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Artigos-->O TEMA DO DUPLO NA LÍRICA DE LILA RIPOLL (1) -- 12/11/2002 - 23:34 (Antonio Donizeti da Cruz) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
OS DESDOBRAMENTOS DO EU NA LÍRICA DE LILA RIPOLL (1)



Antonio Donizeti da Cruz (2)



“A verdadeira poesia – a invisível,/ toca de leve a fímbria/ dos meus versos. Mas permanece/ intacta no seu mundo.” (LILA RIPOLL, 1998, p. 274).



RESUMO: O presente texto tem por objetivo apresentar o tema do duplo na lírica de Lila Ripoll, poeta nascida em Quaraí, RS. Buscar-se-á uma abordagem teórica sobre o desdobramento do eu, a memória, o mito, mais precisamente o mito de Narciso. Na poesia ripolleana, tais temas constituem recursos literários centrados no problema da identidade, na paradoxal visão de mundo e na interrogação da própria essência da linguagem.



PALAVRAS-CHAVE: Lila Ripoll, Lírica, Desdobramentos do eu, Espelhos, Mito, Memória.



A poesia de Lila Ripoll apresenta temas que se intercruzam numa rede de sentidos. A poeta desenvolve em sua obra poética o mito (mais precisamente o mito de narciso, com ênfase no tema do duplo, nas imagens dos desdobramentos do eu, no tema do espelho, retrato, reflexos, sombras, entre outros).

Lila Ripoll nasceu em Quaraí, RS, no ano de 1905 e faleceu em 1967, em Porto Alegre, RS. A obra poética publicada pela poeta entre 1938 a 1961, compõe-se de sete livros, de que foi realizada somente uma edição: De mãos postas (1938), Céu vazio (1941), Por quê? (1947), Novos poemas (1951), Primeiro de Maio (1954), Poemas e canções (1957) e Coração descoberto (1961). Quando do Golpe de 64, Lila Ripoll foi presa e libertada pouco tempo depois por estar muito doente. Faleceu em 1967, e deixou uma obra quase desconhecida. Cumpre destacar que a poeta sempre teve o reconhecimento dos escritores. Em 1954, Ripoll presidiu a seção regional da União Brasileira dos Escritores e organizou em Porto Alegre o 4º Congresso Brasileiro de Escritores. No ano seguinte, a poeta recebe o Prêmio Pablo Neruda da Paz. Tendo em vista o seu engajamento, Ripoll elaborou ao longo de sua trajetória uma lírica intimista que evoluiu para uma concepção dilacerada da existência.

A lírica de Lila Ripoll se aproxima em muito com a poesia de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Mário Quintana, Helena Kolody, entre outras vozes da lírica brasileira. Ripoll desenvolve uma poiésis em que privilegia a síntese poética e os questionamentos, marcas estas da modernidade.

Na obra Lila Ripoll: obra completa, as imagens do desdobramento do eu aparecem de maneira nítida. Há, também, um entrelaçamento de temáticas: a religiosidade enquanto experiência de vida, a infância, o tempo, a solidão, a memória, a efemeridade e permanência, o humor, a ironia, entre outras. O fazer poético também fica notório no realce ao amor às palavras, à metapoesia, ao diálogo com o leitor, à comunicação literária.

Para Alice Campos Moreira, Lila Ripoll, laureada com dois relevantes prêmios de poesia, é uma das mais autênticas vozes líricas da literatura sul-rio-grandense. E salienta:



“A ela se deve a elevação do nível estético do discurso poético feminino, presente desde as primeiras manifestações literárias do Sul do País. Os efeitos líricos que emanam da musicalidade e da simplicidade temática de seus versos, de comunicação imediata, permitem aproximá-la dos mais altos representantes da poesia brasileira” (MOREIRA. In: Lila Ripoll, 1998: 11).



No dizer de Maria da Glória Bordini, a lírica ripolleana percorre caminhos palmilhados pela lírica mundial, evidenciando temas como a indagação da morte e do amor, o compromisso social, o memorialismo fixado na infância, entre outros. Para a autora,



“A poesia de Lila Ripoll hiperatrofia o Eu em relação ao mundo, bem ao estilo dos neo-simbolistas do Sul dos anos 30 e 40. A corrente simbolista que perpassa a poesia rio-grandense desde o início do século, cultivando o intimismo doméstico e a solidão mórbida, antes que simples escapismo, numa época de convulsões políticas e sociais que o romance se encarregaria de denunciar, parece representar a negação dessa espécie de mundo injusto, ao qual não se permite que ingresse sequer nos limiares do poema.” (BORDINI. In: Ilha difícil, 1987: 11-12).



