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Contos-->A EXCOMUNHÃO DE BARRO PRETO -- 29/10/2007 - 09:45 (Moura Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O INTERDITO
A EXCOMUNHÃO DE BARRO PRETO
*Moura Lima

Corria o ano de 1900. Madrugada velha, 6 de julho. Um vento frio soprava pela imensidão dos cerradões e mataria - virgem do chão goiano, que se prodigalizava ao longe, exalando um cheiro bom da seiva revigorante e da florada dos pequizeiros, das taipocas, caraíbas, e dos frondosos paus-d’arcos, que não tardariam a enfeitar a paisagem com a abertura geral das flores roxas, amarelas, espalhadas pelas baixadas dos córregos e grotões profundos. O círculo mágico da natureza exuberante, que se vislumbra a léguas de distância, fechava-se num amplexo de força e vigor em torno da bela Campininhas das Flores – A Princesa dos Sertões Goianos!

O bispo Dom Eduardo Duarte da Silva, montado no seu cavalo de sela, tordilho, de boa marcha, partia de Campininhas à frente de trinta cavaleiros armados, de forma disfarçada, que o escoltavam de rota batida para o arraial de Barro Preto - a antiga vila da Santíssima Trindade do Barro Preto. A estrela boieira reluzia no firmamento. Ao longe um carijó madrugador sinalizou o romper da aurora, e, ao quebrar das barras, uma seriema estridulou o canto metálico, espantando a solidão dos ermos. Aquela cavalgada sinistra tinha a missão de acabar com a romaria, e retirar a imagem do Divino Pai Eterno de Barro Preto. E, acima de tudo, pôr fim naquela babilônia pecaminosa, de infiéis abusados e de maus costumes. Com efeito, era essa a visão do bispo, que se encontrava em pé de guerra com aquela gente sertaneja. Da primeira vez que esteve em Barro Preto, 1891, foi obrigado a sair correndo para não morrer na faca e no cacete. Era um povo de brio, que não deu o pescoço à canga, como o fizeram os de Muquém. Mas o bispo tinha razão de sobra: a côngrua, o padroado terminara. A Diocese era pobre e estava com o cofre vazio, precisava de dinheiro para continuar a sua missão evangelizadora. Não poderia ficar de cuia à mão, à moina, como um mendigo. A renda da romaria era administrada, há mais de meio século, por uma famigerada Irmandade de leigos. O dinheiro arrecadado era dividido entre o presidente, tesoureiro e secretário. Muita família pobre do lugar estava fazendo fortuna com o dinheiro do Divino Pai Eterno, comprando fazendas enormes e enchendo-as de gado. Contudo, naquela época, Barro Preto era uma verdadeira Sodoma e Gomorra, durante a romaria, onde se abrigavam nos seus meio boiadeiros caneludos, jagunços, capitalistas, carradas de prostitutas que vinham do Triângulo Mineiro, de Ribeirão Preto e de outras localidades. O reduto nos festejos era um covil de ladrões, criminosos e malfeitores da pior espécie. Os assassinatos por vingança, motivo fútil, eram uma prática comum, de quatro a cinco cadáveres. O dinheiro jorrava farto, e a jogatina dominava os salões. Barro Preto dava-se ao luxo de ter nos seus cabarés a famosa dança do 1can-can!

Todavia, apesar do antro trevoso e pecaminoso do arraial, existiam no seu meio as pessoas piedosas, cheias de fé, que mantinham a chama viva da luz perpétua do Divino Pai Eterno, e a sua misericórdia e compaixão. Eram como uma flor de Lótus num pântano fétido, que irradiavam a luz recebida. Eram os guardiões zelosos da palavra do Mestre Nazareno: - “As portas do inferno não prevalecerão contra a minha Igreja”!
Sua excelência, de capa preta tira-pó, sobre as vestes eclesiásticas e um chapelão preto à cabeça, que balançava as abas ao sabor da aragem, esporeava nervoso o cavalo, e revelava nos seus gestos uma satisfação interior imensa:

-A sua honra, a sua autoridade de príncipe da Igreja ia ser lavada! E repetia de si para si:

- Ai de ti, Barro Preto, serás excomungada!...

