Usina de Letras
Usina de Letras
141 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62186 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22532)

Discursos (3238)

Ensaios - (10351)

Erótico (13567)

Frases (50586)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6184)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
cronicas-->Lito, A Síntese de uma Cidade -- 03/11/2000 - 00:43 (Luís Maximiliano Leal Telesca Mota) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Nenhuma outra figura que eu tenha conhecido ou ouvido falar foi tão popular e encarnou com tanta maestria todas as idiossincrasias de um local como José Carlos Telesca, Carlito, ou, como foi popularizado carinhosamente pelos amigos, Lito.


Parafraseando o que disse Camus em Calígula, a modéstia é um mal pelo qual não padeço, assim, posso vangloriar-me de ter convivido na intimidade com Lito. Quem não gosta de viver e privar dos segredos das celebridades? Em seu mais recente filme, Woody Alen fala que uma sociedade pode ser conhecida a partir de suas celebridades. Com certeza, a começar a observação pela figura de Lito, tem-se um bom resumo do que é a cidade de Canguçu.


Com efeito, fui um de seus mais assíduos convivas nos últimos anos de vida, quando, já com a robustez de um Cedro do Líbano, a figura exalava a sabedoria telúrica dos semi-analfabetos ao mesmo tempo em que libava Druri´s com Pepsi-Cola.


Teimoso, preconceituoso e ranzinza. Contudo, sereno e carinhoso em momentos de maior expressão. Decadente e glamouroso. Diziam-no intragável. Acredito que talvez na mocidade, quando o conheci, já na velhice, oferecendo ao freguês um pastel pendurado na mesma unha do minguinho que limpava o ouvido, era dotado de um carisma pessoal arrebatador. Enfim, a cidade como um todo latejava em suas têmporas.

Contribuiu para sua notoriedade a posição de ecónomo do Clube Harmonia. Após alguns anos, tendo saído desse local, viu-se no melhor ponto de comércio da cidade, incrustrado entre o Banco do Brasil (depois Prefeitura Municipal) e a Càmara de Vereadores e posicionando-se de fronte à residência oficial dos padres católicos. Assim, além de toda essa representação física e metafísica do poder gravitar ao redor dele, o establishment local também se forçava a passar pelo seu boteco para saber das últimas, ou simplesmente polemizar em um local mil vezes mais charmoso que o Café Aquário de Pelotas.


O estabelecimento comercial propriamente dito era de uma pobreza franciscana, apesar de o dono ser abastado para os padrões locais. Milhares de latas de salsichas, sardinhas e vasilhames de destilados com idade média de 10 anos compunham o estoque. Nas paredes, os indefectíveis times campeões do Grêmio, um afilhado seu que teria sido júnior desse glorioso clube, mapas-múndi onde os frequentadores discutiam a política internacional, gravuras de mulheres dos anos sessenta já amarelecidas e um termómetro em forma de navio que era, segundo o dono do estabelecimento, a representação da primeira embarcação que ancorara na Cordilheira dos Andes.


O mobiliário retró daria inveja a qualquer decoradora metida a besta. Móveis de pau-marfim escuro com pés-de-palito, um belo relógio de parede, uma mesa de jogo de cartas em uma peça contígua junto com caixas de cerveja e um cofre arrombado por uma talhadeira, pois o dono tinha esquecido o segredo.


Capitaneando essa nave rústica que servia de palco para porres comatosos e discussões acerca da finitude, encimado num balcão, uma figura profetizava, contava histórias e ensinava a arte dos excessos de um fumante inveterado e jogador já falido, o qual, sobretudo, era um romàntico que, no auge de suas bebedeiras, declamava os (apenas) primeiros versos de Amor com Amor se Paga.


Teimoso, Lito ía na contra - mão da economia brasileira que, montada em uma inflação galopante, fazia os preços das mercadorias subirem dia-a-dia. Mas Lito não acompanhava essa evolução diária e anotava para seus fregueses apenas o preço da mercadoria consumida, em lugar do produto. Assim, como o preço inexoravelmente se defasava, depois de um mês ele perdia com a inflação, pois cobrava o preço anotado sem correção monetária.