Nesse sentido, Bordini observa que na lírica de Ripoll a negação não se efetiva “pela ausência das questões sociais, mas pela impossibilidade de conviver com o transitório e as perdas que atingem todos os homens e que levam o sujeito lírico a identificar-se com os pequenos, os despossuídos, em virtude da magnificação dessa dor de existir que afeta para além de sua capacidade de resistência” (id.; ibidem).

Através do ato de nomear, de poetizar o mundo e de dar sentido às coisas, o poeta faz da linguagem uma viagem em versos. Mediante os desdobramentos do eu e da atividade criadora, o “artífice da palavra”, enquanto viajante no e do mundo, reafirma sua condição de exilado, tal como nos versos do poema “Viagem”, de Lila Ripoll, em que o eu-lírico declara: “Andei viajando. Subi montanhas./ Sóis que eram brasa queimando o céu./[...] Estradas longas, estradas longas,/ abrem desejos na alma da gente./ Sonho aventuras. Andar pra frente./ Nunca pensar no que pode vir./ Ter sempre pressa para chegar,/ e sempre pressa para partir” (1998, p. 62-63).

Na poesia, o tempo implica na questão ontológica. Ele é como que uma descontinuidade ritmada da espiral, do círculo e do eterno retorno. Mas também há os momentos únicos do poeta perante o fazer poético e o exercício da linguagem revelando-se em canções, mesmo que os questionamentos remetam para a dúvida, tal como os versos do poema “Canção da dúvida”, de Lila Ripoll: “Tua palavra é forte./ Teu rosto, inquieto.// Eu acompanho o movimento/ do rosto e das palavras.// Eu acompanho o movimento/ das nuvens e do vento.// Mas onde vão as nuvens?/ E qual a direção... do vento?” (1998, p. 238).

Os questionamentos do eu-lírico sobressaem no texto. Já o fazer poético de Ripoll apresenta como marcas de humanização, ou seja, uma construção textual embasada no projeto de valorização da natureza e no olhar atento da poeta que faz de sua lírica uma forma de projetar o pensamento e (re)invenção das relações entre o eu e o mundo. Sua arte poética reside no diálogo com a inconstância das coisas e dos acontecimentos exteriores frente à paisagem natureza-mundo.

A poesia ripolleana está alicerçada na busca memorável e densa das palavras e na concretização de um fazer poético centrado na força do lirismo nostálgico. Assim, o fazer poético ripolleano tem suas bases principalmente na procura da palavra exata para efetivar a comunicabilidade lírica.

Os versos singelos do poema “Esboço”, de Lila Ripoll, apresentam pinceladas leves, rápidas, com um lirismo intenso: “Um leve traço/ de luz, ligeiro./ Um sol escasso, meu rosto inteiro.” (1998, p. 227). Tal como o rosto que se mostra por inteiro, a poesia é força transformadora e energia vital. Assim, a lírica de Ripoll é marcada pela rapidez, pelos traços ligeiros, que revelam a exaltação intensa da vida e a constante interrogação do sentido da vida. Já o ato criador é uma luta de corpo a corpo com as palavras em que a poeta se dedica sem tréguas ao seu ofício de lapidar as palavras. Através do fazer poético e da força das palavras, Ripoll realiza o poema – ser de palavras – enquanto experiência humana concreta de busca de liberdade e revelação.

O tema do desdobramento, a princípio, se refere à existência do outro, que duplica a existência do sujeito lírico. O tema do eu e o outro, são regidos por uma coerência que lhes confere unidade, relacionado ao tema do duplo, no qual reflete uma inquietude metafísica, que aponta para uma profunda reflexão sobre a vida e a literatura.

No texto “Retorno”, o eu-lírico (re)memora o passado e centra a enunciação no memorialismo fixado na infância e na indagação frente as solicitudes da vida e também nas perdas: “Diante do velho poço,/ fiquei olhando as datas/ que só eu conhecia.// As uvas maduras tinham sabor de infância/ nos meus lábios/ e as árvores me estendiam os braços enrugados.// Com elas conversei quase em surdina.// Ai que sonhos, os meus sonhos!// – Onde terá perdido a face daquele tempo? (1998, p. 228). A indagação do eu poético é uma constante na lírica ripolleana. A linguagem metafórica, o mito de Narciso redivivo no ato de olhar para o “velho poço”, o diálogo do sujeito lírico com as árvores e a visão onírica, são elementos de integração do eu com a natureza.