Dom Eduardo Duarte vinha de linhagem aristocrática, de berço opulento, o pai fora cônsul brasileiro na Espanha, e ele foi nomeado Cônego da Capela Imperial, confessor de Dom Pedro II e Capelão da Marinha. Em Roma formara-se pela Universidade Gregoriana, tornando-se doutor em teologia , filosofia e mestre em direito canônico. Poliglota, homem de elevada cultura. Fora um brilhante pregador nas principais catedrais de Paris, no seu impecável francês. Acostumado aos palácios romanos, à pompa, ao bom vinho, ao luxo e, de uma hora para outra, viu o seu mundo ruir, com a sua indicação para o bispado de Goiás. Resistiu,esperneou,suplicou e relutou, mas de nada adiantou, e o papa Leão XIII manteve a sua nomeação. E, sem choro e nem piedade, fora atirado à sua cruz, ao seu calvário, no chão bruto dos brocotós de Goiás!

E naquela lonjura do tempo, Goiás era um chão analfabeto, de gente ignorante. O bispo tinha mente avançada para a época, e queria transformar o sertão goiano numa civilização adiantada como a da Europa. Procurou por todos os meios acabar com as congadas, as folias, as cavalhadas, enfim os folguedos populares. Mas esquecia que eram esses folguedos que tiravam o sertanejo pobre do isolamento e os enchiam de alegrias. Com isso, ia povoando o seu caminho de inimigos. Interferiu na romaria de Muquém e foi ameaçado de ser moído no cacete de peroba-rosa. Suspendeu padre das ordens e incompatibilizou-se com o presidente de Goiás, e de mala e cuia mudou-se o seu bispado para Uberaba (MG), deixando órfã a Igreja Goiana. Quando aqui chegou, no território goiano, em 1891, dos 40 padres que encontrou apenas 05 guardavam o celibato; os demais eram amancebados, tinham amantes e filhos. Era uma igreja em decadência moral. Uma herança do bispo cego, 3Dom Francisco Ferreira Azevedo, que ordenou aleatoriamente 142 padres em 28 anos, sem preocupações culturais, entre eles, índios, negros alforriados e outros a peso de ouro. Para corroborar esse descalabro, o médico-botânico e pesquisador 4George Gardner deixou registrado que, ao passar por Natividade, Norte de Goiás, em 1839 encontrou três padres, todos eram pais de vários filhos com suas próprias escravas. O vigário geral era um mestiço, rico, de mais de quarenta anos de idade, havia-se ordenado poucos anos antes, à bruta; sem nenhum conhecimento teológico foi à cidade de Goiás e comprou a sua ordenação ao bispo. Tempos depois obteve, da mesma forma, com barras de ouro a compra do vicariato geral do distrito. Pois a carreira eclesiástica representava, naquela época, uma ascensão social e um vantajoso emprego público.
Dom Duarte era um bispo autoritário, temperamental e truculento. Não admitia que suas ordens não fossem cumpridas. E a prova estava ali, na sua viagem a Barro Preto, pois havia mudado de maneira grosseira a data da romaria, de primeiro domingo de julho para 15 de agosto, ao seu capricho, sem, pelo menos, consultar a população; e tudo isso, ás vésperas da festa. O povo, comandado pelo Cel. Anacleto e o professor Moisés Batista, não concordou com a mudança, simplesmente, ignorou-a, e levou adiante os festejos, conforme a tradição, e também, em respeito aos romeiros que vinham todos os anos, de tropas e carros de bois dos lugares mais distantes do sertão goiano. Mas, Dom Duarte, do alto de sua linhagem aristocrática e de seu orgulho soberbo, não aceitou a desobediência e, num ato autoritário, mandou fechar a igreja. Os romeiros que iam chegando para a festa do Divino Pai Eterno ficaram horrorizados com a atitude brutal do bispo. Os ânimos acirraram-se, e a rebentina desencadeou-se contra o bispo e os padres. Da multidão exaltada, que se formou à porta do santuário, elevavam-se os gritos, assovios e os ais dos empurrões. E do meio da gentalha à canzana, eufórica, que espumava de raiva, saiu cambaleando um cachaceiro asqueroso, instigado pelos mandões da terra, todo histérico, que atendia pelo nome de Joaquim Morais, a pontapés arrombou a porta da igreja, aos berros de um possesso:
-A igreja é do povo! Os padres não são donos! O bispo está querendo acabar com a romaria e retirar a imagem do Divino Pai Eterno!...Fora com os padres!...
Ao lado do bêbado encontrava-se um romeiro baiano, adepto da repioca, amulatado, de olho vesgo, mal-encarado, portando à cinta um enorme trabuco enferrujado, que resmungou furioso:
-Tenho costume de matar padre!... Já matei cinco; quero matar estes padres, estes ladrões!...
Um doido, de cabeleira descomunal, assanhada, hirta, não se sabe de onde saiu, riscou no meio da turba enfurecida, com um jacá à cabeça, cheio de couro fedorento, como um mau presságio, aos berros, gaguejou a sua maldição:
- O urubu de preto é o rei!.. Vai tudo pro inferno!
Uns afirmavam: - esse doido é de Curralinho, outros: - É de Vila-Boa! E tem o apelido de Arara-vermelha. E lá se foi o mentecapto, na direção do córrego Barro Preto, dizendo a sua sentença agoureira:
- O urubu de preto é o rei!... Vai tudo pro inferno!

