
- Estava. Respondeu a garota.
- Foi esse o motivo dele dizer que não te conhecia, mas claro que entreguei o convite. Ele ti conhece muito bem, e também sabe teu nome. Na hora para não ser atrapalhado inventou essa mentira de pular muro e de não te conhecer. Agora, depois que ficou só, a paquera foi embora, foi ti procurar.
A Mazé, saiu dali furiosa comigo. Passado alguns dias, encontrei-me com ela no Centro da cidade, para quem me dirigi. De imediato, quando me viu indo em sua direção, mudou de calçada, e ainda deu rabiçaca, termo antigo usado para mulheres, quando passavam por uma pessoa que não gostavam, e viravam a cabeça com força para o lado contrário da pessoa com quem não queriam falar.
Depois disso, nunca mais ela falou comigo. E eu fiquei sem entender nada, até porque naquela noite a coisa tinha evoluído mais entre nós dois.
Na primeira oportunidade quando encontrei o Paulo, contei o acontecido, inclusive falei do convite. Ele, como disse não perdia a oportunidade de se sair bem, mas assim como contara a história lá dizia do outro lado também, tinha essa vantagem não negava o que fazia, e me disse:
- Ora, eu ia bem dizer que tinha ficado com o convite para ela ficar com raiva de mim. Aí me contou o diálogo narrado antes.