Em “Quatro poemas de amor”, o eu-lírico declara: “Eu te amo com uma intensidade/ que me assusta em me perturba. Tu vives em todos os meus sentidos,/ e na forma dos meus pensamentos.// [...] Sou como uma fonte clara e simples/ que reflete, no fundo, a mesma imagem.// [...] Eu vivo porque tu existes em todos os meus sentidos/ e na forma dos meus pensamentos” (1998, p.132). Na passagem ocorre a confissão amorosa do eu-lírico para com as palavras: “Nunca imaginei tão grande o peso das palavras. Dos pensamentos escondidos. Das confissões não enunciadas. Agora é tempo de avaliar./ [...] É tempo de pensamento e solidão./ Tempo de procurar em mim./ Tempo de me ver inteira num espelho” (“Estrelas e areias”, 1998, p. 272).

Os signos vida e morte fazem parte da vida do homem. Sob esta perspectiva, a poesia de Lila Ripoll tematiza a vida e a morte, apresentando imagens que se desdobram e que realçam a condição humana ante a finitude. Mediante as imagens dos desdobramentos do eu e da busca do outro, a vida necessária se concretiza frente à precariedade do instante e à certeza da morte, ou seja, o efêmero e o eterno instauram sentidos dicotômicos perante a vida: indelével viagem marcada por presenças e ausências.

O desdobramento (duplo) desempenha um papel de destaque na literatura. Todas as associações do duplo - sombra, espelho, reflexo - evocam a morte. Segundo Edgar Morin, a literatura narcisista aprofundou, entre outros temas antropológicos, o duplo tema de sobrevivência à morte e do temor da morte, que origina, um do outro, da contemplação do espelho. Toda a grande literatura do espelho remete ao amor e à morte (MORIN, 1988, p 163-164).

Para o filósofo Morin, o duplo não é cópia conforme, é um ser real que se dissocia do homem que dorme, que continua desperto nos sonhos. Sua existência é objetiva, mas é necessário não esquecer que essa existência objetiva é igualmente subjetiva. Assim, o homem atribui ao seu duplo toda a força potencial de sua afirmação enquanto indivíduo. É o duplo que detém o poder mágico, por ser imortal. O duplo triunfa sobre a vida e a morte. Consoante essa afirmação, entre o duplo e o eu existe uma dialética que se opera entre o eu e o cosmos. O eu molda-se e desenvolve-se no centro de todas as dialéticas. É por essa razão que o homem conhece seu duplo bem antes de se conhecer a si mesmo. É por meio dele que descobre a sua existência individual, permanente, as suas formas e realidades, de maneira objetiva (Id, p.94-95).

Segundo Juan Bargalló Carreté, o tema do duplo faz parte de toda a estrutura da literatura ocidental. Ele tem despertado interesse de investigadores e especialistas nas mais diversas áreas do saber, como a filosofia, a ciência da comunicação, a sociologia, a história da arte e de maneira especial, as literaturas dos diferentes países. A questão da oposição de contrários, no dizer de Dênis de Rougemont, citado por Carreté, encontra-se nos pressupostos básicos da doutrina dos mais antigos pensadores do ocidente, como Heráclito e Platão. Está latente no mito de Édipo, manifesta-se nas mais diferentes formas da literatura de todos os tempos, e determina um dos pontos básicos da crítica moderna, da sociocrítica, da psicocrítica freudiana e da mitocrítica de Gilbert Durand, sob o denominado “regime da antítese”.

Para Carreté, o desdobramento (duplo) é uma metáfora dessa antítese, ou dessa oposição de contrários, em que cada um encontra no outro seu próprio complemento. O desdobramento (aparição do Outro) é o reconhecimento da própria indigência, do vazio que experimenta o ser humano no fundo de si mesmo e da busca do outro para se preencher, ou seja, a aparição do duplo é a materialização da ânsia de sobreviver frente à ameaça da morte. O tipo de duplo que Carreté chama desdobramento e que Dolezel denomina duplo se produz quando “duas encarnações alternativas de um só e mesmo indivíduo coexistem em um só e mesmo mundo de ficção” (CARRETÉ, 1994, p. 15). Neste sentido, o referido conceito de duplo, de Carreté, ocupa o espaço central do campo temático do desdobramento.

Para Lubomír Dolezel, o tema do duplo goza de uma popularidade constante, tanto na tradição oral como na literatura da antigüidade, até na contemporaneidade, uma vez que sua permanência é plenamente evidenciada pela temática seletiva. Além disso, mesmo que a importância do tema do duplo na literatura e na temática tradicional possa justificar por ela mesma sua escolha para um reexame, numa perspectiva estrutural, tem-se uma justificativa especial: o tema do duplo está intimamente ligado a uma teoria semântica que fornece um quadro estimulante para a “semântica dos mundos possíveis”, que é um princípio de raciocínio e de imaginação que dá a cada indivíduo um inumerável conjunto de duplos (DOLEZEL, 1985, p. 464).

O desdobramento e a imagem devem ser considerados como os dois pólos de uma mesma realidade. Para Isabelle Tiret, a imagem torna-se qualidade mágica do duplo, por ela representar uma qualidade latente do tempo reencontrado. O duplo detém a força mágica. A simples imagem material produzida fisicamente por reflexão e que nós nomeamos reflexo detém a mesma qualidade. É o duplo ele-mesmo que está presente no reflexo da água ou do espelho. A magia universal do espelho não é outra que a do duplo. No reflexo, o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpáveis que constituem o outro. O outro sempre nos persegue, manifesta a evidente exterioridade do duplo no mesmo tempo que sua cotidiana e permanente presença (TIRET, 1995, p. 249-253).

Segundo Gilbert Durand, o espelho é parte do “processo de desdobramento das imagens do eu, e assim símbolo do duplicado tenebroso da consciência, como também se liga à coqueteria, e a água, constitui, parece, o espelho originário” (DURAND, 1997, p. 100). Para o autor, o reflexo na água é acompanhado pelo complexo de Ofélia. Mirar-se é já, de algum modo, ofelizar-se e participar na vida das sombras. O tema do espelho remete para dois mitos da antigüidade clássica: o mito de Narciso e o de Acteão.

Já o mito de Narciso tem uma relevância muito grande na nossa época. Ele alude à difícil tarefa de relacionamento com o outro, pois este é um elemento fundamental na constituição do sujeito.

Para Raïssa Cavalcanti, o mito de Narciso narra o surgimento da consciência, o seu desenvolvimento e a ampliação no processo do conhecimento. Ele expressa o “arquétipo” do nascimento da consciência a partir do artifício de mitificação do herói Narciso, no qual se encontram “o despertar da consciência, o nascimento do ego, da identidade e a ampliação da consciência e do conhecimento na busca da individuação” (CAVALCANTI, 1992, p. 12).

As articulações da linguagem no sentido de apresentar o tema do desdobramento (mito de Narciso, espelho, sombra, reflexo) se concretizam na lírica de Ripoll. Nos versos do poema “Manchas” (I parte), os temas do desdobramento do eu, do mito de Narciso, da ausência e da solidão ficam evidentes nas passagens, em que o eu-lírico declara:



Foi sempre tristeza. Tristeza remota, vinda quem sabe

de onde. De que desesperados apelos. De que exilado

sonho.

De que grandeza mutilada,



E foi também solidão. Secreta solidão.

[...]

Na rua alegre e colorida, foi uma mancha

de inútil dissonância.

Ninguém sentiu sua tragédia.

A ausência de seu riso.

A forma quase definitiva de seu rosto.



Um dia, inclinei-me sobre ela

Como quem se procura num espelho.

[...]

(1998, p. 223)



Entre presenças e ausências, o sujeito lírico, em meio a mais “secreta solidão”, parece lutar contra a passagem temporal, entre o ser e não-ser, presença e ausência, acentuada pela duplicidade. Tal como Narciso debruçado sobre a fonte, o eu-lírico inclina-se sobre “a mancha de inútil dissonância”. A tristeza, a melancolia e a solidão vivenciadas pelo eu-lírico contrastam com o colorido e a agitação festiva da rua.

Ainda em “Manchas” (II parte), a negação do instante se dá pela aceitação de um outro momento, o da poesia: “Não é meu este instante. É teu, Poesia./ É tua esta irreal melancolia/ que resvala da noite, das estrelas,/ das janelas abertas para vê-las.// Não é meu o momento que germina/ de uma antiga tristeza.// Nem a sombra que me divide em duas/ pela rua” (1998, p. 224). O eu-lírico feminino, “desdobrado”, complementa que mesmo que poesia multiplique o próprio rosto, ele a reconhece devido à melancolia que o atinge.

Em “Retrato”, os versos registram a sutileza de um fazer poético alicerçado na força da linguagem e no tema especular, em que o eu-lírico declara:



Chego junto do espelho. Olho meu rosto.