O tendepá estava armado, logo chegou o coronel Anacleto, com seus fartos bigodes e uma calva em andamento, e foi entrando, todo espigado, para o interior da igreja, onde já se encontravam no altar os padres. E com gesto autoritário, tão peculiar aos tutanquebas do sertão, ordenou na sua voz de taboca rachada, aos padres Spaeth, Antonio Fischhober e ao irmão Ulrico:
-Como chefe político de Barro Preto, eu exijo as chaves do santuário. Uma vez que vocês, padres e o bispo, desrespeitaram o Divino Pai Eterno. Portanto, estão expulsos desta terra!...

E, ali, no aconchego da sela de seu cavalo marchador, que comia estrada, Dom Eduardo recordava, no conflito de sua alma, o seu calvário:
-Maldito de Dom Arcoverde, que escorregou de sua indicação, junto ao Santo Padre, e ardilosamente jogou a sua cruz em cima de meus ombros! ... Maldito Caifás!

E, assim, macambúzio, carregando o seu pesado fardo, seguia o pobre bispo, que fora no passado um pregador festejado nas catedrais de Paris. Agora, como provação de seu ministério, era atirado às feras, aos criminosos e coronéis desalmados. Não tinha como fugir do seu destino. E, quando o sol começava a dourar os verdes descampados, Dom Duarte chegou aos morros da fazenda de Estevão Baiano. No último morrote, parou por alguns minutos, debaixo de um pé de ingazeiro e contemplou na baixada acentuada, o córrego Bruacas. Do outro lado do córrego, um pouco recuado, ao fundo, projetava-se o arraial de Barro Preto, fundado em 1840, por Constantino Xavier, com suas 30 casas rústicas, de pau-a-pique e taipa, cobertas com folhas de buriti, com uma reduzida população de 200 almas. Avistava-se, destacando no cenário agreste, a igreja rústica, de telhas-vãs, toda caiada de branco, e saindo de um casebre, no horizonte, um fio de fumaça que subia para o espaço como uma reza mansa. O sol, já alto, banhava tudo, os campos distantes e a mataria verde suntuosamente.
Dom Duarte prossegue a cavalgada, e no córrego Bruacas pára para dar água aos animais. Do outro lado, com o barulho da tropa, um casal de curicaca, os guardiões e espanta-boiadas do sertão, saiu voando e emitiu o piar denunciador – tero! tero! E a poucos minutos de marcha forçada o grupo entra no povoado. Tudo calmo, silencioso como paz de cemitério. A vida, de maneira geral, parecia parada, como na preguiça secular das vilas sertanejas. Por entre as frestas de janelas e fendas de portas, olhos esbugalhados e ameaçadores observam a comitiva sinistra. Do outro lado do córrego Barro Preto, que cortava tangenciando o arraial, chegava aos ouvidos do grupo o som cavernoso de uma mão-de-pilão, pilando arroz: - tum!tum!tum! E um pouco no alto do lançante ouvia-se o aboio de gado e o som de um machado rachando lenha. Um cão vira-lata avançava na direção do cavalo do bispo; um dos cavaleiros atalhou ligeiro com uma pinholada no lombo do passa-fome, que saiu gemendo triste ganido pelo matagal. O grupo incontinenti seguiu pela tortuosa rua esburacada rumo ao santuário, onde fez alto no largo, de chão vermelho, poeirento, e desmontou. Do lado esquerdo do largo, pelado de capim, em razão da recente romaria, encontrava-se debaixo de um angico copudo, fazendo um carro de bois, o Geraldão carapina, que, despreocupado da vida, corria a enxó na mesa de cedro do carro. O seu auxiliar lapidava de machado collins uma sucupira preta, para fazer o eixo. Dom Duarte, após desmontar da alimária, correu com prazer pelo rosto suado o lenço de alcobaça, aspirou fundo o ar benfazejo da manhã, e mandou um menino pardo, que brincava na porta da igreja, chamar o sacristão para abri-la. Depois de um longo período que se arrastou de espera, finalmente apareceu um negro esfarrapado, à bambalhona, de semblante enfezado, vestido com um paletó rasgado às costas, calçado com um roto par de borzeguim, que mais parecia um moché de boca aberta, todo abusado, cheirando a pinga, dizendo ser o sacristão, e chamava-se Bilu. Um membro da comitiva, já irritado com o comportamento arrogante do negro, num tique nervoso tamborilava o chicote no cano sanfonado da bota; resmungou uma ameaça velada, rilhando os dentes;
- Quem não conhece o seu lugar, termina no relho!...

