Tabaquinho. Tabaco fumo, rapé, vulva. Tabaquinho era o apelido de um amigo de infância. Não sei o motivo do apelido, mas apelidos nem sempre têm motivos. Entretanto, Tabaquinho, quando jovem, não tinha qualquer afinidade com o sinônimo de tabaco. Não fumava. Cheirar rapé era coisa de velho, e por seu tão feio, nunca poderia ser comparado a uma vulva, a uma vagina. A não ser que o apelido tenha sido colocado por algum veado, que não gostasse do produto, e em represália se vingou. Acho a justificativa mais plausível para o apelido. Mas aqui não vou discutir a semântica do apelido, mas narrar alguns casos do apelidado.
Tabaquinho sujeito magricela, cheio de sardas, rosto fino, quase sem lábio. Os lábios eram retos, com se no rosto tivesse sido dado um corte na altura da boca, onde ficou somente um rasgo. Realmente, ele era totalmente destituído de qualquer beleza física. Pernas cambotas e finas. Seus únicos atributos eram jogar bola muito bem, e se assim pudermos considerar, ser desde novo extremamente esperto, matreiro. Seu contato com os de sua idade se resumia praticamente ao futebol. Preferia, geralmente, andar só. Uma vez ou outra aparecia numa tertúlia, batia um papo. Sair com a turma raramente. Sua criação, porém, era extremamente rígida, mesmo assim ele só aprontava. Os pais muito religiosos; na época da mini-saia, a única filha, que tinham, andar de saia longa até os pés. Tabaquinho e o restante dos seus irmãos deveriam estar em casa, no mais tardar, as nove horas da noite. Senão o pau comia.
Como ia dizendo, Tabaquinho sempre foi matreiro, mas também muito azarado. Em diversas ocasiões se deu mal. Jogando bola, só para se ter uma idéia, quebrou o braço duas vezes. A segunda vez, no mesmo dia que tirou o gesso.
Certa vez, inventamos de fazer umas armas artesanais que eram carregadas com pólvora e espoleta para se caçar passarinho. Depois de prontas, fomos experimentá-las e não funcionaram de jeito nenhum. Um colega pegou uma das armas, brincando já que não disparara antes, apontou para o Tabaquinho, apertou o gatilho, não deu outra, o disparo saiu; acertou o braço dele que ficou cheio de chumbo.
Outra vez, umas vizinhas dele, garotas bonitas e boas, estavam tomando banho e o banheiro ficava rente a uma barreira, ele resolveu espiar, subiu na barreira, debruçou-se sobre o telhado, e depois de tirar furtivamente uma telha do banheiro, ficou olhando-as, extasiado. Lá em cima, muito empolgado, se distraiu, escorregou e caiu no terreiro da casa das meninas, o pai delas ao ouvir aquele barulho, correu e se deparou com o Tabaquinho no chão, logo deduziu do que se tratava, nem conversou: encheu ele de porrada.
No colégio, resolveu pular o muro numa festa, o vigilante quando viu, meteu um pedaço de pau na testa dele, que caiu de uma altura de uns dois metros. Isso são apenas algumas das muitas histórias em que ele se deu mal.
Mas como sempre foi matreiro, inventava qualquer coisa para arranjar dinheiro. Naquela época quase não havia roubos, assaltos. Havia malandragem. Os malandros buscavam uma maneira de enganar trouxas, usando a inteligência, sem apelar para qualquer tipo de violência. E nisso ele era mestre. Entretanto, nesse também se deu mal.
Outro amigo de infância convidou o Tabaquinho para passar um carnaval numa cidade do interior do Ceará. Arrumaram dinheiro pra passagem e se mandaram. Como o amigo que o convidara era da cidade, não havia qualquer problema de alimentação, nem de hospedagem. A festa à noite também estava garantida, faltava somente dinheiro pra bebida. Aí Tabaquinho resolveu improvisar, apelar, usando o pouco dinheiro que levara.
Nessa cidade, já no início da década de setenta, o consumo de drogas, principalmente, maconha, era grande. Sabendo disso, Tabaquinho foi nas farmácias e comprou todo o estoque de Melhoral que havia e pisou. Depois da mercadoria pronta: pisada e embalada, ele pediu ao nosso amigo que espalhasse pela cidade, que o Tabaquinho tinha levado um pó para consumo no carnaval e como era muito estava vendendo uma parte. Nosso amigo espalhou o boato, mas não se envolveu no assunto, deixando tudo por conta do Tabaquinho, conforme ele pedira.
Depois de espalhado o boato, à noite, rapidamente todo o estoque da droga foi vendido. Os viciados passaram a noite toda, cheirando Melhoral que não fez qualquer efeito. Acho que nem evitou ressaca nos que tinha tomado bebidas alcoólicas.
No outro dia, bem cedo, indignados, foram procurar nosso amigo para tomar satisfações e exigir o dinheiro de volta. Como ele não tinha nada a ver com o problema, explicou que tinha apenas falado o que o Tabaquinho pedira. E nem sabia do que se tratava, até porque nunca tinha se envolvido com drogas e nem conhecia.
Os viciados putos da vida saíram à procura de Tabaquinho por toda a cidade, para exigir o dinheiro de volta e ainda dar um pau nele. Nosso amigo, sabia onde ele se encontrava, foi lá e contou o que estava acontecendo, e mandou o Tabaquinho fugir rápido da cidade, se não quisesse apanhar.
A volta para Fortaleza, obrigatoriamente, teria de ser de ônibus, e os sujeitos se postaram nas paradas do ônibus a fim de evitar a fuga do malandro. Desesperado, não vendo saída para sua situação, ele avistou um caminhão parado, carregado de lenha, como a placa era de Fortaleza, depressa e sorrateiramente subiu no caminhão se deitou em cima da lenha, cobriu-se com uma lona e viajou cento e sessenta quilômetros numa estrada esburacada aos solavancos do caminhão até Fortaleza.
Escapou de apanhar, mas não sei se as porradas que levou em cima dos paus de lenha não tenham sido piores do que uma pisa.
HENRIQUE CÉSAR PINHEIRO
SETEMBRO/2007