Retrato de uma moça sem beleza.

Dois grandes olhos tristes de agosto,

olhando para tudo com tristeza.



Pequeno rosto oval. Lábios fechados

Para não revelar o meu segredo...

Os cabelos mostrando, sem cuidados,

Uns fios brancos que chegaram cedo.

[...]

Meu retrato. Eis aí: Bem igualzinho.

O espelho é meu amigo. Nunca mente.

No meu quarto, ele é o móvel mais velhinho.



E sabe desde quando estou descrente!...

(1998, p. 40)



Note-se, nos versos, a capacidade criadora da poeta em dar sentido à sua construção lírica. Tal como Narciso busca a fonte, o sujeito lírico mira o próprio rosto no cristal do espelho. O espelho, aferidor de verdades, tem a capacidade de demarcar fronteiras entre o simbólico e o imaginário. No texto, o sujeito lírico trata o espelho como “amigo” pelo fato de ele não mentir e “saber” o sentimento de tristeza ou descrença que toma conta desse Eu que se desdobra.

Na lírica de Ripoll, há também o aspecto lúdico da linguagem, tais como nos versos do poema: “Canção de esconde, esconde”, em que o eu-lírico declara: “Solidão brinca comigo/ um jogo de esconde/ esconde. Desaparece um momento/ e surge não sei de onde.// Parece espelho partido/ pelo chão esparramado./ Mesmo que não pareça/ há o reflexo a meu lado./ [...] Solidão se esconde e volta,/ mói a vida, o sonho, o amor./ Ai! Jogo de esconde-esconde,/ esconde também a dor” (1998, p. 225).

O recurso dos desdobramentos do eu e do mito de Narciso para alicerçar um poema e, ao mesmo tempo, dar consistência a um elemento imaginário totalmente inusitado, são evidenciados na lírica de Ripoll. A criatividade da poeta está, também, na tentativa de encontrar um suporte imagético ao recorrer à mitologia, por exemplo, quando trata em sua obra poética sobre o mito de Narciso. O tema do desdobramento de eu aparece sob as mais diversas formas na poesia ripolleana. Assim, poeticamente, cada verso reflete a imagem do eu poético na amplidão do espelho, no reflexo, na sombra, entre outras formas de duplicação que o universo poético possibilita.



NOTA



(1) Este texto está vinculado ao grupo de pesquisa LBSM, “Literatura Brasileira: Sociedade e Mito”, composto pelos seguintes docentes de Letras da UNIOESTE: Rita Felix Fortes, Clarice Lottermann, Maria Beatriz Zanchet e Antonio Donizeti da Cruz. O grupo está certificado junto ao CNPq e os trabalhos encontram-se em fase inicial.

(2) Professor do Colegiado de Letras da UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido Rondon.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORDINI, Maria da Glória. Apresentação. In: ILHA difícil: antologia poética. Seleção e apresentação de Maria da Glória Bordini. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1987.



CAVALCANTI, Raïssa. O mito de Narciso: o herói da consciência. São Paulo: Cultrix, 1992.

CARRETÉ, Juan Bargalló (Org.). Hacia una tipología del doble: el doble por fusión, por fisión y por metamorfosis. In:__. Identidad y alteridad: aproximación al tema del double. Sevilha: Ediciones Alfar, 1994 (Colección Alfar Universidad, 80. Série investigación y ensayo).



CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionários de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.



CRUZ, Antonio Donizeti da. O universo imaginário e o fazer poético de Helena Kolody. (Tese de doutorado). Porto Alegre: UFRGS/Instituto de Letras, 2001. 2 v.

DOLEZEL, Lubomír. Le triangle du double: un champ thématique. Poétique, Seuil, n. 64, p. 463- 472, nov. 1985.



DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Ensino Superior).



ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

LILA Ripoll: obra completa. Alice Campos Moreira (Org). Porto Alegre: IEL: Movimento, 1998.

MORIN, Edgar. O homem e a morte. Mira-Sintra: Europa-américa, 1988.



MOREIRA, Alice Campos. Apresentação. In: LILA Ripoll: obra completa. Organização de Alice Campos Moreira. Porto Alegre: IEL: Movimento, 1998.



TIRET, Isabelle. Le réel et l’imaginaire ou la traversée du miroir. Sociétés. Revue des Sciences Humaines et Sociales. Paris, Dunod Reveues, n. 49. 1995. p. 249-253.























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