O sacristão, vendo a impaciência do grupo, quedou-se numa humildade franciscana e apressou-se em abrir a porta da igreja. O bispo, visivelmente zangado com o desrespeito do casca-grossa, ignorou-o e, com passos firmes, após descobrir-se, retirou o chapéu, as esporas e entrou no santuário. Pelas paredes da igreja, de ambos os lados, viam-se dependurados quadros, facas, pistolas e membros do corpo feitos de cera de abelhas; todos aqueles objetos representavam os milagres alcançados pelos romeiros. Viam-se pelo madeirame de aroeira do telhado morcegos grudados no ripão com suas cabeçorras para baixo, outros em vôos acrobáticos.
Nesse ínterim, como manada de caititu enfurecido em roça de milho, irrompeu, de súbito, dos casebres, os moradores do arraial, que eram vaqueiros, lavradores, comerciantes, cabra do eito, peões, todos armados de porretes, clavinotes, espingardas pica-paus, garruchas, facões, foices e machados. A maioria encontrava-se encharcado de cachaça, e, entre eles, corria de mão em mão, numa disputa feroz, um barrilote de pinga.
Do meio da turba enfurecida, surgiu o líder político daquela brava gente, o coronel Anacleto, bulhonista convicto, acompanhado do coronel Gonçalves, o carpinteiro Francisco Gomes e do professor Moisés Batista, que entraram para o interior do templo. O bispo Dom Duarte, devidamente paramentado, de estola roxa, já preparava com os padres para iniciar o ritual de destronização da imagem do Divino Pai Eterno, e a excomunhão de Barro Preto, quando foi interpelado de forma grosseira pelo coronel Anacleto:
- Quem são vocês para acabar com a romaria do Divino Pai Eterno, que escolheu este lugar para o seu reinado?...
Dom Duarte, que era um catarinense de sangue quente, com aquela sovelada profunda no seu orgulho soberbo, respondeu destemido:
- Quem é o senhor que me fala com tanta autoridade?
- Sou o coronel Anacleto, católico, apostólico, mas não romano.
Dom Duarte retrucou de forma grave:
- Pois então o que pretendem se não são católicos romanos, quando eu o sou, os padres o são, o povo o é e este santuário é de católicos romanos?
- Qual nada, contestou o coronel e acrescentou:
- Estamos na República e quem governa é o povo, e o povo há de fazer como e quando quiser; eu hei de administrar as rendas da romaria e não estes frades estrangeiros.
E, não dando tempo para o bispo contestar, o fuzilou com um olhar de ódio, seco, carrancudo, e finalizou, de rópia, seu protesto com uma ameaça:
-Vocês estão avisados! Daqui não sai à imagem do Divino Pai Eterno, e a romaria não vai acabar!...Nem que o sangue suba até as canelas!
Ato contínuo girou nos calcanhares e saiu pisando estrepitosamente pelo assoalho da igreja.
O frade Joaquim Mestellam, que estava ao lado do bispo, visivelmente agitado, gritou:
-Isso é demais, Senhor Bispo, lance o interdito na igreja e levemos a imagem do Divino Pai Eterno e vasos sagrados para Campininhas a fim de não serem profanados por esta gente sem noção da verdadeira religião!
O bispo, sem demora, começou o ritual de destronização da imagem. O ar pesado que impregnou o templo insinuava uma lâmina cortante de aço. Os morcegos, no alto do teto, voavam tresloucados. O turíbulo, em movimento circular, à mão do diácono, rangia na corrente de prata; o rolo de fumaça incensada subia invadindo o altar-mor, espalhando-se pela nave; as orações, entoadas num latim carregado, ressoavam tristonhas pelas paredes, como uma mensagem fúnebre. E, no final, o oficiante rezou a tenebrosa oração do interdito, onde pedia para Deus e a corte celestial dos anjos se afastarem daquele recinto. E, assim, o interdito foi executado e Barro Preto, declarada terra excomungada.