Bebedor de rara resistência, uma vez eu o vi detonar em um espaço de 12 horas três litros de whisky. Isso porque estava sozinho. Começou às duas da tarde quando o visitei para fumar o cigarro de depois do almoço. Já à noitinha fui a outro bar da cidade, o infelizmente efêmero "Convés" do Mano, quando pela meia-noite dali saí para a Boate do Cruzeiro, passando antes no Lito para comprar cigarros para mim e Isan. Para meu agrado, vislumbrei o Comandante ainda feliz do meio para o final do segundo vasilhame. Voltando, lá pelas cinco e meia, o Lito estava petrificado e encostado no balcão na posição clássica dos cotovelos e cabeça baixa entre os braços. Aquilo era o final de um terceiro litro de uísque.

Fiquei realmente preocupado daquela vez. Acho que ele dormiu uns dois dias e, com medo de acontecer o que sempre se especulava, que ele apareceria morto um dia, no final de uma tarde, fui até o seu bar receoso de não encontrar as portas abertas. Mas, mais pela teimosia do que pela graça divina, lá estava o Coronel, sozinho e lutando contra uma televisão preto e branco que só pegava a Globo, e, calmamente, tomando mais um Druris com Pepsi-Cola.


Mirá-lo, naquelas condições, era o vislumbrar de um paradoxo, um suicida em doses homeopáticas que vivia incessantemente uma vida autodestrutiva, que, não obstante o drama, conferia à cidade alguma cor romàntica, a qual ficava mais viva quando se reuniam na volta do velho os boêmios tradicionais da cidade. Como era um ponto cult, algumas peças raras da inteligência da cidade por ali travavam discussões teóricas que íam até o amanhecer. Do alto do balcão, Lito mediava o debate com ar de censor, não admitindo excessos verbais no recinto e, quando um orador se fazia por demais loquaz, lhe declarava sumariamente a perda do debate e fechava as portas do boteco.


Um fato interessante era o que demonstrava o total desapego material da figura, à extrema confiança que depositava em seus convivas, ou simplesmente, preguiça. É que quando estava bebendo junto com seus seguidores jamais se dispunha a pegar a bebida para eles, de modo que o Bar do Lito foi o único self-service de bebidas alcóolicas de que me lembre até então. No mínimo o precursor.


Solteirão, frequentador da zona da cidade em tempos idos, talvez o seu caso de amor mais fiel tenha sido a amizade com o cachorro Negrinho. Da mesma forma como nunca vi uma pessoa retratar tão bem as características de um local como o Lito, também pode ser dito com propriedade que jamais se viu um animal personificar de maneira tão fiel as manias de seu dono. Negrinho tinha os mesmos problemas respiratórios, o mesmo defeito na perna que o fazia renguear, o mesmo olhar enviesado e, sobretudo, o mesmo tom de voz, (visto que Lito mais resmungava do que qualquer coisa).


A cidade de Canguçu, como de resto são todas as cidades da zona sul do Rio Grande, tem hábitos muito ligados à tradição gaudéria conservadora, com a economia ainda girando em torno de uma agropecuária quebrada e de uma tradição política reacionária. O Bar do Lito era, e, mais propriamente a figura do velho, o personificar de toda uma decadência local, porém, também simbolizava o resistir de uma geração que se propunha a algo, mas que estava mergulhada no vício, não dos líquidos que catalisam emoções, mas naquele que busca às cegas alternativas de há muito ultrapassadas.


Falido e sem nenhuma liquidez financeira, Lito foi um homem do interior que venceu na vida sob o ponto de vista patrimonialista, representando fielmente toda a região do deserto verde do Rio Grande. Dizia-se racista e dono de convicções preconceituosas, mas jamais o vi maltratar um negro, pelo contrário, era carinhoso com eles. Ligado às tradições políticas locais que levaram a cidade a ser uma das mais pobres do RS, o seu bar, todavia, era um palco da democracia.


Por volta de 1996 Lito morreu. Dizem que foi de càncer, mas eu acredito que o que trouxe o seu fim foi o desgosto com a vida. Apesar de todo o glamour que cercava a sua imagem, ele era um solitário que já andava desesperançado, a exemplo de toda comunidade que representava. Com certeza a desilusão com a entrada de uma fase económica mais cruel na cidade contribuiu para o seu ocaso. Os amigos mortos ou falidos, a saúde debilitada, e a morte de Negrinho fizeram com que Lito desistisse, não no sentido suicida, mas na acepção do entregar os pontos para uma realidade inexorável.


Lito era Canguçu. Com sua morte a cidade perdeu quase toda sua graça, perdeu seu simbolismo representado num ídolo carrancudo, porém afável e, pairando sobre qualquer diagnóstico, viu desaparecer o contraponto que amenizava com o charme característico dos capiaus a sua ignorància.


LMT em 09/10/00
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui