Comando quântico
Fernando Zocca
Quando Van Grogue era pequeno, por volta dos quatro anos, e ainda não tinha irmãos, foi levado por seus pais a morar numa casa pertencente ao espólio, isto é, ao conjunto dos bens deixados em decorrência do falecimento do seu avô, pai do pai dele.
A morte do avô paterno causou desorientação e surgimento da cobiça desenfreada entre os filhos; o pai do Van estava entre eles.
Por serem recém-casados e muito jovens, os pais do Grogue não tinham ainda casa própria para morar. E por isso mesmo residiam temporariamente com a vovó viúva e alguns tios do Van que também eram casados.
A convivência entre os muitos grupos familiares não era tranqüila; as discussões por causa da divisão da herança eram constantes e beiravam à loucura movida pela agrafia, jogatina e álcool; então o pai do Van clamou à sua mãe, viúva saudosa, que o deixasse morar num dos imóveis do espólio. Ela concordou, mas não pôde conter a onda de protestos e fúria dos demais herdeiros desejosos de receberem seus quinhões.
Mesmo sob contrariedade a família mudou-se e foi então que começaram a acontecer coisas estranhas e fenômenos ocultos.
Defronte a nova morada havia uma fábrica de carroças e carriolas duma família que também explorava a extração de areia das margens do rio Tupinambicas das Linhas. Era a família Adãomole.
No escritório dessa companhia, que tinha também oficina mecânica própria, bomba de gasolina a disposição dos seus veículos, instalada defronte à empresa, trabalhava Charles Adãomole, casado com uma irmã do pai do Grogue; ela era tia dele.
Logo depois da ocupação do imóvel, mudou-se na casa vizinha, que também era do conjunto da herança, uma família cujo pai freqüentava bares. O homem era baixo, barrigudo, tabagista, alcoólatra e ocupava a função de foguista na Rede Federal de Ferrovias de Tupinambicas das Linhas (RFFTL).
O contrato verbal de locação foi celebrado entre esse novo inquilino e um dos tios do Grogue, irmão do seu pai, que também era alcoolista.
Disseram alguns, anos mais tarde, que ambos conheceram-se num dos botecos existentes numa das esquinas da rua principal da cidade: no bar do Sacy.
O funcionário tinha três filhas e um filho; todos eram pequenos e ainda não freqüentavam o grupo escolar.
As crianças logo fizeram amizade como sói acontecer entre os pequenos. Nos dias de primavera à tardinha todos saiam a rua onde brincavam e tomavam a fresca.
Dois primos do Grogue, filhos de uma tia dele, irmã do seu pai, que já eram maiores, inconformados com o rumo dos acontecimentos, e diante da expectativa de verem seus desejos de botarem a mão na bufunfa, frustrados, resolveram empregar-se numa emissora da cidade.
Alguns poderiam perguntar: mas por que os primos do Van Grogue resolveram empregar-se na P.R.D Pimba, Rádio A Voz Agrícola de Tupinambicas das Linhas?
Ora, com a consciência obnubilada pelo ódio, que lhes causava a injustiça aparente, acharam que por ser a data da fundação da Rádio, 10 de janeiro, a mesma do aniversário do pai do Van, teriam melhores oportunidades para destruir a família toda.
Então quando o pequeno Grogue chegava de suas incursões pelas matas da redondeza podia ouvir estupefato a música “o quê ocê foi fazer no mato, Maria Chiquinha?”, a soar no rádio do vizinho pingueiro.
E quando chegava ele do grupo escolar, carregando sua lancheira, estojo e cadernos, ouvia sob os risos do pessoal que se acumulava na porta do escritório da fábrica dos irmãos Adãomole: “linda normalista... de azul e branco...” cantada por Nelson Gonçalves.
O segredo da mágica, somente anos mais tarde, pôde Grogue descobrir: Era o Charles Adãomole, criador de curiós, que morreu canceroso, quem ligava para seus sobrinhos lá na Rádio PRD Pimba, informando a movimentação das tropas.
Logo depois que se mudou para perto um médico psiquiatra, o doutor João Forasteiro, as brincadeiras, hostilizações à distância, murmurações, comandos quânticos, feitos pelos simpatizantes dos preteridos, levaram o ingênuo a bater nas portas do doutor. Van começava ali sua descida ao inferno.
|