O bispo, auxiliado pelos frades, destronou a imagem, escancarou o sacrário, retirou o forro bordado com capricho do altar, e, como os profetas bíblicos, bateu os pós das sandálias. E convidou a todos os membros da comitiva que se cobrissem com seus chapéus e calçassem as esporas.
O povo de Barro Preto ficou perplexo, com a brutalidade do bispo e com aquela cena de profanação no interior da igreja, com os homens calçando as esporas dentro da casa de Deus.
Dom Eduardo e a comitiva, após se cobrirem com os chapéus, iniciaram resoluta a marcha de saída do interior do templo, tendo à frente o bispo com a imagem do Divino Pai Eterno. Mas, quando chegou do lado de fora da igreja, sua excelência levou um tremendo susto, ao ver a população armada de carabinas, paus, facões, punhais, garruchas e machados.
O professor Moisés Batista, com sua barba profética, óculos de aro de latão, lentes grossas de fundo de garrafa encavaladas no nariz enorme, de forma professoral, insuflava os insurretos. Era um discípulo Comtiano, ateu, agnóstico confesso, que lutava para manter de pé a romaria, porque entendia que ela era a força vital daquele sofrido povo aventureiro, pecador e sonhador. Não gostava de padre, repudiava-os com uma fúria incontida. E, cheio de indignação, gritava esbaforido:
- Não existe mais a Inquisição, o povo é livre para conquistar o seu direito!
Uma voz de mulher ecoou profundo no meio da multidão barulhenta, era a esquálida velha Tota, parteira antiga do lugar, com um neto escanchado nos quadris, q ue gesticulava agitada:
- Êta bispo bom de peia! Onde se viu desrespeitar o Divino Pai Eterno!...
A Maria do Terço, como era conhecida, exclamou sentida:
-Piedade, Senhor bispo! Piedade!... Jesus, quando andou pelo mundo, viveu entre prostitutas, malfeitores, pecadores e não condenou ninguém!..
O Zeca Moeda-Tem-Tem, um desordeiro e cachaceiro aferrado, ao lado da Maria do Terço, rosnou feio:
-Cala a boca, mulher! A única linguagem que o bispo conhece é da valentona! Isso aqui vai virar outra vez, o Pau d’colher da minha terra, no Piauí!... O sangue vai correr grosso!
Uma senhora velhorra, muito velha, de semblante bondoso, cabelos brancos, já octogenária, que se encontrava um pouco recuada dos contendores, de vez em quando dirigia um olhar profundo de reprovação ora para a multidão feroz, ora para o grupo do bispo; suspirava, balançava a cabeça e desfiava um longo rosário, a murmurar ave-marias e padres-nossos. Era um olhar de sabedoria, minado pela inquebrantável fé que faz os iluminados e os mártires. Dir-se-ia, afinal, a boca pequena, que era a única pessoa lúcida do lugar, ainda que anônima, a censurar a estupidez dos dois grupos antagônicos. Onde se viu disputar com ódio e paixões humanas as coisas sagradas de Deus?
As multidões são como um pavio aceso, ora avançam e recuam, ao sabor do comando do líder. Criam, então, perigos, como criam os heróis e Santos. Nessas ocasiões, as paixões humanas e o ódio se ligam, e se avolumam como a fúria da cheia dos grandes rios. Há, porém, nas multidões, uma força oculta, que as arrasta para o abismo do desconhecido, desviando-as do curso real e lógico da vida. E este fenômeno estava acontecendo, ali, no santuário de Barro Preto, onde a atmosfera tornou-se pesada, com as forças das trevas atuando, de forma sutil, conforme os dizeres do velho Miguel da fazenda Terra Podre:
- Quando o demônio atenta a faca entra!
E era só o coronel Anacleto gritar a ordem do ataca! Que a carnificina explodiria violentamente. O bispo e comitiva estavam a um passo da morte. Foi ai que o rezador e benzedor de cobra, Geraldo Minegote, devoto de São Bento, homem de profunda fé, caiu de joelhos por terra, de braços abertos para o céu, e suplicou, chorando, a interferência do Arcanjo São Miguel, comandante da milícia celestial, para que afastasse as forças malignas; e que não deixasse manchar de sangue - a terra santa do Divino Pai Eterno; naquela disputa feia pelo vil metal das romarias, - o dinheiro que tanta discórdia provocava pelo mundo. E o resultado metafísico daquela humilde súplica, do coração sertanejo, estava em curso nas dimensões superiores.
A multidão sertaneja gorgolejava de ódio e indignação contra o bispo e comitiva. O alarido era infindável, subia pelos ares agourentos, os gemidos, choros, benditos, relinchos de cavalos e o xingatório medonho.
O velho caçador de onça, João Caçununga, brandindo a mão o seu rifle oitavado, gritou trovejante:
- Vamos ensinar a esse bispo a regra do bom-viver!...
O bispo, já trêmulo, resfolegante, com o suor correndo em bica pela testa fulgente, se acovardou no medo. Mas não titubeou, e usou mais uma vez da sua costumeira esperteza, que aflorava nos momentos de agruras. E desbragadamente desconversou-se, erguendo a imagem do Divino Pai Eterno, disse num fio de voz, que mais parecia uma alma penada do outro mundo:
- Filhos, não vim aqui para amaldiçoar-vos, e sim para perdoar-vos e abençoar-vos. Ajoelhem-se todos que lhes vou dar a bênção.
O coronel Anacleto não ajoelhou, e gritou, à baforeira, raivoso para a multidão sertaneja:
- Levantem-se, vamos defender o Divino Pai Eterno!
E todos se levantaram, já de armas apontadas para o bispo e comitiva. O coronel, acompanhado dos insurretos, gritou forte:
- Se derem um passo à frente dispararemos nossas armas...
A escolta armada da comitiva, de prontidão atrás do bispo, respondeu:
- E nós também abriremos fogo!...
O juiz de Direito Martins, que fazia parte da comitiva do bispo, atacado pelo medo, cochichou no ouvido de sua excelência, aos pinotes, à beira de uma convulsão nervosa:
-Não quero morrer, ainda tenho esposa e filhos para criar. Volte para o altar!
Dom Eduardo Duarte, que era sanguíneo, ficou pálido como um defunto; se voltasse para o altar, ficaria desmoralizado para sempre, se avançasse morreria, e outra vez recorreu de sua astúcia. Entregou a imagem do Divino Pai Eterno para o padre Wendel e tombou para o chão desmaiado.
- Uma voz gritou:
- O bispo desmaiou! Afrouxou nos garrões, deu cangoletê!...
O barbeiro Jeroboão Alves, a maior língua do arraial, do seu canto, com um porrete enorme, vociferou a sua indignação:
- Tarde piaste! Tarde caíste! O feio já fizeste!
Silêncio geral. Quatro homens da comitiva pegaram o bispo e o levaram para um casebre ao lado da igreja, e o colocaram em um catre, que era revestido com um colchão sujo de capim-membeca repleto de percevejo-chupão. Padre Joaquim deu uma caneca de água ao bispo, e ele voltou a si. E o coronel Anacleto, sem dar trégua, entrou no casebre acompanhado do negro Pedro Balaca, que ostentava à mão direita uma robusta mão-de-pilão, foi dizendo, no seu jeitão destabocado:
- A imagem do Divino Pai Eterno já está conosco. Agora, me entregue já e já o Santíssimo de ouro que um destes frades pegou.
O bispo, erguendo-se do catre, respondeu:
- Santíssimo de ouro?...O senhor não sabe o que está dizendo. Não há Santíssimo de ouro e nem de prata. Aquilo é a custódia onde se expõe o Santíssimo, que é uma hóstia consagrada na missa.
- Não me chame de ignorante, - retrucou o coronel, e completou:
-Me entregue agora!...
O frade Joaquim, amedrontado, repassou a peça sagrada ao coronel.
Do lado de fora, a multidão sertaneja embriagada, já espancando os animais da comitiva episcopal, gritava eufórica:
- Viva no céu o Divino Pai Eterno e na terra o coronel Anacleto!

Assim que o coronel se retirou do aposento, o frade Joaquim, apavorado, suplicou ao bispo:
- Vamos fugir o quanto antes, senão vamos ser assassinados por esse bando de cachaceiros e de prostitutas!
O bispo, ao ouvir a palavra fugir, que soou nos meandros de sua mente atormentada, como uma janela de fuga, não vacilou: saltou rápido do catre, calçou as esporas, meteu na cabeça o chapelão preto, e num átimo montou no cavalo. O que fez o mesmo a comitiva. E, numa arrancada desenfreada, a toda a brida, saiu jogando gorgulho para trás, e abriu as barbas no mundo, na direção de Campininhas. Adeus, terra excomungada!...
O coronel Anacleto, com a imagem do Divino Pai Eterno ao alto, entrou triunfante na igreja, acompanhado do povo, e solenemente a colocou no altar. Estava, assim, resguardado o maior tesouro do arraial de Barro Preto. E para o alto subia o canto alegre, os benditos, os foguetes, o badalar do sino, e os vivas dos eternos romeiros:
- Viva o Divino Pai Eterno!

Anos depois deste trágico incidente, Pedro Balaca, um dos insurretos, já alquebrado e curvo com o peso dos janeiros no cangote, à porta de seu velho casebre, á beira do córrego Barro-Preto, contava animado à roda de romeiros:
- Meu Deus do céu, como o bispo era topetudo, arreliento, e duro como beira de sino! Depois de o bom correr, onde saiu fumaçando, quando chegou a Campininhas, o seu primeiro ato foi lançar no livro do Tombo da Matriz o maldito Interdito, que amaldiçoava Barro Preto, proibindo inclusive a presença de padres, a não ser no causo de um cristão dar o couro às varas, para ministrar os Santos óleos, ou seja, extrema-unção. E, não satisfeito com sua maldade, transferiu também a romaria do Divino Pai Eterno para Campininhas, com data dos festejos para 15 de agosto. Só que foi um fracasso! Onde se viu transferir uma romaria, que foi criada e abençoada por Deus?
E, aqui em Barro Preto, hoje Trindade, ficamos de sobre aviso dia e noite, para guardar o santuário, com medo de uma nova investida do bispo, que poderia vir com jagunços armados para levar a imagem. Mas, graças a Deus, isso não ocorreu; se tivesse acontecido, o sangue correria até ás canelas!
O coronel Anacleto, que era um homem desassombrado, apesar da praga pesada do bispo, continuou organizando a romaria, que não parou, mas caiu de 15.000 romeiros para 2000, e Barro Preto foi virando um taperão de melão-de-são-caetano. Aí o coronel, que era homem prático, deixou o orgulho de lado; vendo o fim do povoado, tratou logo de pedir perdão ao bispo. Mas de nada adiantou, ele exigiu que tínhamos de mostrar arrependimento, com muita humildade; assim suspenderia o Interdito, e fincava pé – mas a romaria estava acabada! Mandou vir aqui os padres de Campininhas, e nós não cedemos, pois, na verdade, o que queríamos mesmo era a romaria, isto é, festejar o Divino Pai Eterno! Como dois duros não levantam muro, o superior dos padres redentoristas, o padre Gebardo, homem de coração grande, percebendo o desastre, veio a Barro Preto, fez um documento, onde pedia ao bispo que suspendesse o Interdito, e colheu a assinatura do povo, e, no final, os padres também assinaram. O bispo não teve como recuar. O maldito Interdito foi suspenso em 27 de outubro de 1903. E, desta forma, estava de volta à romaria do Divino Pai Eterno, com todo o seu esplendor e glória!
Pedro Balaca, batendo na testa, exclamou:
- Me Perdoe, meu compadre Zé Bento, meus amigos de Curralinho e Capelinha, um fato que não contei, - ó cabeça que não ajuda! Uns dias antes da chegada do padre Gebardo, o cabeça da revolução, que futucava e agitava o povo, o professor Moisés Batista de Abreu, o filho do bode chifrudo, como ficou conhecido entre nós, morreu num sofrimento terrível, com os vermes comendo-lhe as carnes, ainda vivo! E o povo comentava: - foi castigo do bispo! O professor, mesmo na hora da morte, renegou os santos óleos, e pediu para não ser sepultado no cemitério dos padres, como era conhecido o Campo Santo, e nós, como bons cristãos, nada mais podia fazer, a não ser atender o último pedido do morto, e o sepultamos na cruz das almas. Talvez este fato ajudou o bispo a abrir mão do Interdito. Era visto e sabido por todos que Dom Eduardo nutria um ódio profundo pelo professor. O bispo também recebeu o seu quinhão; no final de sua vida, ficou de miolo mole, demente do juízo e teve que renunciar o seu bispado. Com o Divino Pai Eterno não se brinca!

Porém, quanto ao Coronel Anacleto, que era um paulista de nascimento, também levou a sua lapada, um mês depois do levantamento do Interdito, à sua esposa faleceu, e a língua do povo não deixou por menos: - Foi castigo!
Mas, como diz os antigos – o sofrimento amansa as almas rebeldes! E o coronel tratou logo de reconciliar e tornar-se amigo dos padres, chegando até a confessar. Morreu ai com os seus 64 anos.
E do nosso lado, cá do povo, o manguá cantou bonito no nosso lombo! A peste da varíola veio e varreu de ponta a ponta Barro Preto. Levou mais de 60 cristãos para a cidade dos pés juntos! Foi um horror!
Não me escandalizo com estas coisas, apenas dou o meu testemunho. Creio eu que todas essas tragédias vieram com um endereço certo, para purificar o lugar. É o que sempre digo: briga só dá prejuízo! Ainda mais com o sagrado...
Mas o bom Deus, que vela por nós nas alturas, não nos abandonou, e mandou pra cá os padres Redentoristas, que nos ensinou os bons costumes. A eles devemos tudo, inclusive o progresso de Trindade. Aí está o padre Pélagio curando os enfermos, aliviando os nossos sofrimentos e enchendo a nossa vida de esperança. É um padre santo, que só baixou à terra para fazer o bem e salvar as almas!

O romeiro Fidélis Cantú, um mestre-escola, que ouvia atento Pedro Balaca, acrescentou entusiasmado:
- O padre Pelágio é um sacerdote eterno, segundo a ordem de Melquisedeque! Tu Es Sacerdos in Aeternum Secundum Ordinem Melchisedech!
-Falou bonito no seu latinório, como um padre dizendo missa! – exclamou Pedro Balaca.
Pedro Balaca, neste ponto, suspendeu a narrativa, e como se fitasse a eternidade, disse de si para si, numa gaitada alegre:
- Qual nada! Vê lá se o bispo ia ter força para acabar com a romaria do Divino Pai Eterno, uma obra criada por Deus!

E muito longe, pelas bandas do córrego Bruacas, um carro de bois gemia nos cocões de aroeira; eram os eternos romeiros chegando para os festejos do Divino Pai Eterno.

* Moura Lima – Escritor tocantinense,advogado,romancista,contista,ensaísta, autor de várias obras. Membro da Academia Tocantinense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico,pertence à Academia Piauiense,como membro correspondente.

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